XIV

Somente amigas

"O verdadeiro amor nunca se desgasta. Quanto mais se dá, mais se tem."

        As três estavam reunidas no quarto, naquela noite. Mary havia voltado do banho e colocado seu pijama, preparando-se para pentear os cabelos molhados. Tori estava sentada sobre os pés em sua cama, segurando um espelho, enquanto se maquiava. Paulie sentava-se na beira da sua, com um livro aberto sobre as mãos, assistindo àquilo.

        - Por que está passando essa merda?

        - Porque sim... – respondeu, sem olhá-la.

        - Porque sim o quê?

        - Porque vou sair.

        A menina Oster a fitava, séria, da mesma maneira como Tori evitava encará-la ou conversar normalmente.

        - Oh... e aonde você vai?

        - Vou apenas sair... com um amigo. – respondeu, ligeiramente hesitante.

        - Que amigo?

        - Um amigo meu, ok?! – disse Tori, olhando-a meio impaciente, passando batom nos lábios.

        Paulie era insistente. Mas naquela ocasião estava insistente e irritada... por dentro.

        - Eu só estava interessada em saber... – disse, um pouco ironicamente.

        - É... bem, amigas devem respeitar a privacidade umas das outras...

        - Amigas? – perguntou Paulie, firme e seriamente. Era isso que também a irritava em Tori! Parecia haver esquecido tudo de uma hora para a outra! Esse fingimento... esse maldito fingimento de que nada mais havia entre elas desde... aquela manh.

        - É... amigas – disse, fitando-a através do espelho – Somos todas amigas, não é, Mary B.? – perguntou, agora dirigindo-se à Mouse.

        Mary apertou os lábios e apenas balançou a cabeça afirmativamente, olhando-a de lado, enquanto penteava os cabelos em frente ao espelho da penteadeira. Sentia-se perdida entre as duas... o que diria? Oh, Tori, nós somos amigas, é claro. Mas você e Paulie...? E vocês?

        - Somos mais do que amigas – disse Pauline.

        Uma pausa... um silêncio. É claro que Victoria sabia disso. Mas não podia falar.

        - Sinto muito, Paulie... – Moller levantou-se de sua cama e dirigiu-se à porta, deixando o quarto. Esquecera-se de dizer "tchau"...

        Paulie encostou-se na parede de sua cama e ficou a olhar algum fantasma parado na porta, com a mesma expressão fria. Não podia acreditar no que estava acontecendo... algo a sufocava de tal maneira que parecia explodir a qualquer momento se ninguém a parasse!

        Não desviou o olhar quando Mary sentou-se ao seu lado, com uma toalha nos ombros.

        - Você está bem?

        - Viu aquele brilho nos olhos dela?... É o mesmo brilho que há nos olhos da minha mãe postiça... quando ela mente.     

        Mary não retrucou. Sabia que elas se conheciam muito bem... Pela segunda vez reparou no poema de Shakespeare pichado na parede e então conseguiu ler.

"Minha generosidade
tão ilimitada quanto o mar...
meu amor é tão profundo
quanto mais eu te dou,
mais eu tenho,
e para ambos é infinito."

--

        Já passava da meia noite. Pauline Oster continuava sentada em sua cama, fumando, esperando a volta de Tori... enquanto Mary dormia placidamente em sua cama.

        Mas a menina demorava por demais. A ansiedade tomava conta de si mais uma vez. Precisava pensar em outra coisa, se distrair, esfriar a cabeça com algo que não a fizesse lembrar de seu amor sofrido...

          Decidiu que iria visitar o falcão. Amassou o cigarro no cinzeiro próximo e de um salto agarrou a mochila, saindo apressadamente e tentando não fazer barulho.

        Paulie deixou a lanterna ligada no chão, enquanto suspendia o saco de dormir da gaveta, ajoelhada sobre as folhas. Enfiou a mão na abertura e começou a alimentar a ave com os petiscos que sempre trazia. Precisava falar com alguém... Mary já dormia, era quieta demais, e mesmo percebendo que a garota queria ajudá-la, ela própria sabia que não daria certo. Mary não tinha experiência o bastante para poder consolar Pauline. Àquelas alturas, somente o falcão era capaz de escutar os lamentos da menina... e, sem querer, o único capaz de confortá-la.

