CAPÍTULO 04:

O Especialista

Dia Seguinte, hora do almoço. Sobre a mesinha improvisada, um pratinho contendo uma porção de arroz branco, um tyawan de missoshiru e alguns legumes curtidos compunham a frugal refeição com a qual Shinji Ikari tinha que se contentar. Morando sozinho e cronicamente sem dinheiro, não havia muito com o que encher a sua geladeira. Por sorte, ele não era exigente em matéria de comida e ainda podia com um pouco de sorte fazer a janta no bar "Segundo Impacto", aonde ele trabalhava.

Dando um suspiro de pura resignação ao olhar o "banquete" do dia, ele começa a comer, com a mente perdida em algum detalhe recente. A sua nova persocom está sentada ao lado dele, numa almofada baixa, perto da panela elétrica de arroz, observando calmamente o seu novo mestre se alimentando - uma novidade para ela.

- Rei?

Shinji volta de sua viajada mental e esboça um sorriso ao ver sua inocente companheira, que retribui com o mesmo gesto. Contudo, mal ele faz isto e abaixa abruptamente a cabeça em sinal de profundo desânimo, sendo observado por Rei, com um misto de curiosidade e preocupação.

- Não... Não é hora de ficar sorrindo que nem um bobo, Shinji Ikari! Ai, que raiva de mim mesmo! No final, acabei ficando sem saber qual era o modelo que a Rei era e o que fazer para consertá-la.

[Início do Flashback do final da tarde do dia anterior]

- Buáááááá! Ela deve ser uma máquina montada e ainda deve carregar uma CPU monstruosa!!! - Exclamava um inconsolável Kensuke derramando lágrimas copiosas em cima da sua notepersocom Susuka, que ficou travada após ter tentado inutilmente diagnosticar o setup das configurações da misteriosa Rei.

- M-ontada? M-mas não vi ela montada em nenhum animal, como um cavalo ou jumento... - Pergunta Shinji sem entender direito os termos de informática que o seu amigo dizia.

- Seu cabeça de ostra! Eu estava me falando de persocons feitos à mão, personalizados, não estas máquinas que se compram nas lojas!!! - Kensuke não sabia se ficava furioso com a completa incompetência de Shinji para entender qualquer coisa mais complexa do que um DVD-Player ou triste com a perspectiva de torrar o restante de sua mesada no conserto de Susuka.

- Ah, então era isto?

- Eu nunca vi um modelo com cabelos cinza-azulados e olhos com pupilas vermelhas! E o seu conteúdo é misterioso. Só pode ser um persocom montado. - Exclama Kensuke quase aos gritos.

- Desculpe-me, e... o que devo fazer....? Por favor... - Implora Shinji desesperado para tentar entender o que havia com a Rei.

- Vai ter que perguntar para alguém que entenda de máquinas montadas!!!

- Mas...

- Buááá, Susuka, por favor, acorde! Prometo que não vou ligar para seus insultos e espancamentos diários e ainda vou te dar aquela placa aceleradora gráfica que você me pediu!!!

[Fim do Flashback}

- Fff.... A coisa está ficando complicada... Sem dinheiro, o Kensuke quase ficou de mal comigo e ainda não sei como resolver o problema da falta do programa principal da Rei. Será que valeu... a pena? - Monologa Shinji dando graças apenas por seu colega não ter rompido a amizade que tinha com ele.

- Rei? - Repentinamente, Rei se aproxima demasiadamente perto de Shinji e fita os seus olhos tristes, achando um certo interesse nisto.

- Mas ela é tãooo bonitinha! Mas que gracinha! Se ela fizer um monte de coisas para mim como fazer o meu almoço, passar, lavar e fazer os downloads dos episódios do Gaorangers para mim vai ser o clímax de minha felicidade! Ai, só de pensar em clímax isto me faz pensar na Estelita... - Comenta Shinji mudando momentaneamente de estado de humor, totalmente entusiasmado com a perspectiva do seu sonho de longa data se concretizar.

