Pauline sentava-se sozinha na enorme mesa do refeitório, com seu café-da-manhã contemplando-a na sua frente. Mantinha a expressão séria e tristonha, acompanhada dos seus cabelos embaraçados, que naquele dia não estavam nem um pouco arrumados.
Mouse entrou pelo corredor com sua bandeja, e Tori a chamou, de outra mesa:
- Ei, Mary! Quanto você tirou no teste de geografia?
Mary dirigiu-se até as meninas e sentou-se na mesa. Kara e Cordelia passaram próximo, rindo.
Paulie olhou fixamente para Mary e Tori, nada feliz... pôde escutar as risadas um tanto irônicas das garotas da mesa de trás e virou-se, mantendo o semblante sério.
- Vão em frente, riam! – começou, olhando então para a frente – Tudo bem! Se quiserem rir, riam – [pausa] – O que é tão engraçado?!...
De repente, Paulie sentiu um impulso forte dentro de si. Tentara ignorar aquelas garotas por semanas... fingir que não se importava com todos aqueles cochichos. De fato, não se importava. Mas não agüentaria aturá-los. E seu temperamento estava prestes a explodir mais uma vez...
- Já sei!... Eu sou engraçada! – disse, em alto e bom som, forçando um riso irônico, enquanto levantava-se – Há, há, há, há, há, há!
Todas as meninas a observavam, surpresas. Ms. Bannet tinha quase certeza do que aconteceria depois... sentia que Paulie não estava bem. Mesmo com sua postura de seriedade, aproximou-se com estranha amabilidade e murmurou:
- Já chega...
- Há, há, há, há!
- Paulie, já chega! – disse, fazendo menção de levá-la dali.
Mas Eleanor não fora rápida o bastante. Paulie, em seu clímax de irritação, jogou o carrinho de pratos mais próximo com toda a sua força no chão, causando um grande estrondo. Pouco ligou para o que fizera. Correu depressa para fora do refeitório e bateu a porta logo atrás.
A bandeja com o café-da-manhã continuava intacta, na mesa...
Ms. Vaughn, que assistira à tudo perto de uma das portas, observou para onde a moça havia corrido. Não pretendia castigá-la.
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Faye Vaughn levara Pauline até sua sala particular. A moça parecia realmente contrariada, sentada em uma cadeira confortável em frente à mesa, enquanto a diretora a olhava com visível preocupação, encostada na janela que dava vista aos jardins.
- Seus pais estão muito preocupados com você, Paulie. Disseram que você não retorna as ligações...
- Eu não tenho pais! – retrucou, friamente.
Ms. Vaughn olhou de relance para as locações externas, dando uma pausa, procurando as palavras certas. Qualquer coisa já era capaz de tirar a garota do sério. Mas sentia um grande desejo de ajudá-la...
- Eu tive, uma vez, o que as pessoas chamam de colapso nervoso... quando eu era um pouco mais velha que você. – começou, calmamente, sentando-se na outra cadeira – Alguém me ajudou, Paulie... e hoje em dia fico muito grata por ela ter feito isso. Porque se não tivesse... eu não sei... eu era como um carro sem motorista.
Paulie a olhou intensamente, sem mudar a expressão no rosto:
- Devo permanecer neste mundo estúpido que, sem a presença dela, não valerá mais que uma pocilga?
A senhora a olhou, abriu a boca para responder alguma coisa, mas realmente não sabia o que dizer. Paulie ergueu as sobrancelhas, conformada.
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A garota Oster estava dando mais uma aula de vôo ao falcão, que estava mais saudável a cada dia. Pelo jeito, sendo muito bem cuidado.
- Você não vai cair... – murmurou a garota, erguendo o braço, fazendo o pássaro voar até o galho da árvore mais próxima.
Estava decidida a ensiná-lo a levantar asas de volta. Esticou o braço novamente e assoviou algumas vezes... esperou por um momento. O falcão não voltou. Não sabia ao certo como chamar por ele, mas...
- Yah! Yah! – gritou.
Paulie assoviou mais um par de vezes, sem sucesso.
- Yah! Yah!
O falcão levantou-se, então, imponente do galho, e pousou com razoável impetuosidade no antebraço da garota, fazendo-a rir de satisfação.
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As meninas estavam sentadas nas cadeiras em volta da sala, em uma silenciosa aula sobre Shakespeare. Ms. Vaughn caminhava lentamente, com um livro aberto sobre a mão, recitando passagens de Lady MacBeth. Pauline estava concentradíssima na leitura, acompanhando, repetindo aquelas frases tão simbólicas em silêncio.
- "Acorrei, espíritos que velais sobre os pensamentos mortais! Tirai-me o sexo e, dos pés à cabeça, enchei-me até transbordar da mais implacável crueldade! Fazei que meu sangue fique mais espesso; fechai em mim todo acesso, todo caminho à piedade, para que nenhum escrúpulo compatível com a natureza possa turvar meu propósito feroz, nem possa interpor-se entre ele e a execução! Vinde a meus seios e convertei meu leite em fel, vós gênios do crime, do lugar de onde presidis, sob substâncias invisíveis, a hora de fazer o mal!" – interpretou a professora, depois analisando o semblante das alunas – Então... alguma de vocês sabe sobre o que nossa amiga Lady M. estava falando?
Pausa. Ninguém se manifestou... algumas pareciam dormir de olhos abertos.
- Cordelia?
A garota, que parecia perdida no espaço, apoiando o rosto sonolento sobre a mão, deu um discreto pulinho em sua cadeira e pôs os óculos, assustada. Procurou o trecho no livro, meio desnorteada:
- Han... vampiros?
