Capítulo 1 – Gelatina

Nada mais natural de uma quinta-feira a noite do que estar trabalhando, em um dos melhores restaurantes de Liverpool, sentada e degustando a comida que era preparada por mãos humanas, junto com seu companheiro inseparável. Muitas coisas tinham mudado nos últimos treze anos: uma guerra começara e acabara no mundo bruxo, muitos tinham morrido, e Hermione Granger tinha se transformado de a monitora mais durona de Hogwarts na crítica de comida mais prestigiada da Grã-Bretanha. Sempre que um chef lançava um prato novo, ela recebia convites para experimentá-lo e enviar sua crítica para a sessão de restaurantes no Profeta Diário. Não era um trabalho tradicional, nada do que poderiam esperar dela quando garota, mas era uma forma digna de ganhar a vida e dava muito dinheiro, que ela reinvestia em campanhas de proteção os irmãos elfos.

Algumas coisas não tinham mudado.

Hermione estava mais obcecada que nunca com o FALE, que vinha crescendo a olhos vistos nos últimos cinco anos. Muitas melhorias tinham sido conseguidas depois de determinadas adições de peso ao movimento, e mesmo os elfos domésticos pareciam menos ofendidos com a idéia. Claro que para isso precisaram haver concessões. Nada de trabalho remunerado. Tudo de leis trabalhistas que garantissem assistência em caso de doença, e férias caso estas fossem requisitadas. Muitos cursos para melhorar a formação e desenvolvimento dos elfos (cursos estes que eram considerados trabalho para que não se recusassem a freqüentá-lo) e o mais importante de tudo: representação no Ministério da Magia. Sob o comando de Amélia Bones o ministério tinha se aberto das idéias da garota e Dobby tinha renunciado seu cargo em Hogwarts para ficar de auxiliar no escritório, e quando não estava lá, se revezava arrumando a casa de Harry, Hermione ou Rony pois não conseguia se habituar as folgas semanais.

Nessa mesma linha, Hermione tinha usado de seu prestígio no meio da gastronomia para começar um movimento para afastar os elfos domésticos do fogão dos restaurantes. "Bruxo cozinha pra Bruxo", era um dos lemas do movimento. Para reforçar, ela se recusava terminantemente a visitar ou emitir uma crítica sobre qualquer restaurante cuja comida fosse preparada por elfos. "Quanto menos elfos nas cozinhas, mais empregos, mais geração de renda, maior poder aquisitivo do povo, mais movimento na economia, é bom para todo mundo." Ela falava abertamente aos donos de restaurantes e bares. Desnecessário dizer que os duendes de Gringotes ficavam satisfeitíssimos com isso.

Outra coisa evidente: cada vez mais os bruxos se deixavam seduzir por algumas facilidades da vida trouxa – luxos – como celular, carros, e outros objetos que viravam motivo de desejo. Obviamente tudo alterado e funcionando por mágica, carros voando e ficando invisíveis, celulares que não precisavam de empresas para operá-los, e outras modificações do gênero. De certa forma, aquilo a fazia se sentir mais a vontade: não era necessário romper com o mundo de onde vinha para continuar a pertencer à comunidade bruxa.

Então, ali estava ela, em mais uma noite de quinta-feira, em mais uma travessa mágica, em mais um restaurante caro, comendo mais um prato com ingredientes atípicos, com efeitos estranhos. À sua frente, lhe acompanhando no trabalho, estava Draco Malfoy, seu editor. Era estranho que depois de anos de desentendimentos, xingamentos, duelos, agressões mil, tapas na cara e outras demonstração de falta de gentileza eles se dessem tão bem. Na verdade, nos últimos dois anos, tinham sido absolutamente inseparáveis: saiam juntos, procuravam um ao outro quando tinham algum problema, trabalhavam sempre em harmonia e lembravam da adolescência sem raiva ou ressentimento. Aquilo era um sentimento apagado da memória dos dois.