A jovem Rei começa a imitá-lo, dando pulinhos pela sala e se abraçando a uma vassoura, exatamente como o seu mestre fizera momentos antes.

- É isto aí, preciso achar um jeito de descobrir como fazer a Rei funcionar direito... hã?

- Rei?

- Ouch! Arrrrgh! M-meus intestinos! Ughhhh.... Isto que dá ficar comendo o arroz requentado de anteontem que eu fiz só para economizar na comida... Por que estas coisas só acontecem comigo de manhã? Relaxe... Shinhi Ikari, relaxe..

- Rei?

Para sorte do tímido estudante de cursinho, o sábado havia chegado e não havia aulas naquele dia. Desta forma, ele tinha tempo livre até o início do horário de seu serviço no "Segundo Impacto".

Alguns minutos mais tarde - não antes de uma providencial ida ao banheiro - uma porta se abre, e Shinji, acompanhado de Rei, vestida com suas roupas, se preparam para dar uma saída.

- E agora? A única coisa que me resta a fazer é falar com o cara que o Kensuke me indicou. - Fala o jovem Ikari pensando consigo mesmo.

- Rei?

- Vamos, Rei.

Os dois chegam ao térreo e em seguida saem do modestíssimo condomínio, aonde uma jovem senhora de avental estava varrendo a calçada.

- Epa! Dona Ibuki! - Exclama Shinji, surpreso.

- Boa tarde, Shinji! - A jovem senhora pára o que estava fazendo no momento e em seguida acena, cumprimentando o estudante.

Maya Ibuki era a dona do apartamento aonde Shinji morava. Ela morava no andar térreo do condomínio, além de ser a zeladora do prédio. Jovem e bonita, ela aparentava ter menos do que os seus vinte e pouco anos de idade. Ao que parece, ela tinha sido casada e era muito bonita.

- Ué, quem é ela?

- Ah, e-esta a-aqui é uma per-persocom! - Responde Shinji ansioso para sair o mais rápido de lá

- É uma linda persocom... "Mas não tanto como uma pessoa que conheci" - Comenta Maya afagando os cabelos de Rei, enquanto um sorriso melancólico se nota em sua face.

- E qual é o nome dela?

- É... é... Rei.

- Muito prazer, Rei. - Sorri Maya diante da silenciosa persocom, que estava ao mesmo tempo curiosa e deslumbrada, pois até então as quatro paredes do modesto apartamento tinham sido o seu pequeno mundo.

- ?

- A roupa da Rei está bem larga...

- Desculpe-me. É que... é que... eu ainda não acabei de comprar roupas para ela porque acabei de achá-la e...

"Acho que a Dona Ibuki vai ter uma péssima impressão a meu respeito... Ela vai achar que não tenho um tostão furado para pagar as despesas e não vai pensar duas vezes em negar a renovação do contrato de aluguel! Sem falar que vai achar que sou um tarado que compra roupas largas de propósito só para ver os peitos da persocom!"

- Shinji, o que foi? - Pergunta Maya, mostrando preocupação genuína.

- Hã, não foi nada, Dona Ibuki. - Responde encabulado o rapaz, quase sem fôlego, imaginando coisas em sua pobre cabecinha.

- É que o seu rosto está ficando verde, azul, roxo... Você comeu alguma coisa estragada no almoço? - Porém a senhoria não se faz de rogada e se aproxima ainda mais do envergonhado Shinji tentando adivinhar o motivo de seu súbito mal-estar.

- Não, n-não! É-é que...

- Tenham um bom dia, Shinji e Rei.

- "E ela ainda descobriu que o meu persocom tem nome porque respondi na lata... Só falta ela me mandar internar numa clínica psiquiátrica"...

Shinji e a sua exótica companhia despedem-se de Maya e começam a caminhar a um endereço indicado pelo seu colega Kensike. Isto porque o atrapalhado estudante não tinha um níquel sequer no bolso e mesmo se tivesse, morria de medo de errar o ponto andando de ônibus.

