Ato II – Os desígnios do destino
Há quanto tempo vagava pela Terra sombria?
Muito, muito tempo.
Quando foi a última vez em que teve a chance de rever seus objetivos, de reavaliá-los?
Muito, mas muito tempo.
Anos, na verdade. Enfrentou muitas dificuldades desde então, mas nunca desistiu.
E, desde então, já haviam se passados cinqüenta anos.
Cinqüenta anos... meio século dedicados a um único objetivo. Vagou pelo mundo inteiro em busca de meios para atingir seus planos, muitas vezes esteve frente a frente com sua própria destruição - especialmente quando teve o desprazer de cruzar o caminho do maldito Youkai cachorro. Afinal, o que tal criatura fazia em um reino humano? - mas sempre seguiu em frente, sendo guiado pela sua eterna ambição.
E agora, mais do que nunca, ele podia se vangloriar de algo muito, mas muito importante: Conhecimento é poder.
Mais conhecimento concede mais poder ainda.
Era irônico voltar ao local aonde seus planos fracassaram - ou melhor, sofreram um razoável atraso. Nunca fracassou e não seria agora que tal coisa iria acontecer - mas havia um pingo de verdade nisso tudo: ele nunca, mas nunca havia desistido do coração da sacerdotisa.
Ele para, observando o local. Havia algo diferente ali, como se alguma coisa de diferente tivesse acontecido. Demora alguns minutos para ele se dar conta de algo muito, mas muito importante.
Não os sentia. Nenhum deles.
Era como se todos os Youkais que ocupavam a região tivessem desaparecido de uma hora pra outra. Nem mesmo Youkais menores conseguia sentir. Ouviu as histórias acerca daquele local, mas nunca imaginou que fossem tão... verdadeiras.
Algo que, por si só, não era interessante. Vagou muito, esperou tempo demais para ser interrompido.
Ele vira o corpo, observando os arredores. Não lhe agradava nem um pouco a idéia de perder tempo, logo tinha que tomar algumas providências para não ser interrompido...
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Já havia amanhecido há muito tempo e, a respeito da agitação no vilarejo, ele continuava seu trajeto.
Mais um dia, mais uma vida, era o que costumava dizer. Viver um dia de cada vez, era a única coisa que lhe era de direito.
E, a julgar pelo modo que as pessoas NÃO o encaravam, alguma coisa realmente interessante deveria estar acontecendo, apesar dele não se importar nem um pouco. Já tinha problemas demais, pensava.
Mas que era algo curioso, era. Todos sabiam de PARTE de sua história e, mesmo ele habitando naquele local há alguns meses, ainda haviam muitos que o olhavam com certo receio.
Mas não os culpava, afinal de contas, para eles, ele era um monge desvirtuado.
- He - ele balançava a cabeça, analisando seriamente o que acabara de pensar - nem ao menos isso eu posso me considerar...
Ele entra na estalagem da vila, procurando uma mesa. Alguns minutos depois a dona o atende, colocando uma xícara de chá e alguns pães na mesa. Já fazia algum tempo, pensava. Haviam se passados alguns meses desde que chegara naquele lugar, mas preferia não pensar em tal coisa.
Dinheiro não carregava, há tempos perdera o interesse pelo mesmo. Em contrapartida, ajudava a todos ali da melhor forma possível para pagar pelas suas despesas. Arrumava a estalagem, varria o chão, trabalhava na plantação do vilarejo, ensinava as crianças – e outras pessoas interessadas em aprender a ler e escrever – entregava cartas para outras vilas...
Paz. Ainda não havia alcançado-a, mas era o mais próximo que ele teve de tal coisa após anos de sofrimento.
Eram situações como aquela que o faziam esquecer de todos os seus pesadelos. Mas ele não reclamava. Se aquele era o preço que ele deveria pagar pelo seu crime, se era aquela a punição pelo crime hediondo que cometeu, então a aceitava de bom grado.
Afinal, em momento algum duvidou de que fosse o pior dos seres a vagar pela face da Terra.
- Pensativo, meu jovem? – a dona da estalagem se aproximava – o que houve?
- Nada demais. Apenas um sonho não muito agradável.
- Quer dizer, um pesadelo?
- Não... foi um sonho, mesmo.
