Notas iniciais: Aqui está a última parte de "A outra metade do amor" n.n. Boa leitura! E se emocionem...

XX

A casa secreta

"Amar alguém é ser o único a ver um milagre invisível aos outros."

            Faltavam alguns minutos para o meio-dia de sábado.

Paulie e Mary dirigiam-se sigilosamente até um dos corredores do colégio, tomando cuidado para ninguém vê-las, aproximando-se da vitrine onde havia as espadas de esgrima e alguns prêmios.

Paulie amarrara uma bandana avermelhada em volta da testa. Estava preparada.

Pegou o extintor de incêndios pregado na parede e o atirou contra o vidro. Olhou para os dois lados rapidamente e aliviou-se ao confirmar a ausência de alunas, depois que o vidro se estilhaçou. Apanhou com destreza as duas espadas e jogou uma a Mary, que a acompanhava na aventura.

A guerra estava declarada... a mocinha ergueu a espada em frente ao seu corpo e a beijou brevemente.

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            Joe Menzies estava no jardim queimando uma porção de madeira. Fazia muito tempo que não conversava com Mary, mas pôde avistá-la correr junto da amiga em direção à floresta. Paulie ia na frente, gritando para chamar o falcão até ela, mas quem a visse poderia pensar que estava louca...

            O jardineiro apenas balançou a cabeça... pensou, talvez, que as duas fossem aprontar alguma travessura. Onde já se viu... disparar daquele jeito para o meio das árvores, levando floretes de esgrima?

            A tal "clareira do leste" não ficava muito longe. Era uma abertura entre os arbustos, onde não havia árvores, boa o suficiente para o que Paulie propunha para Jake Holander. Mouse sabia desde o primeiro dia em que caminharam que a garota era uma ótima corredora, mas estava se esforçando para alcançá-la. Paulie deu uma olhada para trás um par de vezes, voltando a seguir em diante, sabendo que a companheira a seguiria mesmo estando para trás.

            O falcão grasnou alto, respondendo à amiga, e pousou em uma árvore próxima a Joe. O homenzinho se assustou ligeiramente com o bicho e o olhou de baixo, admirado.

            A garota Oster abriu a mochila e retirou sua blusa de frio cinza, com a qual o falcão já estava acostumado, e começou a vesti-la, enquanto o procurava com os olhos.

- Yah!

O pássaro reconheceu o chamado e levantou vôo no mesmo instante, acompanhado ainda pelos olhos do jardineiro. Paulie esperava pacientemente por sua chegada, com o braço erguido à sua frente, quando ele então pousou com certa delicadeza. Mouse já havia alcançado-na, não muito ofegante... continuava calada, misteriosa, sem saber o que a amiga estava pensando.

- Ela está pronta – disse Paulie, referindo-se ao falcão.

Já era hora. Como por passe de mágica, por trás de algumas árvores ali perto, apareceram Jake, Phil e John. Estavam aparentemente alegres e risonhos, com um toque irônico em seus sorrisos, achando graça nas duas garotas que carregavam floretes e um falcão consigo.

- Que droga é essa? – riu Jake, aproximando-se.

- É seu bichinho de estimação! – disse John.

- Ohh! – caçoou Jake.

Paulie apenas os olhou, com seriedade em seu rosto. Seus olhos estavam tão frios... determinados...

- É um matador – disse.

- Bem... aqui estou, Paulie. O que quer fazer? Lutar comigo? – perguntou o rapaz, com sarcasmo, enquanto ela balançava o braço e fazia o falcão voar – Você e seu pássaro? Mas eu vou te avisar... eu faço parte da equipe de luta livre.

Paulie jogou a espada para ele, que a tomou, sem compreender muita coisa.

- Oh, entendi... uma luta teatral... vamos fazer uma luta teatral?– brincou, estufando o peito e fazendo cara exagerada de herói – Eu interpretei Laertes, em Hamlet, no ano passado... eu posso fazer isso... vai ser divertido...!

Jake começou a imitar todos os movimentos que Paulie, não ligando para suas ironias,  fazia com a espada e a mão. Os garotos olhavam de longe, entretidos, e Mary observava com atenção.

O duelo iniciou.

- Psss, pssss... – chamava Holander, caçoando, como se a garota fosse um cachorrinho.

- Vamos lá, Paulie – gritou Mary (achando que tudo não passava de uma "brincadeira"), enquanto os garotos torciam por Jake. Sentia-se mais segura porque sabia que lutava esgrima como ninguém – Tome cuidado!

Paulie conseguiu golpeá-lo na mão sem grandes dificuldades. Jake assustou-se, mas não o bastante para parar de provocar:

- Façam suas apostas, meus amigos!

- Isso é pelo meu amor! – exclamou Pauline, sem baixar a guarda.

- Está falando de Tori?! Caia na real! Ela te odeia... mas não tem coragem de te dizer...

- Ela me ama... – retrucou, fazendo-o andar para trás.

- Pare de dizer asneiras, Paulie! Tori é minha namorada.

Os dois recomeçaram o atrito entre as espadas, com movimentos ágeis e astutos – mais da parte da garota – quando Paulie, num descuido de seu adversário, deu uma rasteira e o derrubou no chão.

Jake ficou imóvel... ela rapidamente pôs a ponta da lâmina da espada em seu queixo e foi descendo lentamente pelo peito e ventre...

- Desista dela!

- Paulie! – exclamou Mouse. A garota agora começava a preocupar-se de verdade. O que a amiga pretendia com aquilo, realmente? Não era um duelo de faz-de-conta?

- Diga "eu desisto dela" – continuou, quando já estava pressionando a perna direita do garoto, ameaçadora.