- Droga! Droga!! Drooogaaa!!! Por quê eu fui nascer deste jeito, Shinji Ikari? Eu sou burro! Não, um mentecapto! Não, até uma ameba tem mais perspicácia do que o meu cérebro! ARRRGH! - Desabafa o infeliz rapaz falando para si próprio,

- Rei? - Enquanto isto, Rei imitava os seus gestos, dando socos na própria cabeça e descabelando-se a si mesma.

Após uma hora, a dupla acaba indo parar num bairro residencial de alta classe, todo ele formado por elegantes mansões e palacetes que apenas acentuavam a pobreza crônica do pobre estudante.

Dente elas, se destacava uma propriedade cercada por um muro tão alto que era quase impossível ver a edificação construída naquele terreno.

- Será a-aqui? Eu devia ter confirmado com o danado do Kensuke antes de vir para cá! - Exclama, surpreso Shinji enquanto tenta conferir o endereço num papelzinho de anotações que trazia dentro do bolso da calça. .

O endereço anotado no papelzinho - parcialmente borrado pelo suor e amassado durante a viagem - não dava margem a dúvidas. Reprimindo um suspiro, Shinji aperta o botão do interfone do enorme portão.

- "Belo dia para começar... Não sei porque, mas fico deprimido quando vejo um ricaço... É isto que dá ter nascido pobre..."

Assim que toca o interfone, um barulho eletrônico se faz ouvir, rompendo o silêncio do local.

- Pois não, residência Nagisa? - Diz uma voz com inflexão metálica, mas aparentemente pertencente a um jovem.

- O meu nome é Ikari... Hã? O Kaworu está em casa? - Diz, encabulado, o estudante de cursinho enquanto tem a estranha impressão de estar sendo observado por alguém.

- Estávamos aguardando, por favor, entre. - Dito isto, o enorme portão é aberto, deixando o caminho livre para Shinji e Rei.

Enquanto atravessava o enorme e luxuoso jardim, Shinji ponderava consigo mesmo até que ponto o dinheiro permitia comprar as coisas mais lindas da vida. Se ele pudesse ter apenas 1% do que o proprietário daquela mansão possuía, ele estaria com a vida feita, pensava ele.

Em seguida, ele e Rei se preparam para entrar na suntuosa mansão, que parecia existir somente nos sonhos e filmes

A porta se abre e a primeira visão que ele vê é a de quatro graciosas e sensuais persocoms vestidas como anjos o recepcionando, inclusive com as asinhas de fora.

- UAU! "Mas que gatas! O dono delas deve ter..."

- Por favor, não vá ter um clímax orgásmico com as minhas persocons. - Diz uma voz pertencente a um rapazinho que desce calmamente a enorme escadaria semi-oval que dá acesso ao primeiro andar.

Shinji se vira e ele vê a figura de um pequeno jovem de cabelos prateados, e ar aparentemente amistoso e interessado. Mas o que chamou mais a atenção era a cor das suas pupilas, que eram vermelhas, como os da Rei.

- Shinji Ikari, eu presumo. - O estranho adolescente se aproxima do rapaz e o cumprimenta efusivamente, segurando em ambas as mãos, para estranheza e constrangimento do pobre estudante de cursinho.

- Hã... Eu mesmo... E você é... - Responde Shinji, hesitante como sempre, enquanto pensa para si mesmo - "Esta não, era só o que me faltava!"

- Kaworu Nagisa. Muito prazer -Diz o seu misterioso anfitrião, enquanto o fita bem fixamente nos seus olhos, para maior desespero do rapaz.

- O Kensuke disse-me que ia me apresentar a a-alguém que entende de persocoms montados... Mas você parece... - Totalmente desconcertado, Shinji começa a balbuciar em tom incerto, imaginando que se tratasse de alguma brincadeira de mau gosto do seu amigo, só tomando o cuidado de não dizer "um garotinho que mal saiu do primário", como era a sua impressão inicial.