- Por que não tira o dia para descansar? Você organizou o estoque ontem – ela passava o dedo de leve na mesa – e ainda fez uma faxina geral na estalagem, ainda posso sentir o cheiro do sabão pelo chão. Por que não descansa um pouco, vai dar uma volta?
- Obrigado, mas não consigo ficar sem fazer nada. Deve ter alguém precisando de ajuda em algum lugar por aqui.
- Você é um rapaz tão prestativo... apesar de alguns ainda o olham com desconfiança, muitos daqui gostam de você, sabia?
- Eu não os culpo – e sorvia mais um gole – mas obrigado pela sua hospitalidade, de qualquer jeito.
- Sabia que algumas garotas daqui não tiram os olhos de você? É jovem, educado, muito bem prendado... por que não vai se divertir um pouco? Tenho certeza que deve haver alguém no vilarejo que lhe seria uma excelente companhia. Um jovem como você não se encontra tão fácil, por que não tira o dia para "caçar" uma garota?
- Obrigado – e se erguia – mas eu prefiro não me envolver muito com as pessoas, a senhora sabe disso. Na verdade, não pretendo ficar muito por aqui.
- Você vai embora?!?!? – ela se sentava, surpresa – mas... por que? Alguém te tratou mal? Andaram te perseguindo? Se foi isso, eu...
- Não, não é nada disso – e dava um sorriso singelo – é o meu jeito de ser, só isso. Vocês têm sido muito gentis comigo, e sempre estarei em débito com todos. – e caminhava para fora do recinto, deixando a senhora ali, preocupada.
Mais do que isso, pensativa. Por diversas vezes já tentou entender o que era aquilo que remoia o peito daquele jovem, o que o fazia sofrer tanto. Mesmo que ele demonstrasse aquele eterno semblante de alegria, sabia que ele carregava uma ferida muito grande dentro do peito.
Claro, o fato dele não ter se apresentado pelo seu nome – "eu não o mereço", eram suas palavras – aumentava ainda mais sua surpresa.
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- Estamos nos aproximando de onde ele está – a sacerdotisa guiava a exterminadora de youkais.
Na verdade, sentia-se levemente – não, extremamente – incomodada com aquilo. Quando jovem conheceu a Vila das Exterminadoras, mas isso foi em uma de suas andanças pelo mundo em busca de conhecimento e experiência, nunca imaginou ver uma delas ali, em seu próprio vilarejo.
Sabia que aquela jovem estava lhe fazendo uma cortesia, "pedindo licença", pois pelo que conhecia daquelas amazonas, ela poderia muito bem ter entrado no vilarejo sem ser percebida.
Na verdade, nem precisaria de ajuda para encontrar o Hanyou que sua irmã aprisionou em um sono profundo.
- Pronto, eis o dorminhoco – ela parava diante do "ponto turístico" do vilarejo – satisfeita?
- Uma flecha no peito – ela se aproxima, abaixando-se próxima dele e fitando-o – há uma força muito poderosa aqui, disso eu tenho certeza.
- Oh, como fui me esquecer? – e cruzava os braços, com um sorriso desdenhoso – você não conseguirá se aproximar muito dele, minha jovem. Disso eu lhe asseguro.
- Mesmo? – e retirava a luva que cobria a mão direita, apontando-a para o Hanyou. A sacerdotisa arregala os olhos quando vê a jovem tocando na face dele, erguendo seus cabelos e acariciando sua testa.
- O que? – ela observava aquilo, muito surpresa – mas... mas... você É uma exterminadora de youkais, como...?
- O objeto místico que este ser almejava teve sua origem na minha aldeia – ela tocava no queixo dele, erguendo sua face – a história dele é conhecida, não fique surpresa. – e se erguia – assim como a história da sacerdotisa que o selou. – e ajeitava os cabelos – mas com o tempo, parte do conhecimento foi perdido ou deturpado. Mas eu não os culpo. As pessoas, em sua maioria, tendem a ser felizes com o que sabem, mesmo que isso seja muito pouco.
A sacerdotisa continua fitando-a até que, unindo as mãos, analisa a mulher diante dela, observando todo o seu ser, fazendo uma varredura completa de sua alma.
Não é o fato de ter descoberto algo que a deixa surpresa... mas sim o fato dela não ter conseguido perceber absolutamente nada!
Nem raiva, nem ira... nenhuma mudança em seu estado de espírito, absolutamente nada... seja quem fosse, aquela mulher não tinha más intenções, não pretendia fazer nenhum mal para o ser que descansava profundamente, o que explicava o motivo dela ter conseguido tocar nele.