Depois que Harry derrotara Voldemort e seus pais tinham morrido na guerra, Draco teve que aprender a começar do zero. Do nada. A fortuna bloqueada, sem ser aceito em trabalho nenhum, olhares de desconfiança o seguindo por toda parte... Ser um Malfoy tinha deixado de ser um orgulho para se tornar um problema. Até que, depois de algum tempo, absolutamente desesperado, tinha ido trabalhar no Profeta Diário, já que Rita Skeeter, Editora-chefe, dizia que se ele não era bom o suficiente para coisa nenhuma, ao menos sabia criar polêmica, fazer fofoca e vender notícia.

Humildade nunca tinha sido o forte de Malfoy, mas ele teve que aprender com os erros, com as dificuldades. Por algum tempo, totalmente falido, se hospedara na casa de amigos, como Pansy Parkinson. Mesmo trabalhando no mesmo jornal, ele e Hermione não se encontraram até que Skeeter o tinha promovido a editor, e ela não tinha visto como realmente ocorrera a mudança nele. Mas tinha certeza que não tinha sido nada bonito.

Continuava sendo sarcástico, irônico, agressivo e até pouco agradável, mas tudo isso tinha assumido um ar encantador quando aliado ao senso de humor menos negro que ele tinha desenvolvido. Começaram a trabalhar juntos, ainda brigaram algumas vezes, mas com o tempo veio a paz. Depois, a harmonia. E por fim a amizade. Por mais estranho que aquilo pudesse parecer, era um conforto para Hermione, que sentia uma falta imensa de Harry e Rony. Os dois tinham uma vida tão agitada quanto ela. Jogavam pelo Pride of Portree e pela seleção principal da Inglaterra. Passavam ainda menos tempo em casa do que ela. De qualquer forma, tinham se mudado, saindo de Londres para mais perto do clube, e raramente podiam encontrar a moça.

Com tudo isso, lhe parecia natural que houvesse uma movimentação além do comum na cozinha enquanto o garçom vinha depositar em sua mesa a mais nova criação do Chef do restaurante. Podia sentir os olhares ansiosos da equipe que a observava pelo vidro da porta, do garçom que a servia, do maître, e de Draco a sua frente, embora esse último estivesse totalmente despido de paixão. Usou o garfo para levar um pouco da comida à boca, e mastigou lentamente, saboreando sem pressa enquanto se divertia silenciosamente com a tensão dos demais envolvidos. Após engolir tomou um pouco do vinho que tinham lhe servido, suspirou, secou os lábios com o guardanapo de linho e virou-se para o maître.

- Vou descrever como... Ousado e criativo.

Sorriu encantadoramente para o maître enquanto o loiro se segurava para não rir. Trocaram um olhar cúmplice antes de pedirem o jantar a seu próprio gosto.

***

- Veja se você não recebeu nenhum recado do Smith.

- Isso é mesmo uma reunião de editoria com o pessoal do Semanário das Bruxas ou você está tentando me arrumar outro encontro?

Draco fez uma careta enquanto via Hermione procurar o aparelho telefônico dentro da bolsa. Ela já tinha o celular no ouvido quando ele respondeu, com um sorriso cínico:

- Juro que são apenas negócios.

Ela sacudiu a cabeça negativamente, mas não fez mais nenhum comentário a respeito, prestando atenção no que dizia a secretária eletrônica.

- Oi! Você tem UM recado novo! – E o aparelho fez um pequeno sinal sonoro – Olá, Mione, aqui é o Rony... Eu, eu venho tentando falar com você desesperadamente... Bem, preciso falar com você o mais rápido possível... Quero dizer... Me ligue de manhã... Me ligue quando chegar... É isso aí...

- Então...? – Draco parecia profundamente interessado no que ela tinha ouvido. Sorriu;

- Não, era o Rony. Rony Weasley.

- Rony Weasley. Aquele pé-rapado sardento com quem você andava em Hogwarts. Lembro dele.

- Não fale dele desse jeito! – Reclamou pondo o cabelo atrás da orelha – Ele é meu melhor amigo.

- Nem me fale desse seu ele-é-meu-melhor-amigo, porque logo depois vem aquele discurso todo sobre você e ele, e Potter, e sinceramente, toda essa melação...

