"Such a wretched waste of time

such a fool to be so blind

serpents hide behind your eyes

and I'm their prey tonight…"

(London After Midnight - Psycho Magnet)

Despontei em velocidade supersônica no Salão, deparando-me com apáticos Pontas, Rabicho e Aluado, estendidos os quatro em poltronas em diferentes pontos do lugar. Pontas firmava um olhar intrigante para uma bola de borracha segura entre os dedos, talvez numa das inúmeras tentativas de demonstrar seu poder psíquico, algo que fazia sempre numa situação entediante. Rabicho olhava para o teto, a boca escancarada, com um suspeito fio de saliva escapando por uma das laterais da boca e as pernas abertas no sofá de dois lugares. Aluado, que se encolhia ao seu lado, lia atentamente algum livro sobre abduções alienígenas com bruxos de extremo poder mental e pertences de cunho atômico, e os olhos pareciam fixos nas páginas. Ofeguei, escorregando desengonçado pelo tapete, depois de chutar os tênis para o ar e quase tombar idiotamente quando vi que meias limpas e chão excessivamente polido era um risco.

"Adivinhem só o que eu descobri?!"

"O número do sutiã da Evans...?"

"Os horários do jantar e café serão prolongados...?"

"Que desde a hora em que você saiu, o seu zíper está vergonhosamente aberto...?"

"Bem lembrado, Remo. Almofadinhas, por favor, recolha suas imoralidades..."

"Mudem de assunto, eu acabei de tomar café..."

"Sirius, por favor, genitália e vômito não são componentes da minha manhã favorita."

"Absolutamente."

Procurei o fecho da calça, como quem acorda de um pesadelo prolongado, e fulminei cada um deles veementemente, por azedarem uma manhã que começara verdadeiramente proveitosa. Tiago se ergueu dum salto espetacular, recolhendo o livro das mãos de Remo, cujo qual detestava com ira intensa esse gesto, especialmente quando a leitura era prazerosa, o que parecia acontecer naquele exato momento, pois do fundo das íris chamejantes surgiu um brilho perverso e lupino, digno de uma criatura endemoniada aprisionada no corpo de um querubim. Tiago parecia reflexivo."Desde quando você se preocupa se o passarinho do Sirius está tomando um ar ou não?" fechou o livro, esquecendo da página demarcada, fazendo Remo grunhir assustadoramente e murmurar alguma maldição indefensável muito baixo. Era, inegavelmente, uma cena que eu era o primeiro espectador petrificado. "'Passarinho', Pontas? O que você tem? Seis anos?" Pontas bufou ante a provocação, e eu havia esquecido completamente do zíper, Remo prosseguiu, num tom venenosamente insolente."E só pra constar, você também tem um 'passarinho' querendo voar alto pelas colinas do púbis... Pelas barbas de Merlin, ninguém nessa casa sabe abotoar as calças sem a ajuda de um feitiço!?" Tiago se voltou para a própria braguilha, corando incessantemente ao deparar-se com um olhar muito diabólico ilustrando o semblante de Remo, que perdia um livro de qualidade, mas nunca perdia a compostura. Pedro deu tapinhas admiradores nas costas do licantropo, que sorria maliciosamente, enquanto eu e Tiago atirávamos Feitiços Anti-Emperramento na calça, mais precisamente, "naquela" região (não façam isso em casa sem a ajuda de um bruxo maior de idade, caso não sejam peritos no feitiço, é um perigo para as gerações futuras)."Continuando...Sirius, sobre o que você estava tão entusiasmado?" Cocei a cabeça, quase esquecido do motivo de meu entusiasmo rodopiante."Ah, é. Primeiro de tudo: Feliz Dia dos Namorados, bebês!" berrei, com os braços abertos num abraço esfuziante e um sorriso que encobria três quartos de meu rosto. Remo se apressou em recuperar o livro, provavelmente para esconder algum esboço de reação. Os olhos de Rabicho pareceram se aguar ainda mais. As expressões de dúvida e estranhamento logo se anuviaram, mas Tiago derrapou em cima de mim, ferozmente, prendendo meus braços em minhas costas, e uma face desfeita pela fúria e pelo embaraço.