- Mas... como tal coisa é possível? Você é mesmo uma exterminadora?
- Ele descansa em paz, não há por que perturbá-lo. Fiquei sabendo que ele viveu durante muito tempo em seu vilarejo antes de se rebelar e matar muitas pessoas. Como ele se chama?
- Desculpe, mas não posso responder sua pergunta.
- Não se preocupe, não sou uma sacerdotisa. Não pretendo usar tal conhecimento para outras coisas.
- Não duvido, mas... eu realmente não posso responder sua pergunta, simplesmente por que não me lembro.
- Não... se lembra? – ela erguia uma sobrancelha, um pouco surpresa.
- Ele dorme há cinqüenta anos... e eu era uma garotinha, ou melhor dizendo, uma pirralha quando minha irmã o deteve. Antes disso, ele matou todos os anciãos do vilarejo, restando pouquíssimos adultos. E tais pessoas não estão mais entre nós. Atualmente, as pessoas que vivem neste vilarejo são, em sua maioria, netos e bisnetos dos que estavam vivos na época. E, depois de um tempo, a memória começa a pregar peças nas pessoas e... eí, importa-se de prestar atenção enquanto eu falo?
- Ele... não acredito. – ela tocava em sua espada, pronta para sacá-la – ele já está aqui?
- "Ele" quem?
- Não está sentindo isso? Essa presença maligna e corrompida?
- Refere-se ao Hanyou?
- Não... apesar de tudo o que ele fez, não sinto maldade alguma emanando da alma dele, mas... – ela olha para trás, observando o vilarejo – há um Youkai nas proximidades.
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Tinha que acontecer. Como uma maldição, tinha que acontecer.
E não tinha nem como evitar.
Não era a toa que havia dito para a dona da estalagem que já estava de saída. Há anos era assim. Era como se ele fosse uma espécie de imã sobrenatural, atraindo toda criatura das trevas para perto de si.
Ajoelhado, ele procurava se proteger, ao passo que também abraçava uma garotinha, como se seu corpo fosse um escudo para protegê-la.
Mais do que isso, para impedir que ela escapasse.
De onde aquela criatura surgiu?
E o pior: não era aquele o vilarejo que sempre enfrentou sem problema algum tais seres?
Se tal criatura era diferente, disso não sabia. Mas que parecia ser muito forte, disso tinha certeza.
E como. Se esquivava das flechas dos arqueiros como se elas se movessem em câmera lenta. Pulava para cima dos telhados com uma agilidade felina, na verdade, agia como um felino. O combate corpo-a-corpo não havia se mostrado uma boa opção, algo que muitos perceberam. Se já era difícil feri-lo à distância, de perto se mostrava uma alternativa ainda pior. Ele se esquivava com igual facilidade, muitas das vezes dobrando o corpo para escapar, e revidando com igual ferocidade, atingindo pontos críticos dos guerreiros, dando-lhes pouca chance de agir.
Não conseguia acreditar naquilo. Como era possível que um único youkai estivesse arrasando todos os guerreiros da vila? E onde estava a sacerdotisa quando mais precisavam dela?
Podia ver nos olhos das pessoas sua surpresa. Conhecia a história daquele lugar, depois do massacre de cinqüenta anos atrás, cada cidadão aprendeu a lutar e a se defender da melhor forma possível. Cada cidadão era responsável pela guarda do vilarejo, e cumpria tal missão com igual afinco e dedicação.
Mas mesmo assim, estavam perdendo. Não que se considerassem invencíveis, mas agiam em equipe, usando técnicas e estratégias desenvolvidas ao longo dos anos, as quais se mostraram igualmente eficazes ao longo dos anos.
No entanto, estavam sendo arrasados.
- Papai! Papai!!!
Papai?
"Papai"?
Ele arregala os olhos ao ver a criatura erguendo um senhor pelo pescoço. Não fica muito surpreso ao ver que se tratava do dono da estalagem, o qual havia partido para a defesa do vilarejo. Mas o que realmente o incomodava era o fato dele ser o pai daquela criança.
Aquele homem iria morrer e, mais uma vez, ele não podia fazer nada.
Podia ouvir os gritos das pessoas, muitos dos quais direcionados para sua pessoa, implorando que ele fizesse algo, que expurgasse tal criatura.