- Vá se ferrar!

Paulie então, no extremo dos seus limites, gritou com todas as forças e cravou a ponta da lâmina na pele de Jake, fazendo-o exclamar de dor e susto. O sangue começou a escorregar...

- Paulie, nãaaao! – desesperou-se Mary Brava, estatelada com o que ela acabara de fazer. O assombro tomou conta de si... Paulie não estava bem. Nada daquilo era brincadeira. Estava acontecendo de verdade. 

- Sua vaca! – rosnou Holander, deitado na grama e agarrando a perna.

- Paulie! – chamava Mary, sem ação, sentindo um emaranhado de emoções embrulhar-lhe o estômago.

- Filha da mãe!

John e Phil correram até o amigo e se agacharam, tentando fazer alguma coisa que estancasse o sangue. Rasgaram um pedaço da própria roupa para amarrar na canela, enquanto a causadora daquilo ficara estática, não sabendo a qual mundo pertencia.

Mary agora gritava e chorava ao mesmo tempo. Correu até a moça e a empurrou para longe dos rapazes, começando a balançá-la, querendo uma reação... uma explicação...

- O que você está fazendo? O que está fazendo?!

- Sua louca desgraçada! – continuava Jake a xingá-la.

Paulie a fitou, confusa e transtornada como nunca. Não tinha a intenção... não sabia mais aonde estava, o que fazia, o que seus sentimentos agora demonstravam. Saiu correndo por um atalho, veloz, gritando...

As lágrimas de Mary rolavam sem parar. O desespero tomou conta de seu corpo... não compreendia como Paulie fora capaz de tal ação, o porquê de tanta confusão dentro de si. Agora começava a entender. O seu mundo estava desabando de vez... o último pedaço que restara estava se esfumando, segundo por segundo... de repente, o coração de Mary disparou. Precisava deter a amiga.

Saiu em disparada, de volta ao internato.

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            Victoria e as outras alunas jogavam uma divertida partida de futebol. Ms. Bannet e Ms. Vaughn estavam torcendo, sentadas sobre uma toalha de piquenique, tomando café.

            Mouse corria como nunca em direção ao campo, aos prantos. Parecia histérica! A calma e quieta Mary, histérica...

            As professoras a viram e se levantaram, preocupadas, não sabendo de nada do que acontecera. Tori a olhou, estranhada, franzindo a testa... começando a caminhar em sua direção. A partida acabava de ser interrompida. Mary parou em frente a ela, tentando regular a respiração extremamente rápida. Ainda chorava, com o rosto rosado molhado de suor e lágrimas, mas antes que conseguisse dizer alguma coisa, o grito estridente do falcão pôde ser percebido por todos que estavam ali, impedindo-a.

            Os olhares dos presentes se ergueram para o céu e acompanharam o vôo do pássaro, que seguiu na direção de Paulie Oster, parada no topo do telhado do colégio, e então pousou em seu braço... como sempre fazia...

            Como ela fora tão rápida? Tão rápida que fora capaz de chegar antes da própria Mouse...?

- Paulie... Paulie, por favor... – sussurrava Mary, sem forças... achando que tudo agora estava perdido, que chegara tarde demais.

O semblante de Tori mostrava agora notável preocupação... estava trêmula, estatelada, com o coração a galopar violentamente. Todos fitavam Paulie chocados, assombrados com o que ela poderia fazer, não entendendo nada do que estava acontecendo.

- Farei uma cabana de salgueiro em seu portão, e meu espírito entrará em sua morada... – recitou a jovem Oster. 

Tori começou a tremer mais ainda. Seu queixo batia... sentia a cabeça pesada, as imagens escuras, um nó na garganta, um aperto no peito... estava com medo.

- ...lanço-me para dentro da casa secreta... – murmurou Paulie, com seu rosto angustiado.

Ela lentamente abriu os braços, como fizera uma vez, quando queria voar...

Victoria abriu mais os olhos. Não podia ser, não... não assim... agora entendia o horror daquilo tudo. Entendia o que estava claro, mas não queria entender...

- Paulie!! – gritou, a todo pulmão.

Já era tarde... e de nada mais adiantava. Nada iria impedi-la. Paulie se deixou levar e pulou do telhado... no mesmo instante em que o falcão se desprendia de seu braço.

Todos tiveram que engolir seu grito. Seus olhares... repletos de assombro e choque... se fixaram no pássaro, que voava lenta e misteriosamente em volta do colégio.

"Querida mãe, eu quase perdi você também, não foi? Mas o amor puro que você me deu antes de morrer foi como uma chama, sempre lá... queimando... e, assim como o falcão, aquela pequena chama foi tudo que eu precisei para enxergar na escuridão. Obrigada, mamãe, por me salvar da escuridão... Paulie... ela não conseguiu isso. A escuridão tomou conta dela... E ela teve que voar para longe... Eu ainda sonho com ela todas as noites. Acho que sempre sonharei... Você sabe, eu posso lembrar-me do seu rosto agora... Sempre que penso em você eu olho para cima e vejo seu rosto. O rosto da minha mãe, como uma chama cortando o céu..."   

            Pauline era como o falcão ferido... ferido, com a asa quebrada, desejando um dia voltar a voar. Mas seu destino foi distinto... sua ferida não, nunca iria cicatrizar, e ela precisou voar para longe, como desejou um dia!, mas por um outro caminho. Um outro... porque já não existiam mais escolhas.

            E o seu mundo, desmoronado, que insistia em esmagá-la por causa de um amor sofrido, poderia deixá-la livre para sempre...

            Você pode ser a única pessoa no mundo. Mas, para alguém, voc é o mundo...

FIM