"Que tipo de sacanagem sádica é essa, Sirius? Dando parabéns para três encalhados convictos que passam a manhã do Dia de São Valentim olhando para um horizonte inventado não é o tipo de coisa que um amigo fiel faria, seu pedaço de bosta canina!" e oprimiu o aperto deixando-me um pouco mais livre para beijar o chão à vontade, de qualquer ângulo, numa posição irritantemente desconfortável."Potter, eu não quero bater em alguém que usa óculos, então, se quiser que a sua cabeça continue posicionada pra frente...me largue, j." Finalmente, Remo revelou um par de olhos demasiadamente vívidos por trás de uma cascata de folhas, ambos presos em nós."Eu acho que seria uma boa vocês se largarem, eu não quero que pensem que tenho amigos que trocaram o Quadribol pelo sadomasoquismo. Sem querer condenar qualquer prática, mas, pensem, nós temos crianças estudando aqui..." Tiago deixou-me ir assim que a voz de Remo deixou de soar, imperiosa. Ficamos lado a lado, distribuindo soquinhos disfarçados nos braços do outro, com significativa imaturidade, mas isso não importa. "Agora, se vocês pudessem retomar a idade mental verdadeira de vocês e recolherem os cacos de atividade cerebral inútil que perderam agora, eu gostaria que o Almofadinhas explicasse o que tinha começado..." e pousou o livro numa das cabeceiras no canto do sofá, assim que eu e Tiago enrijecemos como duas gárgulas providas de carne e osso. Terminantemente, Remo conseguia nos embaraçar com perícia, quando o desejava. E ainda assim, mantinha a expressão dura e sossegada iluminando-o como uma luz milagrosa."Obrigado pela deixa, Aluado. O que eu queria dizer antes de ter sido interrompido por uma erva daninha inconveniente –" um murrinho levemente forte "—Era que Dumbledore disse que durante todo o dia teremos correios do amor, com opções de presentes, passeios e outras coisas pra enviarmos, sabe, como admiradores secretos. Como nas histórias antigas, entendem." Outro murrinho, perceptivelmente mais potente. Um palavrão profundamente indecente deixou minha garganta para reverberar nos ouvidos de Pontas.

"Histórias antigas? Mas você não tem o mínimo senso de cafonice, Almofadinhas..." Uma cotovelada bem empreendida o fez se calar, sibilando algo que se parecia em muito com 'Mauricinho Enrustido'. Remo nos examinou do topo até a extremidade das meias, um olhar inquisidor e perturbador escondido nas orbes solitárias e brandamente douradas. Faíscas repicaram em meu interior."Ah, Pontas, vire gente. Eu acho até bacana...Romantismo nunca fez mal a ninguém." Confessou, com o mesmo ar de despreocupação e serenidade.

Era bom que o mapa estivesse à disposição, pois eu necessitava urgentemente de uma ampla caixa de bombons suíços veludínea. O destinatário estava escolhido.

Tiago o estudou, exasperado e atônito."Que adorável, Aluado, você é o tipo poético que todas as garotas tanto desejam..." zombou, fechando os dedos e juntando as mãos como uma líder de torcida histérica, extasiada, a própria imagem do azucrinante. Aproximou-se de Remo, bailando na ponta dos pés, e fantasiou um beijo roubado estalado na bochecha do garoto, que permanecia estático. Quem entendia aquele demente?"Que repugnante, Pontas, você é o tipo cafajeste que todos dispensam..." repudiou, sem desviar os olhos dos escritos, e os lábios de Tiago se abriram numa circunferência perfeita. Habitual, sempre uma discussão entre Marotos tendia a durar um tempo exorbitante, era melhor não marcar nenhum compromisso importante neste meio-tempo, pelo contrário, todos se rasgariam em caquinhos minúsculos e comeriam as entranhas enquanto o café da manhã ainda estava sendo servido. "O sujo falando do mal-lavado. Já estarei entrando em decomposição quando você decidir arranjar uma namorada, francamente..." postou as mãos na cintura, meus olhos saltavam como numa partida de ping-pong, de um tranqüilo Aluado, para um insultado e escandalizado Pontas, a ponto de ricochetear pelo Salão como um balão estourado, de tão vermelho e inchado que parecia."Certamente, Pontas. Visto que no ano passado você arrotou o hino de quadribol da Grã-Bretanha inteiro para Lílian, eu não duvido que vá apodrecer em dois tempos..." Meu rosto se acendeu com um sorriso nostálgico ao rememorar tal lembrança inesquecível, ainda tão límpida em minha memória. Feitiços de Repulsão e fragmentos de Pontas ziguezagueando por todos os cantos do Salão, a escola inteira concedendo sua atenção e ele  matraqueando algum palavrão de sua própria autoria, sem saber o porquê de tanta indignação por sua requintada "homenagem". Pedro riu-se no canto do sofá, ignorando sua idolatria por Tiago."Ah, é, aquilo foi lindo...Belo refrão, aliás." Suspirei, dando tapinhas parabenizadores nas costas de um ruborizado Pontas, que aparentava uma ambição muda que querer arrastar Remo pelos cabelos escola afora."Foi mesmo. Quantas Delícias Gasosas você teve de comprar mesmo, Pontas?" questionou um subitamente interessado Pedro, enxugando uma suposta lágrima.

