[Ato II]
» Caldeira é o aumentativo de caldeirão.
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O caminho até as caldeiras foi longo, mas sem muitas curvas. Aquele lugar era um recheado misto de cheiros e vapores coloridos. Estava quente, mas em nada lembrava o calor de caldeiras trouxas. Era um calor apenas levemente superior ao calor agradável de um verão ao sul daquelas ilhas Britânicas.
Sob o teto úmido e abobadado havia cerca de trinta e cinco enormes caldeirões de metal que recebiam por nome o de caldeira, alguns (os mais ao centro) cobertos e com canos saindo de suas tampas, cujos vapores aqueciam os cômodos do castelo, outros abertos, com água borbulhante até a boca, que serviam os banheiros da escola por canos que saíam de seu fundo. Não havia chama. Aparentemente os aparatos de metal escuro haviam sido encantados para que gerassem calor espontaneamente.
Aproximando-se destes gigantescos, e talvez amedrontadores, objetos sentia-se um calor gradativamente maior, até beirar o insuportável. Coisa que Sirius descobriria da pior forma se Remo não o tivesse impedido de recostar-se a um deles para secar o suor da testa.
Mais ou menos no que seria o canto esquerdo do recinto (se este não fosse circular), tomando como referência a única porta, havia três destas enormes caldeiras enferrujadas e postas de borco sobre o chão quente de pedra. Todas muito avariadas e uma delas com uma rachadura suficientemente grande para um homem passar. Bem, Pedro não conseguiria passar por ela, mas isso é mera questão de adiposidade excessiva e informação desnecessária dada por um autor divagante.
Os dois marotos aproximaram-se dos tanques e Remo começou a passar a mão por sobre a ferrugem de um deles, arranhando. O primeiro caldeirão foi, então, sumariamente descartado.
— Está quase se desfazendo.
O segundo (com a rachadura) ele nem pensou em examinar, chamando Sirius para que este lhe ajudasse com o último. Remo, então tomou distância, apontou sua varinha longa de salgueiro para a caldeira e falou:
— Eu vou tentar suspendê-lo. Quando eu tiver conseguido, você dá um jeito de virá-lo de boca para cima. — Sirius assentiu — Wingardium Leviosa!
O pesado caldeirão lentamente se desprendeu do chão. Remo tinha no rosto uma expressão de quem segurava um trasgo nas costas. Sirius percebeu o esforço do amigo e, prontamente, uniu-se a ele no feitiço, sacando a própria varinha de cedro.
Ergueram juntos, com certa facilidade, o grande estorvo numa altura suficientemente grande para que ele fosse virado.
— Você agüenta ele assim por três segundos? — Perguntou Sirius.
— Posso tentar. Mas acho difícil.
— Então tenta segurar ele com a minha varinha também!
E moveu-se lentamente até perto do amigo. Não podia desviar o olhar nem a varinha ou o elo do feitiço seria quebrado. Aproximou-se por trás de Remo, o braço hirto à sua frente com a varinha em punho. Com o queixo praticamente no ombro do amigo, pediu que ele trocasse a própria varinha de mão e pegasse a sua.
— Mas como você vai girar o caldeirão sem a varinha?
— Apenas faça!
Remo deu de ombros, confiando no amigo, e pegou-lhe a varinha. O caldeirão estremeceu e diminuiu um pouco de altura. Novamente Remo sentia como se estivesse carregando um peso enorme.
— Rápido!
Sirius respirou fundo e, com um grito agudo quase indígena, investiu contra o caldeirão, correndo de braços erguidos. Teve tempo para bater em uma borda externa, passar por dentro do caldeirão e bater na borda interna do outro lado.
Isso fez com que o imenso trambolho começasse a girar lentamente como se estivesse dentro d'água. Mas também instabilizou o feitiço de levitação que Remo, com os joelhos vergando, não conseguiu manter por muito tempo.