Todas riram, despertando para o momento. Paulie apenas girou os olhos com certo desdém, reprovando a estranha definição.
- Bem... eu nunca ouvi essa interpretação antes – disse Ms. Vaughn, entretida – Mas não deixa de ser válida, Cordelia... fale-nos mais...
- É... todo esse sangue... – disse a menina, franzindo a testa para seu livro.
- Pensando no almoço outra vez, Cordelia?
Ela não respondeu, apenas deu um sorriso amarelo. Faye Vaugh não conseguia repreender ninguém... desistiu de procurar respostas em Cordelia e deu uma olhada na classe, para então reparar na jovem Oster.
- Paulie? Você pareceu envolvida no texto...
- Na verdade, eu estava pensando se os Jakes vão ganhar a copa de novo... – despistou, olhando-a com estranha insegurança. Não sabia porque mas, naquela aula, depois de todos aqueles amargos dias, não estava à vontade para responder perguntas sobre trechos shakespereanos... seu temperamento andava altamente instável.
- Eu não acredito. Vi que você estava ouvindo...
Paulie não respondeu... fez um pequeno silêncio. Por que não a deixavam em paz? Por que não continuava lendo aquela droga e deixava ela quieta, no seu canto, sem que a turma inteira virasse para olhá-la?
Fitou a professora, friamente, e começou a levantar-se da cadeira.
- Vá se ferrar!
Dirigiu-se até a saída de cara amarrada e puxou a porta com bastante força. Claro, sua intenção era descarregar a raiva batendo a porta, mas o mecanismo localizado atrás da mesma impediu o estrondo...
Tori e Mouse se entreolharam. A classe começou a ficar agitada.
- Ahn... Paulie está passando por um momento difícil – disse Ms. Vaughn, calmamente. As pessoas sabiam o que acontecera a ela, mas não imaginavam que sofresse tanto... tampouco que suas emoções se acumulavam em uma esfera de irritabilidade – Bem, agora... eu deveria expor minha interpretação? Eu acho que Lady MacBeth...
- Ela quer ganhar coragem – disse Mary, interrompendo-a no ato, encarando seu livro.
Faye virou-se até ela, surpresa com a resposta. Mouse sempre ficava quieta em suas aulas, sem manifestações... gostou da atitude da garota e ficou curiosa em saber o que tinha a dizer.
- Sim, Mary...
- Para que ela faça o que deve ser feito – continuou, erguendo então o rosto e olhando-a por trás dos óculos – mas o seu lado mulher não quer... então ela diz para tornar seu leite fel, e eu acho que fel é veneno... Mas o que aconteceria com o bebê? O bebê morreria... E ela não quer se preocupar com isso... não quer se preocupar... como um homem. Homens não ligam pra isso.
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Mouse e Victoria desciam as escadas para o primeiro andar, logo após o término da aula, se enfiando entre as várias meninas que passavam.
- Eu gostei do que você disse sobre aquela estrofe assustadora de Shakespeare.
- Gostou? – sorriu Mouse, pisando no primeiro degrau.
- Eu queria ser assexuada... isso só causa problemas, sabe?
Parecia uma espécie de atração sobrenatural... Tori virou os olhos até os armários do correio. Lá estava Paulie, parecendo ter acabado de retirar algo de sua portinhola, estranhamente assustada e surpresa. Mas não queria encontrá-la... passava as horas a evitar a garota.
- Vejo você mais tarde! – disse à Mary, seguindo pelo corredor, antes que Paulie a visse.
Mary ia em direção ao seu armário quando uma Paulie muito excitada veio ao seu encontro, sorrindo de ansiedade como há muito tempo não sorria.
- Leia! – exclamou, entregando-lhe um envelope.
- Em voz alta? – perguntou, admirada. Reparou então que era a resposta da carta que Paulie escrevera à mãe verdadeira.
- É, leia logo!
Mouse sorriu e começou a rasgar o envelope depressa, retirando uma folha de papel e começando a ler:
- "Cara senhorita Oster... depois de muita dificuldade, conseguimos localizar sua mãe biológica – repentinamente, o entusiasmo da voz de Mary foi se esfumando – Mas sentimos em lhe informar que ela não quer entrar em contato com você no momento..."
Mary ergueu a vista para a amiga e viu que seu sorriso desaparecera por completo, dando lugar a uma expressão frustrada.
- Quer que eu continue lendo?...
Paulie franziu a testa e balançou a cabeça, negando, realmente transtornada... tomou a carta das mãos de Mary com delicadeza e virou-se para o corredor, girando o rosto tristonho novamente, tentando evitar que a garota a fitasse... estava prestes a chorar.
Mouse sentiu um aperto no peito. Pobre Paulie...! E agora, o que faria?
- Sinto muito, Paulie... – murmurou, apertando seu ombro.
- Não... o quê? - esquivou-se a garota, como se não fosse digna de pena, sem se virar – Ela tem uma vida! Ela tem o direito de viver a vida dela... Mouse...
Pauline apertou os lábios para não deixar as lágrimas escorrerem e bateu a mão com força no quadro de boletins, pregado na parede. Saiu correndo direto ao dormitório. Mary a acompanhou com o olhar triste, repleto de compaixão... pensou em segui-la, mas isso só iria atrapalhar. Decidiu deixá-la um pouco sozinha. Virou-se então e começou a caminhada pelo corredor.
Mas... era a mãe dela. A mãe verdadeira. A última esperança de Paulie acabava de escorregar pelo ralo... para sempre.