        - Você vai crescer e ficar forte, – dizia para ele – e então poderá voar pra longe daqui...

        O falcão saltou para fora da gaveta, pousando na terra.

        - Nós iremos voar daqui... voar daqui, pra sempre... É, vamos voar pra longe daqui.

        Era tudo o que ela queria. Voar... fugir dali... esquecer de tudo. Ir para algum lugar onde pudesse ficar em paz...eternamente.

        Em outra parte da floresta, Jake e Tori voltavam da festa.

--

        Mary abriu lentamente os olhos e virou-se para o lado. Não havia vestígios de Victoria e Pauline no quarto. Apertou um pouco a vista e constatou 1:37h em seu despertador azul, situado sobre o criado-mudo... Pensou até em perder tempo e tentar espiar pela janela, mas seria quase impossível encontrá-las se beijando novamente em cima do telhado... não naquelas circunstâncias mais.

        Ficou instantaneamente preocupada. Tori havia ido na festa de seu irmão e era normal não ter voltado ainda... mas e Paulie? Aonde se metera em plena madrugada?

        Mouse vestiu um suéter escuro e apanhou a lanterna, saindo em direção aos jardins... talvez fosse à floresta. Precisava saber aonde estava ou não voltaria a dormir em paz.

--

        Mary B. andava por entre as enormes árvores da floresta, olhando atentamente ao seu redor. Não escutara ruído algum até o momento... pensou em chamar a amiga, mas então algo fez desaparecer essa possibilidade.

        Mary recuou involuntariamente para perto de um tronco e ficou parada. Eram Jake Holander e Tori se beijando maliciosamente contra uma árvore, abaixo das sombras das folhas. A menina de sardas não conseguiu sair do lugar. Não entendia o porquê, ao certo, e o que sentia... então era verdade. Por que Tori deixara Paulie tão repentinamente para ficar com um garoto? Por que estava ali, com Jake, sendo pressionada contra a árvore, parecendo estar muito mais do que aos beijos...?

            O falcão grasnou por um instante, à uma distância curta o bastante para fazer Mary ouvir e olhar para o céu. Mas sua vista voltou logo até o casal, em uma cena um tanto interessante para ela...  

        Até aquela noite, eu nunca havia sentido nada... ali embaixo. Eu era... como uma boneca de madeira, sem sangue no corpo. Mas naquela noite... naquela noite eu pude sentir meu sangue se movendo...

        De repente, um guincho estridente do falcão a tirou de sua atenção, definitivamente. Mary virou-se para a claridade e viu Paulie Oster correndo de volta ao colégio. Mas é claro! Como não percebera antes...? Era ela que estava com o falcão. E provavelmente vira alguma parte do espetáculo, ou então não sairia dali daquele jeito, parecendo irada.

        Mouse sequer pensou duas vezes e saiu atrás dela, agilizando as pernas, tentando alcançá-la.

--

        Não... de nada adiantara correr.

        Paulie agora estava enfiada na cama, de bruços, com o rosto afundado em seu travesseiro. Não sabia se estava chorando, ou dormindo... ou fingindo dormir.

        Mary também deitara-se em sua cama. Mas não conseguia pregar os olhos de jeito algum... estava virada para a parede, com a cabeça conturbada, fazia pelo menos meia hora.

        Ouviu a porta se abrir e uns passos silenciosos percorrerem o quarto. Finalmente Victoria havia voltado. Carregava os calçados na mão, evitando quaisquer ruídos com os pés, e então os colocou em um canto. Tirou uma camisa de um dos seus pijamas de debaixo do travesseiro e começou a se trocar, sentando-se na beira da cama.

        Paulie ergueu a cabeça o suficiente para poder enxergar a garota.

        - Se divertiu?

        Tori sentiu seu coração galopar, mas não voltou seu rosto até ela. Fingiu não ter tomado nenhum susto, vestindo a camisa:

        - Não é da sua conta, Paulie.