- Monge, faça alguma coisa!!! MONGE!!!!
Outro grito. Por que todos insistiam com aquilo? Ele não era um monge, não merecia o título. Há muito perdera a fé nos Deuses, há muito se escondia dos ensinamentos de Buda.
Não era um monge. Tinha o conhecimento, mas não tinha a fé necessária para executar os rituais, para expulsar os espíritos malignos.
Não havia nada que podia fazer.
Ou melhor dizendo, havia sim, mas... doía demais fazê-lo.
- Ser maldito!!! – ele reconhece na hora a voz como pertencente à esposa do dono da estalagem, a qual corria em direção ao youkai com uma espada em punho, demonstrando que a lei de defesa ali valia tanto para homens quanto para mulheres. Ninguém ali era totalmente indefeso, mas isso não significava que teriam alguma chance contra...
Nunca desista, seriam as palavras de sua mãe. Ao contrário de seus pensamentos, a mulher atinge o braço da criatura, decepando-o e fazendo-a largar seu marido.
Não adiantou muito. Ela enrosca sua fina – porém bem mais poderosa do que aparentava – cauda na perna da mulher, erguendo-a e arremessando-a contra a parede da casa mais próxima. Não sendo suficiente, em um ataque de fúria ela deu um soco no homem, atirando-o para perto dela.
Aquilo o deixou surpreso, não pelo corte, mas sim pelo fato da criatura, apesar de estar sangrando – e muito – ainda assim continuar de pé.
- Papai! Mamãe!!! – a garotinha se mexia como nunca em torno dos braços dele, tentando escapar, como se pudesse fazer algo. Quanto a ele, continuava em choque, observando aquilo tudo, impotente diante da situação.
Aquilo tudo... o lugar... tantas pessoas ali feridas, outras mortas... e ele, paralisado de medo. Não da situação, mas sim das memórias ruins que elas traziam.
Sim, lá estava ele, observando tudo. Seu pai e todas aquelas guerreiras, as quais nada puderam fazer, a não ser morrer.
Seu pai... sua mãe... todos mortos, e ele... ele nada pode fazer.
E agora aquilo, aquela criança, a qual iria presenciar tal coisa... droga! Por que o passado sempre tinha que voltar para atormentá-lo, por que?
Se ao menos aquela criatura não tivesse aparecido...
Observando bem, ele comprova que as semelhanças com um gato não eram mera coincidência. A cauda, a orelha, os pelos, as listras... parecia um típico gato do mato, tal qual muitos Youkais que lembravam outros animais.
E, para piorar ainda mais a situação, estava tão paralisado que a criança escapa dos seus braços, correndo em direção ao monstro. Os pais dela ficam em choque, desesperados, mas nada podiam fazer. A dona da estalagem tentava se mexer, mas tudo o que conseguia era se contorcer ainda mais de dor, gritando no processo.
E fora exatamente o grito dela que o tirara do seu estado de choque, chamando sua atenção. Devido à violência com a qual ela se chocou contra a parede, com certeza devia ter quebrado alguma coisa e, se continuasse assim se mexendo, poderia agravar ainda mais seu estado devido a uma hemorragia causada pelos ossos que deviam ter se partido.
Isso se já não estivesse passando por tal coisa.
A criança pega a espada do chão – quase deixando-a cair devido ao seu peso, conseguindo erguer tal arma puramente pelo instinto inerente a todos os seres vivos, o de defender seus semelhantes com todas as forças - e, em um corte de sorte, atinge a cauda da criatura, cortando um pequeno pedaço dela. Um urro de pura dor é emitido, e o ser das trevas se vira, fitando o filhote dos humanos que o ferira.
Aquilo não era um gato, pensava. O urro que acabara de emitir lembrava mais um tigre furioso do que o de um mero gato.
Ele ergue o braço que ainda possuía, pronto para fatiar a criança, a qual o olhava com raiva, atacando-o, falhando inutilmente. O pai da criança cobre os olhos de sua esposa quando vê garra do monstro partindo em direção dela, tentando evitar seu sofrimento.
Não dá muito certo, a esposa tira a mão do rosto e tenta se erguer, mas novamente não consegue. A única coisa que consegue é ver, de onde estava, sua filha.
Viva.
Seu marido, por outro lado, observou o que acabou acontecendo e teve uma surpresa enorme ao se dar conta da situação.