Dois segundos depois de Sirius estar seguro, encostando as mãos na parede para parar com certa brusquidão, o elo do feitiço se rompeu e o ribombo do caldeirão indo de encontro ao chão pôde ser ouvido estrondosamente pelos elfos domésticos que trabalhavam na cozinha acima dali.
Sirius teve tempo para tampar os ouvidos, mas Remo, com as duas varinhas em punho, sentiu-se o badalo de um sino. Felizmente para o amigo leitor, o eco encobriu o palavrão polissilábico que ele praticamente soletrou.
Quando os dois abriram os olhos (pois não há, leitor, ninguém que se proteja de um som sem fechá-los) puderam constatar a sorte que haviam tido de o caldeirão ter caído exatamente na posição pretendida.
— Eu sou Deus, cara! — Gritou Sirius, eufórico.
— É, e eu sou Chapéuzinho-Vermelho! — Disse Remo, sorridente, aproximando-se dolorosamente do amigo.
— Não, você é o lobo-mau — E imitou um barulho de rugido acompanhado de uma imitação afeminada de garras com a mão direita.
— Ah, não enche e faz o teu trabalho, cara! — Disse Remo rindo e esfregando os joelhos que latejavam.
Sirius bateu continência e adiantou-se, analisando um pouco a imensidão de seu trabalho e fazendo uma careta.
— Tem certeza que você quer que eu faça isso? — bufou
— Sim, tenho, mané! Você vai gostar do resultado.
— Então eu preciso saber o quão "limpo" vocês querem isso, por que se for pra pendurar o Ranhoso de cabeça pra baixo e usar o óleo do cabelo dele pra fazer batata-frita eu acho que já tá perfeito! — E deu dois chutes de leve na caldeira.
Remo sorriu, condescendente, e resolveu que Sirius merecia saber um pouco mais.
— Seguinte: Nós vamos fazer comida nisso aí. E nós mesmos vamos comer (E vender pro pessoal se der certo — mas isso não vem ao caso), portanto é melhor que esteja bem limpinho.
Sirius estava disperso, coçando a nuca, contrariado. Não ouvira uma palavra do que o amigo dissera. Mas tudo bem, Remo já acostumara-se com isso.
— Falou alguma coisa? — Disse o animago.
— Eu falei que quero esta porra limpa como seu cérebro! — Sirius deu um sorriso malicioso — Eu falei cérebro, não mente... Seu mente-poluída!
— Não posso fazer nada, é mais forte que eu! — E virou-se, erguendo a varinha — Pio Fimus!
O que pareceu ser uma ducha de fagulhas marrons e sem brilho foi disparada da ponta da varinha do garoto.
A ferrugem na parte exterior da caldeira foi lentamente desaparecendo e dando lugar a um aço fosco e repleto de pequenas fissuras e estrias. Demorou mais de um quarto de hora até que todo o exterior do enorme recipiente estivesse desenferrujado.
Sirius arfou, como todo bom cão faz quando se cansa, limpou o suor na testa e pediu a ajuda de Remo.
— Como eu vou limpar por dentro? Wingardium nos meus coturnos?
— Pode ser, mas você sabe que não vai ser nada estável.
Sirius parou para pensar. É, realmente ele não queria acabar de cabeça pra baixo em uma poça de lama como da última vez. Valeria a pena? Nada que sujasse seus cabelos valeria a pena. Cabelos... Transgressões. Era um dilema e tanto. Mas ele não era Lufo e, muito menos, o Gilderoy para se render no primeiro problema capilar.
Olhou para a caldeira, ergueu os braços, medindo a altura. Alto de mais. Tinha que haver algo naquela sala que o ajudasse a não acabar com um galo na cabeça. Não. Definitivamente protuberâncias cranianas eram coisas que ele preferia deixar para o Tiago.
Olhou ao redor, quase em desespero. Por que a palavra "sexo" piscou em sua mente? Ah, sim! Ele estaria fodido se não pensasse em algo. Caldeira, caldeira, canos soltos, caldeira, vassouras, caldeira, escada, caldeira, caldeira... Espera! Escada. Isso. Soluções, finalmente!
