"Fuja... Fuja... Fuja para longe, não deixe eles te pegarem... Corra antes que seja tarde. Vá!"

"Não, não papai, não vou deixá-lo!"

"Corra, filha, vá agora! Eu vou ficar bem, confie em mim, eles não vão me pegar! Agora fuja!"

"Pai..."

"É uma ordem, saia daqui!"

- Menina... Acorde... – uma voz me chamava. Eu abri os olhos lentamente e com dificuldade. Vi uma senhora de cabelos brancos, com alguns fios cobrindo seus olhos cinzentos cansados. Ela passava a mão delicadamente pelo meu rosto e sorria bondosamente. – O que está fazendo uma menina tão bonitinha e tão pequena aqui? Está muito frio, criança, vamos... 

Foi então que eu vi que estava começando a nevar. Eu não conhecia o lugar em que estava. Tinha acabado de me levantar do chão de uma calçada. Eu olhei para todos os lados assustada.

- Onde estão seus pais, criança? – ela me perguntou, abaixando-se com dificuldade para ficar da minha altura. Eu pensei e pensei. Não sabia onde estavam meus pais.

- Eu... eu não sei – respondi. Ela olhou confusa para mim e esboçou um sorriso, talvez para me acalmar.

- Como se chama? – ela perguntou. Eu parei e pensei novamente. Eu não sabia meu nome... O que estava acontecendo? Quem eu era? E minha família? Aliás, eu tinha uma família?

- Eu não sei... – eu respondi, olhando para o chão e vendo a neve que o molhava. A velha senhora me olhava com pena e parecia não saber o que fazer.

- Não lembra de nada do que te aconteceu? – ela me perguntou, pondo a mão no meu ombro. Eu fiz que não com a cabeça. - Por que estava dormindo na calçada? – ela tentou.

Eu fechei os olhos, tentei me lembrar de alguma coisa e só consegui lembrar do sonho que estava tendo. Contei a ela. Ela me abraçou e sussurrou: "Pobrezinha..."

- Venha, vou te levar a minha casa, lá tem outras crianças com quem poderá brincar, querida... – ela disse, ficando de pé novamente.

Fomos andando pela neve até chegarmos a uma casa enorme, parecida com uma mansão. Tinha os portões de ferro e vários rostos de crianças nas janelas de vidro. Elas olhavam para mim curiosas e algumas até sorriam. Entramos e várias crianças vieram ao nosso encontro e começaram a perguntar quem eu era.

- Ela precisa descansar, crianças... Teve uma noite cheia, vão brincar! – a senhora mandou. As crianças foram, pouco a pouco, se afastando e eu segui com a senhora por uma longa escada. Ela me encaminhou para um quarto grande, claro e com várias camas. Ela andou até um armário e tirou um vestido amarelado e velho.

- Não é chique, mas é o que posso lhe dar para vestir – ela me disse, estendo o vestido. Eu peguei e sorri. – Agora, criança, venha comigo, precisa tomar um banho quentinho.

Eu a segui até um banheiro, tinha um chuveiro e algo parecido com uma bacia grande de madeira, mas que não era uma banheira. Ela aqueceu a água e me deu banho. Depois me vestiu e eu me senti bem melhor. Estava quente, seca e limpa. A senhora sorriu para mim e disse que deveria estar morta de fome. Foi só aí que eu senti que meu estômago roncava.

- Vamos, vou lhe dar algo para comer e fazer um chocolate quente – ela disse, dirigindo-se para fora do banheiro.

A cozinha era ampla e quentinha por causa do fogão. Tinha uma mesa comprida com dois bancos também compridos, um de cada lado. Deveria ser ali que as crianças comiam.

- Quem é nossa nova hóspede? – perguntou uma jovem de longos cabelos castanhos presos em um rabo-de-cavalo, olhos igualmente castanhos. Ela era alta e sorria para mim, limpando as mãos num pano. Estava fazendo comida.

- Vamos descobrir isso agora, Pâmela... – a senhora disse, sorrindo e sentando-se na mesa, convidando-me a fazer o mesmo. – Vamos, ponha um prato para a mocinha.

- Mas dona Matilde, não tem almoço pronto ainda – Pâmela informou. Então o nome da senhora era Matilde.