O monge, ele... ele havia salvo sua filha!
Para o pobre rapaz, a situação não era tão simples quanto parecia. Rolando com o ser no chão, ele tentava se desvencilhar, mas pecou ao ignorar os aspectos daquele youkai em especial, as vantagens que sua fisionomia felina lhe garantiam. Deu um soco em sua face e segurou o braço que ainda estava inteiro, achando que teria imobilizado a criatura.
Infelizmente ele se enganou e pagou caro por isso.
Ele dá um grito quando o ser começa a arranhá-lo com as garras dos pés, ferindo suas pernas. Mais do que isso cortavam-nas como se fossem lâminas afiadas, e eram.
Ele urra ainda mais quando, aproveitando que ele estava gritando, a criatura abre sua mandíbula e morde seu ombro, encravando seus dentes com uma potência tão grande, que poderiam perfurar seus ossos como se não fossem nada.
De longe, os demais aldeões – tanto os feridos quanto os que estavam socorrendo os feridos – ficavam horrorizados com tal coisa, vendo o pobre rapaz – o qual muitos olhavam com desconfiança, mas também se doíam ao ver a cena – estar sendo devorado vivo, literalmente.
Em um ato de puro desespero, ele segura o animal pelo pescoço e o empurra, sentindo ainda mais dor quando se dá conta de que a mandíbula dele estava cerrada em seu ombro.
A dor era inimaginável. Seus gritos podiam ser ouvidos por toda a vila, e nada podia ser feito para pará-los. Era algo tão horrível de se ver, que alguns cobriam as faces das crianças para que não tivessem pesadelos à noite.
A dona da estalagem tenta novamente se erguer, falhando. Queria fazer algo, pegar uma espada, atirar uma flecha, qualquer coisa! Não conseguia aceitar que aquele rapaz estava sofrendo tanto e ela não podia fazer nada.
Já a criança, ela estava bem próxima do youkai, assistindo tudo de perto, paralisada. Totalmente assustada ela estava ao ver o ser rasgando a carne dos pés do rapaz, e mordendo o ombro dele com tamanha vontade, que parecia estar mastigando-o.
E realmente estava.
Ele iria morrer. Sim, iria morrer, e nada poderia impedir tal coisa.
"... nunca... desista...".
Nunca desistir. Nunca.
As palavras de sua mãe, as últimas palavras dela antes de morrer. A única pessoa que realmente o amou acima de todas as coisas, mesmo tendo ele matado-a.
- Mamãe... – algumas lágrimas escapavam pelos seus olhos, dando-se conta da situação. Passou os últimos anos vagando de um lugar para o outro, procurando adiar ao máximo aquele momento, e lá estava ele.
Nunca desistir, mas... como? O que fazer, como fazer?
Passou todos esses anos procurando tal resposta e, desde então, se considerava o pior ser a caminhar pela face da terra, já que foi capaz de assassinar sua própria progenitora.
Mas... por que isso? Por que tudo isso?
Não sabia. Ainda não tinha encontrado a resposta que tanto procurava.
E, simplesmente por esse fato, não podia se encontrar. Não era merecedor do nome que recebeu com todo amor por parte dela... mas em respeito a ela, não podia morrer ali e agora, não sem antes encontrar a resposta que há tanto perturbava sua alma.
Tirando um pedaço de pano com inscrições estranhas da mão que estava livre, ele a encosta na face do animal, não se importando com o fato dela estar arrancando tachos de seu corpo.
Iria usar aquilo. Iria usar a maldição que assombrava sua família, que causou a morte de seu avô, seu pai e sua mãe.
A criatura aumenta a força da mordida quando começa a sentir os efeitos daquele poder. Era uma sensação estranha, como se sua pele estivesse sendo arrancada de sua face. A dor começa a se intensificar, até que, em puro desespero, o animal aperta o pescoço do rapaz, tentando descarregar sua dor.
Pouco adianta. Quando a orelha do bicho é sugada, ele larga o ombro do ex-monge e entra em desespero. No entanto, ele não deixa a criatura escapar, segura-a pelo pescoço e aproxima a face do animal ainda mais de sua mão, na qual havia um ponto negro – o qual crescia – que estava sugando – arrancando seria o terma mais apropriado – a pele da face do youkai.