- Estou na sétima série. E nas horas vagas, estou fazendo um curto sobre robótica avançada na Internet além de me preparar para um futuro MBA. Algum problema?

- N-não... D-desculpe-me...

- Entre... Vamos conversar lá dentro.

Mal Kaworu diz isto, as suas persocons começam a assediar, ou melhor, agarrar o pobre Shinji, todas ao mesmo tempo. Enquanto começam a tocar, apalpar e passar a mão em cada centímetro de seu corpo, Rei assiste a tudo, com o ar mais inocente - ou indiferente - do mundo..

- Uaaagh! Ka-kaworu! O q-que é i-isto? P-peça para e-elas pa-pararem! P-por f-favor!!! - Shinji tenta se desvencilhar das carícias das quatro persocons vestidas como anjos, que pareciam ter sido programadas para atender os hóspedes até muito bem demais.

- Ué, meu jovem? Por acaso, não gosta de um pouco de companhia feminina? Se preferir, posso chamar os meus persocoms masculinos... - Responde o rapaz de cabelos prateados enquanto olha de forma maliciosa para a cena.

- E-ei!!! Esperem! P-parem, por favor! - A esta altura, o pobre Shinji estava completamente à mercê das empregadas virtuais de Kaworu, enquanto Rei,. que até então estava calada, começa a ajudar a segurar o seu mestre, imitando as outras.

- Hã? - Kaworu sente alguma coisa e em seguida se vira, mas não por causa do pobre rapaz, mas sim pela presença de Rei, que para o que estava fazendo.

- É ela? É aquela persocom de marca desconhecida que o Kensuke falou? E ela está funcionando só com o Windows 98? - Pergunta Kaworu, olhando fixamente para Rei, que estava curiosa por conhecer um outro humano como o seu mestre.

- Arrrrgh! Não! Não toque aí1 P-por Favor! S-socorro!

Contudo, o jovem de cabelos prateados não obtém resposta, pois Shinji estava inutilmente lutando para que as empregadas virtuais do seu anfitrião não tirassem a sua roupa.

- Talvez... Talvez ela seja uma Evabits - Monologa Kaworu, com uma expressão intrigada enquanto Rei está ajoelhada à sua frente, esperando por uma ordem de seu dono.

Observações:

- Tyawan é um pratinho tipicamente oriental aonde se come arroz ou macarrão;

- Missoshiru é uma sopa leve feita com pasta de soja (de coloração meio marrom), água quente e alguns acompanhamentos opcionais como cebolinha, ovo, peixe, tôfu (queijo de soja) e outros, ao gosto da pessoa

- Em muitos apartamentos japoneses de baixo padrão, o aposento principal serve como sala de estar, jantar e quarto de dormir, apenas mudando alguns móveis;

- Na versão original do Chobits, o Hideki passou mal depois de ter comido uma porção de "nattou" (sementes de soja fermentada, de consistência viscosa). Embora seja altamente nutritivo, este prato é considerado forte para certas pessoas e há os que simplesmente o detestam;

- Maya Ibuki era assistente da Doutora Ritsuko na série Evangelion. Aqui ela faz o papel da Dona Chitose Hibiya do Chobits. Inicialmente havia pensado na Ritsuko para este papel, só que preferi deixá-la para outra função, já que ela não tem uma personalidade compatível com o papel da Dona Hibiya.

- Kaworu Nagisa é o nome do último piloto recrutado pela NERV na série Evangelion. Logo de cara ele procura se interessar e ganhar a confiança de Shinji nos capítulos finais, o que deu margem para certas polêmicas.

Escolhi ele para fazer o papel do Minoru Kokubinji, o garoto ricaço experts em persocoms de Chobits.

Inicialmente a minha idéia era colocar o Kensuke neste papel e o Touji como o Shimbo, só que esta alternativa iria ter problemas devido ao fato deste último ter uma namorada (a Hikaru). Daí o fato de ter colocado Kensuke como Shimbo e Kaworu como o misterioso Minoru.

Escrito por: Calerom

Última Versão: Janeiro de 2004

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