[Dois anos depois...]
- Crianças, amanhã é dia de visita, eu quero todos muito bem arrumados e comportados, está bem? – dona Matilde falava, enquanto jantávamos. Sempre que falava isso, todos já sabíamos: no dia seguinte viriam adultos, casais, no orfanato para nos adotar. Quase todas as crianças ficavam extremamente excitadas e se tornavam anjos, mas algumas poucas não queriam se separar de Dona Matilde ou de Pâmela, ou perderam as esperanças de serem adotadas, como eu.
Acabamos o jantar e Vanessa não tinha parado de falar durante o jantar todo que seria adotada. Eu não colocava muita fé nisso. Todos foram para os quartos e eu dei uma escapulida para o jardim. A lua estava encoberta pelas nuvens, apesar de ser verão. Eu deitei sobre a grama e fiquei olhando o movimento das nuvens.
- Mel...? O que faz aqui, menina? Tem que dormir, amanhã é um grande dia! – era a voz de Pâmela.
- Não pra mim, Pâm... – eu respondi, não tirando os olhos do céu.
- Ora, por quê? – ela sentou-se do meu lado.
- Quem iria me adotar? Uma menina feia como eu? E além de tudo eu sou velha demais. Eles querem bebês ou criancinhas... – eu falei friamente. Eu não tinha mais nenhuma esperança. Eu iria ficar no orfanato até que me pusessem para fora.
- Ah, menina... Você não é feia, de onde tirou isso? – ela me perguntou, tirando os cabelos que caíam pelos meus olhos. Eu olhei para o outro lado e respondi o que era mais óbvio.
- Olha os meus cabelos, não são tão bonitos quanto os da Vanessa... Quanto os seus! São tão sem graça! Meus olhos não me dizem nada, não brilham, não demonstram qualquer sentimento que eu queira demonstrar! Eu sou pálida como um fantasma... Sou magra demais, alta demais! Eu sou horrível, Pâm... – ela olhou para mim como se sentisse pena e isso me fez sentir ainda pior.
- Mel, cada um tem sua beleza e ninguém se compara a ninguém. Seus cabelos só precisam de um tratamento porque estão muito ressecados! Seus olhos, Mel, seus olhos são lindos, eu posso ver o azul deles a quilômetros! – ela dizia. Eu me sentia cada vez mais a Branca de Neve, tirando a parte da madrasta e dos lábios rubros como a rosa.
- Pâm... Não é isso que importa, a verdade é que eu nunca serei adotada – eu disse, tentando acabar com aquela conversa que não iria levar a nada. – Bom, eu vou dormir... Amanhã é um grande dia, não é?
- É... – eu me levantei e ela me seguiu com o olhar até que eu entrasse na casa. Não sei até que horas ela ficou lá, mas eu fui dormir.
Pâmela tinha um namorado, Raphael, o mágico. Ele não gostava muito de mim... Acho que tinha medo de mim. Mas enfim...
No dia seguinte eu acordei com a barulhada que estava no quarto. Todas as meninas já estavam acordadas, inclusive Vanessa, que mexia incontrolavelmente no cabelo perguntando se estava bom. Eu ainda estava com o rosto amassado e os cabelos em pé. Fui ao banheiro e lavei o rosto, olhando bem para os meus olhos. Pâmela tinha razão, eles eram muito azuis, tanto que chegavam a me incomodar! E eu não combinava mesmo em nada, meus cabelos antes eram louros, foram escurecendo e agora estavam quase pretos! Além daquela flor estúpida no meu pescoço! Dei um jeito no cabelo, troquei de roupa e saí do banheiro. Estava uma confusão ainda maior lá embaixo... Dona Matilde tratava de arrumar as crianças, costurar furos nas roupas... Pâmela estava arrumando a casa toda, não deixando nada fora do lugar.
Eu estava com fome, mas estavam todos tão ocupados que eu fui para a cozinha e só comi um pedaço de pão velho. Depois fui para o jardim e me encolhi num canto, na esperança de que ninguém sentisse a minha falta. Sempre quando chegavam os casais, eles olhavam criança por criança. Olhavam-me de cima à baixo e desistiam. Antes eu chorava, agora nem me importo mais. Eu me conformei. Vou ficar no orfanato ajudando a Pâmela e dona Matilde a cuidar das crianças, da casa e quando fizer dezoito anos eu vou embora fazer minha vida. Pelo menos eu aprendi a ler, escrever, cuidar da casa... Quem sabe eu possa ser garçonete de algum bar? Isso seria bom! A maioria dos que saíram daqui foram trabalhar na peixaria... E eu não gosto nada de peixes... Eles fedem!
- Mel, Mel!! Onde você está, menina?! – era a voz de Pâmela, ela sentiu minha falta. "Ah, mas que droga!", pensei. – Aqui! Vamos, vamos, eles chegarão a qualquer momento! Não pode ficar aqui fora!
- Pâm, eu não quero ir, me deixe aqui, por favor... – eu quase implorava.
- Não posso, querida... Todas as crianças têm de estar lá... Vamos, faça esse esforço por mim? – ela me pediu, juntando as mãos e sorrindo. Eu me levantei e fui. Não conseguia dizer não à um pedido dela. Era quase uma mãe para mim!
Ela também foi uma das crianças do orfanato, mas dona Matilde deixou-a ajudando no orfanato.
Fiquei sentada numa cadeira por nem sei quanto tempo até que os casais começaram a chegar. Eles iam direto aos bebês e crianças menores. Só passavam o olho por nós. Uma mulher veio ao meu lado e me perguntou várias coisas, eu só respondia sem estender assunto. Depois ela parou e olhou bem nos meus olhos por algum tempo. Levantou-se e foi ver outra criança. Eu não entendi. Mas ainda bem que não gostou dos meus olhos! Eu não gostei do jeito dela...
O dia passou lentamente e sem nada de interessante, só essa mulher se preocupou em olhar para mim.
No final do dia Vanessa estava inconsolável e criava mil desculpas para não ter sido adotada. Eu tive pena dela. Rebaixou-se tanto! Ela era tão fraca que me dava náuseas...
- Pâm, o que acha que eu vou fazer quando sair daqui? – eu perguntei, enquanto ela terminava de arrumar a mesa.
- Você vai ser uma advogada, será rica e terá muitos filhinhos, Mel – ela me respondeu, sorrindo. Eu suspirei. Ela era a única, com dona Matilde, que queria a minha felicidade!
- Eu só seria uma advogada se eu fosse adotada, eu não vou ser...
- Seja adotada ou não, Mel, você terá um futuro ótimo, viu? Eu confio em você... – ela me disse, passando a mão pelo meu rosto. Eu sorri, me levantei e fui para o quarto.
O que mais me incomodava na vida era eu não ter um passado antes do orfanato. Era eu não me lembrar de nada. Só aquele sonho que me fazia a cabeça girar de perguntas. Quem era meu pai? Do que estávamos fugindo? Por quê? Eu queria tanto ter uma família... Tanto... Mas não queria ser adotada, eu queria a minha família, minha mãe, meu pai. Será que eu tinha irmãos? Se um dia eu encontrasse a minha verdadeira família, se é que ainda estavam vivos, será que eles me aceitariam de volta?
Para mim, eu era um enigma cheio de perguntas sem respostas claras. Para o mundo, eu era apenas uma menina sem nenhum passado e nenhum futuro...