- Você não sabe de nada, Draco.

- Não? – ele riu sarcástico – Então, conte-me.

- Tivemos completamente apaixonados por um mês em nosso sétimo ano... Aquela coisa absurda, total, tórrida... Até que o óbvio aconteceu e eu comecei a encher o saco dele... Então eu simplesmente fiz o que era esperado e parti o coração dele... Então ele olhou dentro dos meus olhos, e disse... "O que mais me dói, é saber que eu estou perdendo minha melhor amiga"... E eu percebi que me sentia da mesma maneira... Me sinto assim desde então. Continuamos amigos, é claro... Somos igualmente cabeça-dura, e teimosos, e...

- Almas gêmeas – cortou o loiro, irônico. – Que previsível.

- Não... Ele é mais parecido com você, na verdade... Só que é hetero.

- Poupe-me, Granger – ele falou, parecendo realmente ofendido. – Não me compare a um ser tão primitivo quanto um hetero, e principalmente, não me compare com aquele babaca do Weasley.

- Draco, isso já tem tanto tempo, porque é que...

- Certas coisas, Granger, nunca mudam.

- Bom, você não parecia pensar assim enquanto se agarrava com a irmã dele!

- Não me lembre disso, faça-me o favor... – Ele sacudiu a cabeça – Pode continuar com sua historinha melosa...

Ela o olhou, parecendo contrariada por um instante antes de dar os ombros e voltar a conversar esquecendo a discussão.

- Continuamos amigos até hoje – ela resumiu – Lutamos muito juntos, viajamos juntos, para fora e dentro do país, com Harry e sem Harry, tivemos recaídas, tivemos brigas como sempre... – Ela o encarou, dando um sorrisinho travesso – alguns momentos picantes, e nada mais. Não sei. Temos nos falado muito pouco, ultimamente... Mas sempre tentamos nos falar, nem que seja no telefone... Ele continua com aquele emprego ingrato no Harpies... Mas ele está feliz, continua jogando com Harry, então acho que por mim tudo bem.

- E o precioso Potter, como fica nessa jogada?

- O que Harry tem a ver com isso? – Ela perguntou erguendo a sobrancelha esquerda.

- Ah... Vai me dizer que vocês três nunca... Juntos? – O rapaz tinha um olhar malicioso em direção a mulher a sua frente.

- Draco! – ela deu um tapa no braço dele que riu da reação – Claro que não! Você acha mesmo que...

- Foi assim que eu descobri, você sabe... – Ele parou de rir e ficou mortalmente sério. – Quem sabe assim o Potter e o Weasley descobririam que foram feitos um para o outro.

- Algum interesse pessoal? – ela perguntou, rindo.

- Já preenchi minha cota de bobagens com a Weasley, obrigado.

- Engraçado, até um ano atrás você me parecia tão apaixonado... Falando até em casar e...

- O que prova que eu paguei meus pecados.

Os dois se encararam, ele parecendo sériamente aborrecido enquanto ela se divertia com a situação.

 - E o que o Weasley queria, afinal?

- Não sei, precisa conversar, acho... Vou ligar pra ele do hotel...

Draco se limitou a revirar os olhos, pegando o vinho.

- Sabe do que eu me lembrei agora? – Ela perguntou e não esperou a resposta dele para continuar – De uma vez em Madri, uns quatro ou cinco anos atrás, quando nos hospedamos, eu e Rony em um hotel horrível... Estávamos no quarto, no meio da madrugada, depois de conversarmos horas quando ele simplesmente pegou o canivete dele, cortou a palma da minha mão, depois a dele, juntou as duas misturando o sangue e falou "Se nós dois tivermos vinte e oito anos e nunca tivermos nos casado, vamos nos casar um com o outro."

- Emocionante – o loiro respondeu, ainda parecendo irritado.

- Nunca mais falamos disso. Aliás, nem sei porque eu pensei nisso agora...

- Bem, você faz vinte e oito anos daqui há um mês. Quantos anos ele tem?