Ele vira uma escada deitada no chão do canto oposto e, falando isto para o companheiro, atravessou o recinto para buscá-la. Abaixou-se e puxou-a para cima. Por que os bruxos tinham tanta mania de fazer coisas com madeira maciça? Aquele trambolho pesava como os infernos!
Chamou Remo, que prontamente atendeu. Os dois dividiram um Wingardium outra vez para encostar a escada na caldeira.
Sirius subiu os degraus cheios de musgo e usou novamente o feitiço, repetidas vezes. O interior ficou livre de ferrugem em menos tempo, mas ainda havia o problema das fissuras.
— Que feitiço eu uso pra essas rachaduras? Integro Foramen?
— Esse não é pra coisas grandes? Sei lá, Sirius! Eu trouxe você justamente por que é especialidade sua.
O garoto na escada suspirou. Realmente ele precisava ser especialista neste tipo de feitiço. Quem tinha a prima mais estabanada do mundo? Ele. Quem tinha uma moto que gostava de caçar gatos? Ele. Quem preocupava-se em manter a Casa dos Gritos, no mínimo, íntegra? Ele. Observou o interior do enorme caldeirão e ordenou à varinha:
Integer Lacuna! — A varinha pareceu emitir vibrações que fechavam as pequenas aberturas no interior como cicatrizes.
Ele estava enfraquecendo. Magia simples assim tirara tanto de seu poder? Não, provavelmente foi a noite dormida pela metade e o esforço físico imenso que fizera durante todo o dia. Concentrou-se e continuou o trabalho.
Remo, com os braços cruzados e um sorriso no rosto, observava o amigo, satisfeito. Sorte, sorte. Ele tinha sorte de ter um amigo como Sirius. E amigos como os Marotos, em geral. Animagos ilegais! Apenas para lhe fazer companhia! Era uma coisa feliz.
E foi quando ele pensava em animagia que um rato amarelado subiu em seu pé. O animalzinho pareceu observar as coisas e agarrou-se à calça de Remo subindo até seu ombro esquerdo. Remo observou o roedor e apontou para Sirius com a cabeça.
— E aí, Pedro, o que acha do trabalho que o Sirius tá fazendo? — o rato acompanhou a cabeça de Remo, parecendo um tanto interrogativo. Remo continuou — Como foram no depósito? Conseguiram as coisas? Aliás, onde diabos está o Pontas?
O rato permaneceu parado enquanto Sirius arrumava o caldeirão. Remo sentiu uma mão tocar seu ombro direito. Falando no Diabo... Uma voz conhecida falou:
— Como está o trabalho do nosso amigo cão, Aluado?
Rabicho? Era a voz de Pedro que ele havia acabado de ouvir? Ele aprendera a falar em sua forma animaga? Não. Isso era anatomicamente impossível. Instintivamente virou-se para ver de quem era a mão em seu ombro e encontrou o rosto de um Pedro sorridente.
Pára tudo! Respira, Aluado. Raciocina. Se o Pedro está na forma humana com a mão no seu ombro, quem é o roedor no seu outro ombro? Não. Isso seria irônico de mais para ser verdade. Ele olhou novamente para o rato. E novamente para Pedro. Ambos tinham a mesma cara interrogativa e o mesmo cabelo ralo e castanho. Era um rato. Um rato qualquer, provavelmente de esgoto, em seu ombro. O lobisomem gelou e demorou para reagir, sacudindo freneticamente o braço e gritando:
— Sirius! Sirius, tira esse monstro de cima de mim! Argh! Maldito! — E o pobre rato voou longe com os movimentos, antes que Sirius sequer virasse a cabeça para tentar entender o que acontecia.
Quando fez isso, Pedro ria de forma exagerada. Cena engraçada, cena improvável. Sirius compreendeu a situação antes que Tiago chegasse de surpresa balançando a escada e sem entender por que dois dos Marotos estavam gargalhando e um estava bufando com os olhos úmidos e a face vermelha.