XV
Nada a perder
Paulie Oster e Mary Bradford caminhavam pelo corredor do colégio em direção aos pequenos armários de correio, como faziam pelas manhãs. Pauline não parecia nada bem... estava séria, não dava um sorriso. Completamente compreensível para Mouse. Afinal, mesmo que indiretamente, fizera parte do que havia acontecido na noite anterior... testemunhando. Mas e ela, como se sentia? Estava horrivelmente impotente, incapaz de tomar uma atitude melhor, em seu pensar. Sentia-se meio que ridícula andando ao lado da amiga, não sabendo como confortá-la (além disso, ninguém suspeitava que Mary tivesse visto e ouvido coisa alguma), temendo que sua personalidade explosiva pudesse se libertar a qualquer momento.
Allison e uma amiga – que checavam os correios também – começaram a soltar risadinhas abafadas quando Paulie passou por elas. A garota percebeu, é claro... mas as ignorou. Estava pouco se importando com as pessoas. Continuou a andar naturalmente e parou em frente ao seu armário, enquanto escolhia a chave. Abriu a portinhola rapidamente e, vendo que não havia nada lá dentro, bateu com força de volta, irritada, trancando-a. Claro... quem iria escrever-lhe? Enviar-lhe uma lembrança? Seus... pais? Tinha uma família de verdade?
Retomou então sua caminhada, para um lugar qualquer...
Mouse retirou de seu armário um envelope comprido de cor parda que seu pai lhe enviara e despejou um punhado de terra com sementes em sua mão. As cheirou por um breve instante e reparou então que Allison e a garota haviam se aproximado.
- O que é isso, Mary?
- Han... algumas... algumas sementes... para o jardim lá fora – respondeu, meio sem graça.
- Sementes... – começou a mais nova dos Moller – é melhor do que o que a minha mãe me manda. Oh, meu Deus, o gosto dela é tão Ralph Lauren...
Mouse não respondeu. Não sabia se olhava para o chão, para as sementes, para as meninas...
- Não pense que estou sendo intrometida, mas... achei que deveria saber que andam... falando coisas ruins sobre você...
Mary B. tomou ar e a fitou, mais corajosa:
- Coisas?
- Bem... porque você fica andando com a Paulie, acham que você é como ela. Todos sabem que ela praticamente estuprou a minha irmã! Tori disse que ela foi nua... pra cama dela – disse Allie, ainda indignada e com certo desdém.
Mary prendeu a respiração. Então era aquilo que Tori dissera à irmã caçula... de repente, sentira raiva dela. E, no mesmo instante, se maldissera por isso. Mas Pauline... Pauline estava sendo julgada por todas do internato! Injustiçada!
- Bem, Paulie é minha amiga! E eu não me importo com o que as pessoas pensam!
Mary arrancou a chave do armário, irritada, e saiu deixando as duas no mesmo lugar.
Estava impressionada consigo mesma. Nunca discutira ou levantara a voz para ninguém antes... mas sentia-se incrivelmente melhor. Conseguira enfrentar Allison e, de algum modo, serviu para tirar-lhe um pouco do peso de não saber como apoiar Paulie. E a defendera, de fato.
Mouse seguiu em direção ao jardim para visitar Joe Menzies, a fim de mostra-lhes as sementes. O simpático jardineiro estava movendo a terra com uma velha pá, próximo às flores que eles plantavam.
- Ei! – chamou o homenzinho.
- Ei!
Mary parou em frente a ele e fez uma pausa, pensativa.
- Quanto importa o que as pessoas pensam? – perguntou, então.
- Bem... depende do quanto elas te pagam... – disse, tirando o chapéu e enxugando um pouco do suor – e quanto elas te pagam, han?
Mary sorriu, não muito contente. Achava-o um filósofo, às vezes.
- Meu pai me mandou algumas sementes... Eu pensei se poderia plantá-las em algum lugar.
- A terra costuma ser um bom lugar – murmurou, jogando mais terra sobre as flores – Vejamos o que você tem...
Joe apanhou algumas sementes do envelope e asbservou ligeiramente.
- Olha... ovos de minhoca – brincou, fazendo-a rir.
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As garotas estavam no campo fora do colégio, preparando-se para uma partida de futebol. Mouse e Paulie estavam de pé fazendo o alongamento inicial, vestindo seus uniformes cor-de-vinho, enquanto as outras meninas sentavam-se em um longo banco de madeira. Vestiam suas meias, riam e falavam sobre sexo e garotos.
- Jake tem mãos mágicas... – disse Tori, sorrindo – Ele sabe exatamente onde me tocar.
- Adolescentes são tão desajeitados... – comentou uma das meninas em volta.
- Não! Ele é perfeito, vocês não acreditariam... parece um escultor.
- Roger... bem, Roger está mais para um encanador – disse Mônica, brincando.
Algumas garotas riram.
- Mike termina assim que começa... um segundo! – exclamou outra.
- Era de se esperar de um garoto de dezesseis anos... – riu Cordelia, com seus estranhos óculos.
- Oh, não... Jake é capaz de agüentar a noite inteira. Ele é um homem de verdade.
Paulie Oster tinha vontade de estar surda naquela hora. Obviamente... dava para escutar tudo o que diziam com clareza, afinal, ela e Mary não estavam tão longe dali. Paulie olhou para Tori brevemente... como estava sofrendo. Seu próprio semblante não enganava a ninguém. O que ela estava querendo... provar? Que gostava de garotos? Queria provocar Paulie, de algum modo? Não era possível...! Se sabia que dessa forma a magoava ainda mais...