- Você não acha mesmo que...?

- Ele te liga, "precisando conversar", bom, nunca se sabe, não é?

Ela sorriu para o amigo e balançou a cabeça antes de continuar a comer.

***

Hermione pegou o telefone, andando em círculos enquanto discava o número do Hotel aonde Rony deveria estar hospedado aquela semana. Ouviu chamar três vezes antes de ser atendida pela telefonista:

- Hamston Hotel, Boa noite!

- Boa noite, eu queria falar com Ronald Weasley, mas como é tarde você poderia avisar...

Mas a telefonista já tinha transferido a ligação para o apartamento aonde ele estava.

- Alô?

- Você está inscrito no fundo de apóio aos Elfos, ouça quantos elfos você está fazendo mais feliz – brincou ela.

- Hermione! Que bom ouvir sua voz! O que houve com você?

- Eu estava jantando com meu editor...

- Eu estou te ligando há quase um mês!

- Eu sinto muito, minha secretária apagou minhas mensagens, tem toda aquela nova cartilha de direito dos elfos que eu estou promovendo, e...

- Ou seja, você não retorna nenhuma ligação em menos de 30 dias.

Ela riu do acerto evidente.

- A menos que seja você ou o Harry.

- Claro, nós realmente percebemos isso...

Os dois riram juntos e ela se sentou na cama, respirando fundo.

- Sabe do que eu lembrei hoje? – ela perguntou, sem esperar pela resposta dele – Daquela noite que passamos naquele hotel horroroso em Madri, quando cortamos as mãos... É tanta bobagem que eu nem sei porque foi que eu pensei nisso hoje...

- Eu sempre penso naquela noite – ele revelou.

- É mesmo? – ela falou com a voz fraca.

- Hermione... Eu preciso conversar... Eu conheci alguém...

- É mesmo? Não me diga... – ela falou voltando a rir e ficando de pé. – Deixe-me adivinhar, uma atendente de uma grande loja de departamentos trouxa que não sabe...

- Não, não! Ela está no segundo ano em Oxford, e é formada em Hogwarts...

- Formada em Hogwarts? – repetiu puxando o cabelo para de trás da orelha.

- É... Você deve se lembrar dela... Luna.

- Eu achei que você tivesse dito que tinha conhecido alguém! – ela soltou o cabelo, dando uma risadinha.

- Eu não a conhecia, Hermione, nem você. Aliás, ela nem parece aquela garota que nós conhecemos no trem... Ela está... Mudada...

- Sei... E agora você acha que está apaixonado por ela? – ela falou debochada, indo se sentar.

- Nós vamos nos casar no Domingo.

Hermione caiu no chão, fazendo um enorme estrondo.

- Hermione? Está tudo bem?

- Eu apenas derrubei uma coisa aqui... – ela falou parecendo ansiosa para disfarçar o susto. –Você não acha que é muito cedo, muito rápido...

- Eu tenho certeza do que estou fazendo.

- Mas... Mas... Aff...

- Como eu ia dizendo... Eu preciso de você aqui, Hermione... Eu não acho que eu vá conseguir fazer isso sem seu apoio... Quero dizer... Amanhã é feriado... A festa de noivado começa amanhã, tem o chá de panelas, com ensaio no sábado pela manhã, e a festa é no domingo às seis... Por favor...

- Tudo bem... – ela falou, tentando disfarçar a histeria – tudo bem, eu estarei lá Rony.

- Você é mesmo o máximo...

- Que isso... – ela balançou a cabeça negativamente, ainda perplexa.

- Estarei te esperando no Três Vassouras amanhã as 10, tudo bem?

- "timo. – Ela falou andando de um lado para o outro sem parar.

- Eu amo você, Hermione.

- Eu também amo você – A tensão começava a se evidenciar em seu tom.

- Tchau!

- Tchau...

Se Hermione tivesse se visto no espelho, teria se assustado com como sua expressão demonstrava espanto.

Continua...

N/A: Não me matem pelo Draco! Tudo tem explicação! Aguardem... E confiem, se puderem! :P