"Bobagem. Pura caretice...Além do mais, não adianta chorar pelo leite derramado, nem eu nem vocês temos namoradas na flor da idade. Um suicídio coletivo não cairia mal agora..." reclamou um depressivo Tiago, deixando os óculos descer até a ponta do nariz, e descansando a cabeça no meu ombro, Pedro parecendo muito tocado por suas palavras."Sinceramente, Pontas, você é um idiota com miopia, com uma grande habilidade em desanimar as pessoas, seu cachorro." Ele inspirou profundamente, bocejando, e Remo se pronunciou, levantando-se do sofá, em direção desconhecida. "Conte algo que eu não saiba. Eu vou para o Salão, esquecer de toda essa babosei---" Mas a enorme coruja que entrou pelo quadro, quase o arrombando com a extensão impressionante de suas asas, arrastando pesadamente uma sacola estonteantemente vermelha, decorada com coraçõezinhos flechados, pendurada no bico. Buda, a coruja original de Remo vinha logo atrás, trazendo-lhe o Profeta Diário. A coruja maior despejou o que seriam, minimamente, dois quilos de cartinhas rosas com coraçõezinhos, aromáticas, com adesivos móveis e cantantes adornando-as, despejando todo o conteúdo sob a cabeça de Remo, fazendo chover papel em plena manhã."Ok..." começou vagarosamente Tiago, segurando-se para não se atirar em encontro à parede e arrancar o próprio fígado na mão."Eu poderia cortar minha cabeça e comê-la agora mesmo..." confessou, a boca abrindo-se horrorosamente, ao que se deparava com metros de pergaminho encantado recitarem poemas frívolos para um fervorosamente corado Remo, que tentava se concentrar, em vão, no jornal."Mas não vai, porque você não precisa desse tipo de demonstração fútil, egocêntrica e comercial pra se sentir amado. Alguém quer chá?"

É, indiscutivelmente o Dia dos Namorados é medonho, tornando-se mais torturante a cada ano. Se eu queria deslumbrar Remo, era melhor eu começar uma busca pelo endereço de Flu da distribuidora de chocolates. Antes que outro espertinho tivesse a mesma idéia e comprasse o planeta pra ele. Arranjei um isqueiro, numa tentativa ante-pânico de fumar enlouquecidamente, mas Remo atirou chá de ervas borbulhante por minha goela abaixo. Ok, se eu conseguisse persuadir Tiago a não ficar olhando a altura da Torre Principal para o primeiro buraco no térreo com um feitio de morbidez, eu poderia ir até Hogsmeade secretamente e conseguir um presente razoável. Quem eu estou enganando? Vou acabar gargarejando Ave-Maria no jantar do Dia dos Namorados, assim como sugeriu Pontas.

"Se eu fosse torrar todo esse dinheiro num presente, eu passaria um ano em desnutrição." Ronronou Tiago, dependurado numa das vitrines da bomboniére com ares de criança faminta e abandonada."Talvez na África subnutrida e miserável eu consiga arrumar um encontro. E uma doença venérea. Aaargh, eu quero morrer..." A atendente embrulhava caprichosamente o embrulho, com um feitiço que laçava as tiras brancas em nós que, antes, eu juraria serem impossíveis de se amarrar num pacote tão espaçoso. Enfim, eu tinha um gosto apurado, quando se tratava de presentes, eu os escolhia com esmero e primor, tendo certeza de que era o que havia de melhor e mais luxuoso, pois, a beleza por si própria me seduzia. E nada mais apropriado que um refinado presente pra criatura mais estonteante viva."Ter uma família infernal e rica, algumas vezes pode ajudar. Ah, a Senhora tem um Calendário Lunar, não?...Eu não quero uma minguante...Uma Lua-Cheia, por favor. Lua-Cheia. Você sabe, aquela mais bonita que vem depois da Crescente." Não sei se meu tom soou petulante ou mesmo aborrecedor, mas ela se retirou muito inesperadamente, com a varinha apertada nas mãos e o rosto muito escarlate, levando a embalagem em forma de Lua que eu solicitara. Remo dissera que faria uns estudos urgentes na biblioteca, deixando a cama desfeita e aquele perfume quase imperceptível de almíscar, que só se captava quando se estava deitado lá, colado ao travesseiro. Foi o que eu fiz, depois de ser arrancado aos pontapés.