Ela vira a face tentando morder a mão mas, ao abocanha-la, se arrepende. A primeira coisa que sente é sua língua ser arrancada da boca, gerando um grande sangramento interno. Gradualmente vai se contorcendo, como se partes internas dela estivessem sendo arrancadas sem a menor chance de resistência. Suas gengivas, seus dentes...
Ele observa calmamente enquanto os olhos do monstro das trevas são literalmente sugados para dentro do rosto dele, enquanto vê a pele do animal também ser sugada, deixando apenas a carne do bicho exposta, sangrando como nunca. Ele fica levemente impressionado pelo fato do ser ainda estar vivo, mas pela forma que ele se mexia – e também fazia com todo o resto do corpo – podia sentir perfeitamente todo o desespero daquela criatura que, a cada segundo, sentia a morte cada vez mais próxima.
Quando os globos oculares do ser são sugados por completo, ele ouve um estalo e não demora muito para entender o que aconteceu: o pescoço da criatura se partiu e agora apenas a carne que restava do pescoço mantinha o corpo e a cabeça unida, segurando um corpo em queda. Quando os últimos resquícios da carne que formavam o pescoço são sugados, o corpo do youkai cai, enquanto o sangue da criatura se espalhava por todo o chão.
Em sua mão, o crânio exposto do animal começava a se rachar de dentro pra fora devido àquele pequeno buraco negro que tentava sugar o maior número possível de coisas ao seu redor. Ele retrai sua mão dali de dentro, envolvendo-a novamente no lacre de proteção que seu pai havia ensinado-a a fazer, largando o resto daquele crânio ali. Seu estado era tão degradável que, ao se chocar no chão, se rachou e uma parte dela rolou para um outro canto, assustando o casal que assistira a toda aquela cena, e também a criança, que estava há poucos metros dele, paralisada por ter assistido tudo aquilo.
Ele fica alguns instantes daquele jeito até que, apoiando-se com o braço que estava inteiro, consegue se erguer. Podia sentir a dor de ter as pernas rasgadas e o ombro perfurado, sendo que a única coisa que o mantinha de pé naquele momento era o desejo de permanecer vivo, o qual sobrepujava os limites do corpo. Começa a observar ao redor, dando-se conta da maneira que as pessoas o observavam, o terror em seus olhos.
Sim... no fim, ele utilizou aquilo novamente. Foi um ato muito arriscado, pois poderia ter matado todos os presentes.
No entanto, por hora ele conseguiu se controlar, de forma que sua maldição só fez o necessário, sem destruir outras formas de vida.
Mas ainda assim, era doloroso saber que todos ali poderiam ter morrido por sua causa.
Sentia uma dor imensurável nas pernas, assim como no ombro, no qual havia um grande ferimento. O cheio de sangue era tão forte que estava atraindo algumas moscas, assim como a surpresa dos moradores do vilarejo pelo fato dele ainda estar vivo.
Sim, ele estava vivo.
E, por hora, aquelas pessoas também. Não tinha muito tempo para pensar, mesmo estando em um estado mais grave do que a maioria ali, não se considerava no direito de ficar ali parado sofrendo, precisava, de alguma forma, ajudar aquela gente.
Mas, por mais que ele se esforçasse em pensar, a situação era grave demais e formar uma linha de pensamento coerente estava difícil. Eram muitos os feridos, e ele mal conseguia se tratar, o que aumentava ainda mais seu desespero.
Tamanho eram os seus ferimentos, que ele mal pode reagir quando sentiu aquele chute na face, derrubando-o. Caiu de joelhos mas sentiu um potente chute na boca do estomago, o qual o deixa totalmente sem ar.
Pego de surpresa e por puro instinto, ele rola no chão, encarando seu agressor.
Uma mulher. Mas não se parecia com nenhuma das mulheres do vilarejo, pelo contrário, aquela parecia estar pronta para a guerra.
- O buraco do vento – ela fitava mortalmente o rapaz – monstro maldito... assassino... ser das profundezas do submundo... finalmente eu te encontrei!
- Eu... você, eu... quem é você? – e falava, agonizando devido aos ferimentos, os quais doíam ainda mais devido aos seus movimentos bruscos.
- Passei os últimos dez anos te procurando, seu demônio... minhas amigas... minhas irmãs, minha... minha família... você matou todos eles!!! Em nome da Vila das Exterminadoras, receba teu castigo!!!
Continua...
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