Mary B. apertou seus ombros, com a intenção de confortá-la ao menos um pouco. Apoiou-se nela, para esticar a perna.
O treinador de futebol apitou e num instante todas se levantaram e dirigiram-se ao meio do campo para começar a partida. Pauline conseguiu a bola primeiro e disparou a correr com ela nos pés.
- Vamos! Atrás!
A personalidade explosiva de Paulie estava prestes a estourar. Corria rapidamente em direção ao gol, sem perceber ou pensar em quem estava atrás dela, quem queria roubar a bola, quem estava no seu caminho... Então, alguém conseguiu tirar-lhe o domínio. Paulie parou por um instante ao ver a bola tomar o rumo contrário e saiu do campo, correndo como nunca.
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Paulie havia trocado sua roupa e vestido uma blusa cinzenta de mangas compridas. Pegara sua mochila e agora corria em direção à floresta para encontrar o falcão. Se não fosse ele, estaria maluca... mas conseguia livrar-se de certa angústia quando o alimentava.
O pássaro estava pousado em um galho de árvore baixo o bastante para Paulie alcançar com o braço e dar-lhe os famosos petiscos. Evitava pegar mais ratinhos do laboratório, para ninguém desconfiar, mas estava tão nervosa que não pensou duas vezes e levou um consigo.
- Você não desistiria, não é mesmo? – dizia, melancólica – Se a sua namorada terminasse com você... Você não desistiria e choraria... mas voaria para o galho mais alto e traria seu amor de volta, debaixo de suas asas. Voaria com ela pelo céu... Mas você não desistiria e deixaria passar... como uma garota.
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Estava no começo da tarde... Pauline estava sozinha no quarto. Olhava-se fixamente no espelho, com seriedade. Seu rosto... transmitia agonia, raiva... um misto de tudo o que sentia havia dias.
Jogou os cabelos para trás e os amarrou entre os dedos, para verificar como seria se eles fossem curtos... como ela ficaria... parecida com um garoto? Talvez assim Tori pudesse olhá-la novamente?
Paulie tirou o espelho da parede e se olhou por mais alguns segundos, e foi quando então suas emoções juntas explodiram internamente e a moça arremessou o objeto na parede, perto do vão da porta, estilhaçando os vidros pelo chão ao seu redor.
Mary estava voltando naquele instante da partida de futebol e subia as escadas apressadamente em direção ao quarto. Ficou notavelmente surpresa e chocada quando entrou pela porta e viu os cacos espalhados.
- Paulie?! – chamou, colocando as mechas de cabelos molhados atrás da orelha.
- Pegue um caco de vidro – disse a moça, virando-se, com uma voz tão firme e séria que colocaria medo em qualquer um.
Mary não entendeu o que ela queria dizer... Apenas a fitou, com expressão assombrada e assustada. Preocupou-se no ato com o que Pauline pretendia fazer.
- Eu disse para pegar um caco! – exclamou, rígida como nunca.
Mouse abaixou-se, com receio, e apanhou um pedaço do espelho, entregando-o a ela. Paulie abriu a mão de Mary e fez um pequeno corte com o vidro na palma, depois repetindo o processo na sua própria. Mary parecia mais confusa ainda. Depois colou as duas palmas da mão uma na outra, e disse:
- Nosso sangue corre junto agora, certo? O sangue do falcão...
Paulie se agachou e pegou outro pedaço de vidro, maior.
- Agora, corte o meu cabelo – disse, entregando-lhe.
- Por quê?!
- Porque estou indo pra guerra – disse, pegando uma cadeira e sentando-se, para depois sussurrar – Não tenho nada a perder agora...
- Paulie, isso é loucura! – exclamou Mary, sentindo as lágrimas brotarem em seus olhos.
- Anda logo!
- Paulie... isso é por causa da Tori?
Paulie agarrou seus próprios cabelos e os segurou:
- Apenas corte o meu cabelo...!
- Ela quer um rapaz, Paulie... não uma garota de cabelos curtos...
Foi a gota d'água para Paulie ficar irada. Será que ninguém a entendia?...
Levantou-se violentamente da cadeira e empurrou Mary, sem pensar.
- Você não sabe de nada!
Mouse caiu no chão e se chocou contra o criado mudo, entre as camas de Paulie e Tori. Levantou-se então desajeitadamente, sobressaltada, segurando-se para não chorar... Foi quando Oster deu-se conta do que fizera e balbuciou:
- Me... me desculpe... – começou, limpando a mão em sua camiseta preta – Me desculpe, ok? Eu só quero tê-la de volta...
Pauline estava desesperada. Já não sabia o que estava fazendo... sua infelicidade já estava tomando conta de sua mente, e até em Mary havia descontado. Mary... a única que podia entendê-la, além do falcão?
- Paulie, me escute! Tori não é lésbica, ok? Você tem que esquecê-la!
- Lésbica? Lésbica?! – perguntou a moça, parecendo bastante indignada, franzindo a testa – Você está brincando comigo? Acha que sou lésbica?
Mouse respirou com dificuldade e respondeu, hesitante:
- Você é uma garota apaixonada por outra, não é?
- Não! Eu sou Paulie apaixonada por Tori... lembra? – disse, com a voz entrecortada pelo choro – E Tori é... ela apaixonada por mim!... Porque ela é minha, e eu sou dela, e nenhuma de nós é lésbica!!
Paulie arremessou o braço sobre a mesa do computador e quebrou tudo que estava em cima, lançando-se em outra cadeira encostada na parede, de frente para a amiga. Passou a mão pelo rosto, apertando os lábios, enquanto uma lágrima traidora ameaçava cair. Olhou para o lado, sem encarar Mary... e suspirou profundamente.