Já estávamos no bendito local há, ao menos, umas duas horas, devido às complicações da caixa, ah, era a última vez que eu me empenhava tanto por um presente tão tolo. A sorte era que fazia aquilo pra agradar Aluado, pelo contrário, já teria providenciado uma maneira menos sutil de levar a moça a iniciar trabalho de parto ali mesmo."Eu não sei se voc notou, Almofadinhas, mas a mulher parece estar querendo enfiar duas agulhas de tricô nos teus olhos...Não se esforce tanto, com um presente desses, até eu arrancaria as roupas pra você." Jogou uma bala de menta na boca, a voz saindo meio encatarrada e não toando muito convincente."Oooh, Pontas, é muito gentil da sua parte de lembrar isso. Mas não. Agora já sei, mais ou menos, o que não te dar no Natal." Repliquei de forma azeda, localizando Pedro ao longe com uma menina que em muito se assemelhava à admiradora de Remo na biblioteca, que eu enxotara tão rudemente, e Tiago pareceu notar o mesmo."É, o mundo dá voltas. Acho que o Remo tem razão. Vou morrer e só ser encontrado quando uma colônia de fungos tiver me comido por inteiro. Até o Pedro consegue um encontro..." Ia discorrer sobre a alternativa das africanas, mas achei mais conveniente que não. Foi a minha vez de engolir uma das balinhas de menta, passando um dos braços nos ombros de um desanimado Tiago, deixando a loja com sacolas ciclópicas abarrotadas com chocolates suíços e cerejas frescas e recentemente colhidas, enquanto os intermináveis pares de namorados tomavam um café nos bares, muito os alimentando na boca e presenteando-os com sorrisos indisfarçáveis e beijos molhados. Engoli em seco. Será que esse seria o meu destino ao enviar a caixa para Remo? Será que ele providenciaria uma morte indolor e sangrenta para encerrar o lindo dia? Ele me ignoraria? Incrível como eu nunca tenho as respostas para as perguntas mais difíceis. Claro que, arrancar as roupas com selvageria, como Tiago propusera, ele não faria. Ou faria? Fantasiar a probabilidade não fazia mal, ou fazia? Ôpa. Tropecei.

Talvez fosse melhor não arriscar absolutamente nada, para que ele não soubesse o remetente, que fosse tudo uma brincadeira, um segredo para nunca ser revelado. Afinal, ele não levava a sério toda essa porcaria que tratava do típico e irritante Dia dos Namorados. Ele não se importaria, de qualquer jeito, então, era só assistir ele devorar a caixa até a última gota de licor sem ao menos se sentir infimamente tendencioso a abrir a boca. Não parecia difícil (Tudo bem, é infinitamente mais difícil, eu só preciso de um incentivo da minha consciência). Quem sabe fosse melhor escrever algo antes de mandar para o Correio Amoroso entregar? No final das contas, ele não iria desconfiar. Um pergaminho e um pouco de sentimentalismo exacerbado, é exatamente do que eu preciso.

O que eu escrevi? Alguns versos longos começando com "mão voluptuosa" e "carne desejada", passando por "delícias a serem descobertas" e terminando com um extremamente patético "vamos juntos..." e blábláblábláblargh. Ao acabar, reli o conteúdo, encontrando cerca de uma dezena de erros ortográficos que Remo teria repudiado e ainda feito se tornar motivo de pena universal ao pendurar no mural da escola (imagem mental nada prazerosa sobre mim mesmo sendo esfolado vivo por escrever "crescer" com uma cedilha). Como havia redigido com o pergaminho e tinta negra, sem oportunidade de borracha ou feitiço de correção, foi na rasura mesmo. Não era a carta mais perfumada, asseada, e o papel podia não estar tão plano quanto havia sido originalmente...Mas era do fundo da alma de um Black. Isso é suficiente, não é? Cada vez mais a idéia de "suicídio coletivo" de Tiago parece mais e mais irresistível...

Quando o pergaminho descansou sob a mesa, Tiago estava debruçado nos meus ombros, rindo como nunca vida, próximo a por os rins para fora, tamanha vermelhidão que tomara conta de seu rosto, e lacrimejava como uma infante depois de conhecer o circo. Minha expressão endureceu na hora, e o encarei longamente, uma máscara de ira contornando minhas feições."Você é uma caixinha de surpresas, Almofadinhas. Definitivamente, eu não conhecia o lado caipira da sua personalidade.", lancei-lhe um safanão no centro do rosto contorcido numa risada inabalável, no entanto, isso não o impediu de continuar tecendo um surto de histerismo."Ah, você me mata. Minha barriga está latejando. Se você não tirar a barriga da miséria hoje,(ou possuir a "carne desejada", como o energúmeno fez questão de adicionar) eu juro que te faço comer fórmica." O que era completamente dispensável pois não haveria nenhuma "barriga na miséria" para ser tirada, ninguém saberia de coisa nenhuma, unicamente eu, Tiago (que, inconvenientemente, que surge espontaneamente de qualquer buraco, quando deveria estar, na genuinamente, em qualquer outro local, de preferência, a dez metros de distância, o que nem em toda ocasião era seguro), e as paredes que muitas vezes possuíam ouvidos. Nomeei o destinatário, assegurando-me de que o espaço indicando "De:" ficasse vazio. Rá, óbvio, todavia, por via das dúvidas, nunca se sabe como a mente pode brincar com os possuidores.