        Houve um silêncio. Paulie sentia seus olhos se encherem d'água...

        - Você mentiu pra mim... – murmurou.

        - Eu disse que ia sair com um amigo, e foi isso o que eu fiz...

        - Você sempre trepa com seus amigos debaixo de árvores?

        Os lábios de Tori pareciam haver secado. Ficou paralisada, sem ter o que retrucar. Não imaginara que a garota pudesse tê-la flagrado! O sangue de Oster fervia... estava decepcionada. Queria lançar injúrias, ofendê-la de algum modo...! Mas ao mesmo tempo queria abraçá-la e pedir para que nunca mais ficasse longe...

        - Minha vida não é da sua conta, Paulie! E você não tem o direito de me espionar...

        - Tori, tudo o que você faz é da minha conta! Eu sou da sua conta, e você é da minha!

        - Se você me espionar de novo... – ameaçou Moller, hesitante.

        - ... o quê? – atacou, com firmeza.

        Victoria tropeçava em suas frases. Não entendia direito o que estava dizendo...:

        - Não faça isso!... – gaguejou, gritando em um sussurro.

        Silêncio... a garota sentia-se, de certo modo, encurralada. Paulie acalmou sua voz e perguntou, com medo da resposta:

        - Vai sair com ele de novo? 

        Tori finalmente virou-se até ela, que quase no mesmo instante voltou a afundar o rosto no travesseiro de penas. Foi então que sentiu parte do sofrimento de Pauline... sentiu compaixão. Mas que droga, estava magoando-a! E era a última coisa que queria que acontecesse! Mas como poderia explicar-lhe, se já sabia que não compreenderia?

        Victoria levantou-se e se sentou ao lado da garota, na cama. Aquela terrível sensação de sufocação a perturbou de novo... estava ferindo seu coração...

        - Ouça, Paulie... é hora de... amadurecermos. Isso... isso não está mais certo. Quero que sejamos somente amigas, ok? – murmurou, pousando sua mão sobre os ombros da moça.

        - Isto não está acontecendo...

        - Querida... por favor...

        Paulie levantou-se rápida e desajeitadamente e ajoelhou-se na cama, atrás de Tori, abraçando-a forte. Tori não podia permitir... sentia-se mal com tudo aquilo. Tentou livrar-se de seus braços, delicadamente.

        - Solte-me, por favor...

        Paulie então agarrou sua mão. Estava desesperada... totalmente dependente de seu amor. Era inadmissível deixá-la ir embora dessa maneira.

        Mouse ouvia a conversa desde o início, mas não conseguiu mais se conter e virou seu rosto para o lado direito, com considerável discrição.

        - É por causa de Allison? De seus pais?! Por favor...

        Victoria tirou sua mão da de Paulie e jogou-se na cama, de costas para ela, com um desejo incrível de ficar ali, na mesma posição, pelo resto da noite. De fato, achou que não conseguiria mais se mexer... seu corpo, seus membros... estavam paralisados.

        A garota Oster não conseguiria segurar toda aquela angústia ali dentro.

        Escapou daquele quarto sufocante e foi se refugiar do lado de fora... Simplesmente largou-se, encostada na parede, e deixou as lágrimas escorrerem pelo seu rosto. Sua mente estava confusa ao extremo. Sentia seu coração apertado, machucado, e uma dor que não queria ir embora a atormentava... Vejam só, como as coisas tomam um rumo tão diferente tão depressa....

        Onde estava Tori agora, além de dentro de si mesma? Achara que perdera seu amor para sempre... era como sua base, e agora Paulie sentia-se completamente sem chão. Sem razão, sem motivação para acordar... nada teria mais graça dali em diante, nada teria cor, nada teria vida... e, quanto mais pensava no futuro e no presente, mais vontade tinha de sumir. Voar para longe, assim como o falcão faria um dia. No entanto, a única coisa que poderia fazer por enquanto era chorar. Lavar a alma...

            Levou as mãos à boca para evitar que os constantes soluços que pareciam querer asfixiá-la pudesse chamar a atenção de alguém. Ao mesmo tempo, no quarto, Tori continuava na mesma posição... sem conseguir dormir.