- Então dê o que sobrou do café da manhã e faça um chocolate quente! Vamos logo, não vê que ela está com fome? - a senhora bradou. – Desculpe falar assim, querida... É que são muitas crianças e a comida às vezes é pouca... Mas sempre dá para mais um! – ela disse, sorrindo. Eu sorri sem graça, devia estar dando trabalho...

- Aqui está. Não é muita coisa, mas é o que temos – Pâmela disse, colocando um pedaço de pão com queijo e presunto e uma caneca de chocolate quente na minha frente.

- Obrigada – eu disse sem graça e comecei a comer. Parecia a coisa mais deliciosa do mundo!

Quando eu acabei de comer, elas me perguntaram se ainda tinha fome, eu disse que não. Então dona Matilde começou a me perguntar coisas sobre meu passado. Mas eu não sabia o que tinha acontecido, eu não sabia quem eu era... Eu não sabia quem era o meu pai, o homem do sonho. Eu não tinha nada comigo, nada. Perguntaram-me se eu não tinha nem uma vaga idéia do meu nome, eu pensei e pensei... E depois de muito pensar, eu comecei a esboçar:

- Me... Mel... Mel... – uma voz ecoava no meu ouvido, mas eu não conseguia lembrar do resto. – Melo... Mel. – eu desisti.

- Mel? – Pâmela perguntou.

- Sim... Mel – respondi.

- E sua idade? Sabe sua idade? – dona Matilde perguntou. Isso eu me lembrava, era a única coisa da qual eu me lembrava. 

- Oito, tenho oito anos.

- Muito bem, Mel, esse é seu novo lar agora, mocinha.

"Seu novo lar agora..." Mas será que eu já tinha tido um lar? Bom, esse era o meu único e primeiro lar...

Eu fiz amizade com todas as crianças, menos com uma menina. Vanessa era uma menina linda. Tinha os cabelos louros no ombro e os olhos eram de um verde penetrante. Era um ano mais velha que eu e era dona de uma personalidade forte e cruel. Ela fazia maldades com as outras crianças e enfrentava os mais velhos. Mas nunca fora adotada. Sim, eu estava agora num orfanato... E só Deus sabia se eu seria adotada...

Quando eu tinha nove anos, Matilde disse que um mágico iria ao orfanato. Todas as crianças ficaram excitadas. Mas eu não sabia o que era um mágico.

- O que é um mágico, Pâmela? – eu perguntei, uma noite na cozinha, um dia antes de ele chegar.

- Ah, Mel... Ele faz mágica! Ora essa, nunca ouviu falar de um mágico? – ela me perguntou, incrédula.

- Não... - eu respondi inocente.

- Certo, ele faz magia, transforma um copo num rato e pode tirar dez coelhos de uma só cartola! – ela me dizia animada.

Magia... Magia... Essa palavra me era muito familiar...

Eu agradeci pela explicação e fui para o meu quarto dormir. Na manhã seguinte todos só falavam do tal mágico...

Até que ele chegou. Era alto, vestia preto, tinha olhos azuis e os cabelos bem claros.

Todos sentamos no chão e ele ficou atrás de uma mesa. Primeiro ele mostrou as duas mãos que estavam vazias. Pegou um copo, passou pelas costas e na outra mão apareceu um canário. Todos aplaudiram, menos eu. Ele perguntou se alguém queria tentar, e puxou cada um da primeira fila. Nenhum deles conseguiu. Até que chegou a minha vez. Eu olhei para o copo em cima da mesa e coloquei toda a minha atenção nele, focalizando a imagem de um canário.

Todos arregalaram os olhos quando o copo começou a brilhar e a transformar-se num canário. Logo depois eu caí desmaiada no chão.

A partir daquele dia, ninguém chegava mais perto de mim com naturalidade e isso me incomodava muito.

Mas o que tinha me feito fazer aquilo? O quê? Por quê? Como? Eu não entendia... Eu entendia aquilo menos do que meu passado. Todos me olhavam com o canto do olho e tinham medo quando eu tocava num copo. Era como se tivessem medo de um canário!

Então eu fiquei com medo de olhar e pensar muito em alguma coisa.

Quando fiz onze anos, apareceu uma marca no meu pescoço, uma flor, uma flor-de-lis.

Mais uma pergunta sem resposta na minha vida. Como aquilo tinha parado ali?