Na mensagem sonora, pus uma réplica não tão bem reproduzida de meu musical preferido, que me arrebatara quando fora a Paris, e ainda era uma criança pirracenta e desobediente de seis anos (não sei se ainda mudei muito nesse quesito), e minha mãe ficara por toda a noite tentando enxugar minhas lágrimas, que escorriam interminavelmente, por ter presenciado a nebulosa história de Christine e o Fantasma, no subterrâneo da "pera de Paris, seus violinos, órgãos e cravos entoando e adornando um dos espetáculos mais maravilhosos que já presenciara, mudo, com os grandes olhos infantis vidrados na grande tragédia. Talvez Remo fosse achar estranho, mas, afinal, eu não era a mais lógica das pessoas, e, ora, eu estou basicamente me lixando(nota mental: parar de contar mentiras deslavadas e soar como um incapacitado mental). Afixei a carta na caixa, colocando-as na enorme sacola que as corujas da casa se encarregariam de levar. Involuntariamente, minhas mãos transpiraram e senti a garganta apertada, mas assim que as deixei cair no fundo da sacola, uma das corujas sobrevoou minha cabeça, levando embora o que eu comprara tão afetuosamente. Tiago, depois de debulhar-se em risadas cacarejante, contorcia-se numa das poltronas, num acesso fatal e crônico de soluços ininterruptos, sobressaltando os primeiranistas que passavam, encolhidos.

Quando o relógio indicava que já se passavam das dez, Tiago, Pedro e eu, já estávamos ceando no Salão, a escola absorta num clima de festividade e afeto que não se via em qualquer dia do ano, exceto naquele 14 de fevereiro típico. Casais de mãos dadas, sorrisos sendo espalhados pelo salão, presentes, pelúcias e agrados por todo o salão, e todo aquele aspecto de romantismo, companheirismo e demonstrações calorosas por aqueles que nos encantam. E eu, apesar de envolto por tão valorosos amigos, me sentia tão vazio quanto a taça de vinho que acabara de sorver."Ishu não me shoa beim, Pontash, o Remo não she atrasha nem prash sshuas nesheshidadesh fishiolóshicas, por que diabosh já shão desh horash e ele não deu ash carash...? Mash que merda." discorri, a boca entupida com alguma espécie de bolo de carne empapado, cuja massa parecia querer obstinadamente se grudar nos meus molares. A cadeira ao centro, normalmente, ao meu lado e ao de Tiago, não estava sendo utilizada pelo seu ocupante normal.

Eu tinha ânsia do Remo sentado ali, ao menos para me ajudar a bolar xingamentos ultrajantes em protesto ao Dia dos Namorados. Ninguém tinha rastro dele, nem sequer no dormitório ele havia sido visto, e o estojo encouraçado do violino havia inexplicavelmente desaparecido, sem deixar nem pó debaixo de onde estava guardado por meses."Almofadinhas, sua mãe nunca lhe ensin...Muito bem, está entendido." Com um estampido furioso atirei a taça na mesa, encolerizado, e Pedro me mirou escandalizado como se fosse comprimir a Terra com os cotovelos. Ergui-me num pulo quase acrobático, deixando que a cadeira se esvaísse pra trás, na posição e entoação certas para começar um discurso rebuscado. Todos me olharam como se estivesse sofrendo de doenças degenerativas cerebrais, e precisasse de cuidados profissionais ligeiramente."Se vocês, seus bastardos catatônicos, acham que eu vou ficar e aproveitar a sobremesa enquanto...enquanto ele...o...hum...digo...Ah, dane-se, com licença e bom apetite." Muitos brindaram, inconscientes do estado no qual meu coração se esmagava no peito, dolorido. Era hora para ações precipitadas. Corri até uma das saídas para o jardim, lançando um olhar de relance à mesa da Grifinória, onde Tiago acenava impetuosamente, dando início a uma sucessão de pratos e copos que se debatiam ruidosamente ao ritmo de "We Will Rock You" na mesa, e, Lílian Evans ergueu a cabeça cabisbaixa da refeição, assentindo para mim, como uma aprovação muda e secreta, antes que disparasse desenfreado pela noite de brisa gelada e refrescante que despenteava meus cabelos nas costas, tão rápido, que meus sapatos deslizavam no gramado, e alguns quintanistas que me viam correr como um fugitivo de Azkaban, me perguntavam, mexericando, se haviam posto enxofre no meu arroz. Bah, bando de desocupados.

Chegando até a biblioteca, abri a porta lentamente, preocupado com a presença de alguém por lá, que não fosse Remo. Foi quando notei a estupidez que fizera, esquecendo o mapa debaixo dos pergaminhos, no dormitório, e estando à mercê de qualquer tipo de acontecimento, sem poder ser localizado posteriormente. No entanto, como me tratava de uma pessoa de riscos, escancarei as portas colossais de uma vez, sentindo uma grossa camada de poeira encobrir minha visão. A escuridão na biblioteca era quase total, a não ser por uma...havia uma vela fina e tão cândida quanto a pele pálida e terna de Remo, e a chama bamboleava de forma que eu não poderia saber se iria se extinguir imediatamente ou durar por mais algum tempo. A semelhança com a tonalidade da pele de Remo era tão visível, que cambaleei quando me deparei com seu rosto, sereno e firme, sendo fracamente iluminado pela chama. Mas que diabos ele fazia misturado naquela obscuridade medonha? Com um olhar mais do que penetrante e revelador, disse um breve "Boa-Noite, Sirius..." com aquele sotaque altamente sedutor e arrastado, e assoprou o último vestígio de luz que nos cobria, deixando-me desnorteado. Se não permanecesse estático onde estava, cairia ou tombaria em alguma mesa ou estante, e isso não seria uma experiência nada deleitosa. Ele, o capetinha, queria me pregar algum tipo de brincadeira doentia, pois eu sou totalmente cônscio de que lobisomens possuem uma visão muito mais aperfeiçoada e clara, mesmo na penumbra.

Como um brilho nas trevas, pude vê-lo erguendo um objeto sob os ombros, e dedilhar-lo suavemente, como quem massageia um ponto dolorido, com presteza e cautela. Meu coração tamborilou no peito, quando o magnífico "Fantasma da "pera", meu favorito desde a infância, penetrou meus ouvidos, na forma de uma canção doce e comovente, tão sutil e ao mesmo tempo engrandecedora, como quem conta um segredo alucinante. Acompanhei as notas de forma faminta, extasiado e ao mesmo tempo queimando em ira por ser presenteado de forma tão simbólica e adorável, e sem poder vê-lo produzir meu êxtase momentâneo. Abençoado ele era, por conseguir dar vida a algo tão belo, tão soberbo e tocante."Soa familiar, Sirius?" Era tão melancólico e majestoso, que eu morreria pra abraça-lo agora mesmo, por se lembrar e por me proporcionar a graça que só a música bela e significativa possuía. Não pude evitar, e meus olhos se marejaram, e torci para que não pudesse ver as lágrimas deslizando e molhando meu rosto, com tanto ritmo e emoção que parecia acompanhar a melodia. Nunca esqueceria que espectador fascinado e embasbacado fui nesse dia.

Com um movimento, a música parou e enxuguei as lágrimas sem afobação, tentando memorizar o que havia ouvido, o concerto particular que acabara de ganhar, como um dos presentes mais valiosos da minha existência. Com segurança e certeza na voz, Aluado ordenou "Aproxime-se, Sirius.", e assim o fiz, movimentando-me meio hesitante, e parando nos calcanhares quando uma ponta se insinuou por baixo de minha camiseta, vagarosamente. Uma varinha. A varinha de Remo. Uma mão muito decidida escorregou por meu tórax, me provocando um arrepio que ondeou como uma descarga elétrica, mimando-me à medida que percorria minha pele, e um gemido quase inaudível me escapou. Não podia ser o que eu imaginava. Só era possível nos sonhos molhados, numa realidade intergaláctica e alternativa, não no plano real e palpável. Só se ele estivesse sob efeito de muito alucinógeno, drogas pesadas, poções ilegais. Mas, então, como? Quando uma respiração tépida e pausada veio me acariciar o rosto, é que voltei para o chão. Só havia uma palavra.

Extraordinário.

Tudo bem, era pouco pra descrever. Muito pouco, extraordinário era uma palavra estúpida e indigna para designar meu primeiro beijo verdadeiro, o primeiro beijo carregado de volúpia, brutalidade, espontaneidade, brasas e cobiça. Eu queria poder ver seu rosto. Era a primeira vez que eu beijava com tanta fome, tanto furor, tanta vontade de prová-lo, experimentá-lo, despi-lo e faze-lo sentir-se um décimo do torpor que me castigava. Quando me envolveu naquele abraço, primordialmente, o beijo foi agradecido, sutil e acalentador, mas depois que o puxei pela cintura, fazendo-o gemer sugestivamente dentro dos meus braços, e foi como fogo líquido me atravessando. Sua boca alastrava aquele gosto saboroso e intenso que o chocolate recheado deixava, combinado com o mais puro licor, e tudo que passassem pelos lábios dele ficavam centenas de vezes mais puros e tentadores, ainda mais quando cobertos pelos meus. Quando nos separamos, muito tempo depois, consegui ouvi-lo arquejando sonoramente, assim como eu, e fui capaz de discernir o calor delicioso que escorria de seu corpo, tão mais magnífico quando estava enrolado no meu. Nada de pânico, eu beijei o Remo. Caso a morte abrisse a porta, com aquela foice cortante e imensa, eu lhe chutaria o meio do traseiro e iria por espontânea vontade, uma vez que estava pronto para morrer umas cinco vezes. Ansiava por sair correndo como uma pata choca, berrando como um fugitivo de hospício, e me atirar da Torre Principal. Tateei no escuro, incapaz de falar, e sorri ocultamente quando localizei a manga de suas vestes, e o puxei ao meu encontro, inapto a soltá-lo tão cedo, suas formas se recheando precisamente com as minhas, exatamente como peças de um jogo.

Com um movimento leve que agitou a varinha, o que pareciam ser centenas de velas se acenderam maquinalmente, iluminando-nos, e deixando aquele lugar de aspecto tão rústico e antigo pronto para habitar meus sonhos. Tudo que Remo produzia conseguia ganhar proporções maiores e mais satisfatórias, por conseguinte, acho que daria para imaginar a beleza que nos enredava e que brincava com meus olhos. Rindo de forma adorável, Remo empurrou meu queixo para o local de origem, já que este estava pronto para descer até o chão. Era de tirar o fôlego, no sentido literal. "Aluado, isso...isso é lindo demais, é desmerecedor. Pra que diabos tudo isso?" ele sorriu com graciosidade, apontando a caixa ao fundo, cujas embalagens já estavam vazias."Achei que seria a melhor forma de agradecer um maravilhoso presente de Dia dos Namorados e um poema incrivelmente piegas para o seu melhor amigo. Rotina, huh, você entende?" Não é possível que ele tivesse usado um Feitiço de Remetência, era magia avançadíssima, presumivelmente, era impossível que um bruxo menor de idade pudesse ao menos entender como produzi-lo."Eu tenho que repetir: você é anormalmente inteligente, e dessa vez, é sincero. Mas como você descobriu? Se você usou o feitiço, por favor, case-se comigo. Agora." Rimos ambos, e ele parecia uma tela renascentista quando iluminado pelo fogo, e eu nunca me dera o trabalho de notar isso até então, ele era cativante em proporções insonháveis."Depois dessa, acho que eu mereço um cigarro. Ah, e, Almofadinhas, eu diria que você tem uma caligrafia horrivelmente reconhecível" E me beijou ternamente, de ousada, deixei que sua língua investigasse espetacularmente bem o interior, me carregando para as nuvens. Ao nos desgrudarmos, era eu que tinha o rosto esfogueado, e um semblante abobalhado estampado no rosto.

"Se a minha caligrafia primária surte esse efeito em você, eu diria que eu achei minha carreira perfeita." Sussurrei no seu ouvido, atrevendo-me a mordisca-lo com atrevimento e languidez."Poeta?" ele supôs, assim que paramos frente à mesa, minhas pernas entrelaçadas nas dele, e seus braços viajando por minhas costas, abaixo de minha blusa, como quem confere se o conteúdo é verdadeiro e concreto, e muito palpável, devo dizer."Não, pra dizer a verdade, eu tinha pensado em outra, como seu dono...Mas já que você prefere..." disse numa inocência simulada, e ele riu alto e entusiasticamente."Absolutamente não, eu acho que a sua sugestão é, de longe, melhor que a minha." Ele assentiu, como um aluno aplicado do jardim de infância. Balancei a cabeça, afirmativamente, apontando um dedo para a mesa, onde estavam vários pergaminhos, canetas, apostilas e vários embrulhos ainda manchados de recheio de chocolate."Posso?" questionei, tratando-se do material que deixava aquela mesa larga e extensa fora da nossa disposição. Ele olhou para o relógio, aparentando impaciência."Você perde tempo enquanto fala, Almofadinhas..." dada a permissão, atirei tudo para os ares, tendo uma sensação de liberdade e selvageria que me preencheu quando os papéis e cadernos voaram longe. Comprimi-o pela cintura, encaixando-o justamente na minha, nossos rosto não se tocando por milímetros, e nos olhos dourados chispas dançavam. Lambi os lábios assim que minha perna contornou a dele, ele pareceu consideravelmente estimulado com esse gesto, e o couro de minha calça roçando nos jeans, assim como meus lábios quase lambiscavam a maciez dos dele, e nossas risadas reverberaram pelo teto quando nos posicionamos por cima da mesa, onde ele normalmente estudava, minhas pernas pousadas pelas laterais do seu corpo, e meus cabelos longos agraciando seu rosto. Murmurei, roucamente:

"Aluado, você tem consciência de que, por não ter deixado nenhum bombom pra mim, você merece ser severamente punido, não...?"

"Bem lembrado, Almofadinhas, eu sou realmente muito egoísta e guloso por isso...e você tem todo o direito de escolher a punição que eu mereço..."

"Mas o dia não tem horas suficientes pra isso..."

"Quantidade não é qualid...Ah..." Sua voz foi interrompida quando mergulhei em seu pescoço, arrancando suspiros extasiados e íntimos, que encheram meus ouvidos de forma inesquecível, só me impulsionando para comprovar o quão mais eu não prestava.

A princípio, depois do dia na biblioteca, a vida não poderia ter se tornado melhor, e já sei que no próximo Dia dos Namorados estarei muito bem acompanhado, e acredito que este diário inútil vai servir como um bom presente de reserva, assim que minha família se recusa a enviar mais dinheiro. Outrora Pontas viera me dizer que, no Dia dos Namoras, enquanto estava a minha procura e a de Remo, sem entender patavinas sobre meu sumiço demasiadamente prolongado (besta quadrada), havia inspecionado no mapa, e falou que nunca vira dos pontinhos se enroscarem de uma forma tão curiosa. A cama de Tiago havia mudado de lugar, e ele argumentou dizendo que preferia dividir um beliche com Pedro agora, e não me disse o motivo, muito corado e uma carranca no rosto.

Estava tão entusiasmado com a nova perspectiva de estar namorando Remo, que não desgrudava dele um segundo sequer, sufocante, não? Algumas vezes eu enrolava a madrugada assistindo-o dormir, misturando a sua doce colônia natural nos meus cobertores. Era o aroma mais entorpecente que já houvera. Eu era um apaixonado indiscreto, piegas e, sobretudo, obsessivo (Eu rogo a Merlin, pelo amor que reservo à minha jaqueta de couro importada, nunca deixe nenhuma criatura em sã consciência ler esse diário, ou minha reputação estará enterrada e se revirando a seis palmos abaixo da terra). Mas quando esse vício se tratava de Aluado, não era nada prejudicial, muito pelo contrário. Numa dessas de passar a noite venerando aquela doçura, aquele esplendor fresco e puro, despertara em seu colo, com aquele olhar dourado fabuloso me cumprimentando o novo dia. Oh, e Tiago estava numa terrível onda de enjôos e mal-estar depois de flagrar-me lambiscando o pescoço de Remo no banheiro. Fiquei tão tenso que corri Salão afora, como viera ao mundo. Uma semana de detenção, mas uma vida completa de felicidade e nostalgia por ter visto o rosto cadavérico de Ranhoso ganhar uma tonalidade entre a pimenta mexicana e o beterraba quando invadi o Salão nas minhas vestes de 'cara-de-pau' e 'nem um pingo de decência na cara desavergonhada' (oh, isso é crédito da Prof. McGonagall).

Encorajei Pontas a fazer o mesmo que eu fizera em relação à Lílian, contudo, ela o estapeou quando a escola em sua totalidade era a platéia, inclusive eu e Remo, que descansava no meu colo durante um dos intervalos de Poções à beira do lago, e ele foi motivo de pilhéria pelo resto do mês, depois de chutar, enraivecido, metade da grama do terreno da escola, esfolando os sapatos novos. Exceto isso, tudo era motivo para celebrar, se bem que muitos nos observavam como um casal, escondidos nas masmorras nos intervalos e jantares, com um aspecto muito deprimido(PS: Morram de inveja, lacaios). Estar com o ser mais perfeito que já pisou em terras mundiais era um potencial alvo de olho gordo, que pareciam se multiplicar. Eventualmente, Aluado me encontrava numa seção sádica de tortura com algum pervertidozinho que tinha a audácia imperdoável de admirar suas formas bem contornadas (isso é privilégio particular meu, eu já tenho direitos irrevogáveis sob aquele corpinho delineado pelos deuses), mas nada que uma enciclopédia ilustrada no meio do crânio não resolvesse. Hoje andávamos pela Lagoa, quando uma ventania enregelante e decerto familiar começou a soprar, ameaçando tempestade.

"Almofadinhas, vamos entrar, eu não quero me aproximar de um óbito por hipotermia novamente..."

"E quem se importa, Aluado? De qualquer jeito, nós dois vamos pra baixo dos cobertores mesmo..."

"Sirius, embora eu odeie admitir isso, seu raciocínio é extraordinário..."

"E tratando-se disso, eu espero que ele funcione da mesma forma que o seu."

"Ah, Almofadinhas, você ainda não viu nada. Nadinha."

Oh, sinto muito em me despedir, no entanto, depois dessa, nem mil pergaminhos serão suficientes pra descrever o que a noite resguardou. Acabou a tinta. E, honestamente, eu tenho coisas mais prazerosas a fazer, se é que vocês acompanham o meu "raciocínio" picante...                                                 

Orgulhosamente,

Sirius Black.