Noite de Chuva

Hogsmead – 10/08/2003

Duas horas depois do amanhecer, Severus deixou Sirius adormecido no quarto e desceu para as dependências sociais da casa.

Em algum momento no mês anterior, Sirius o convencera a darem um almoço para comemorar a data. "Só alguns amigos." Sirius dissera.

-Estupidez a minha, é claro – constatara Severus quando a lista de convidados enfim ficou pronta. – Onde um Grifinório diz "alguns amigos", eu digo "uma multidão de loucos".

Mas o que estava feito, estava feito. E é claro que Sirius iria dormir até quase a hora dos convidados dele chegarem. Se dependessem de Sirius, o almoço seria uma enorme bagunça. E foi pensando nisso que Snape desceu as escadas.

-Bem feito para mim. Quem mandou eu me envolver com um cachorro lambão – resmungou ao entrar na cozinha.

-Bom dia, meu senhor – a voz esganiçada do elfo saudou Severus.

-Bom dia. Sirva o meu café da manhã. Como vão os preparativos desse bendito almoço?

Enquanto tomava café, Snape se inteirou do que os elfos já haviam feito. Como era verão, e o tempo estava quente e seco, mesas haviam sido espalhadas no jardim. Milagrosamente estava tudo dentro do previsto, e os elfos experientes nesse tipo de coisa estavam dando conta de tudo.

-Estarei no escritório lendo a correspondência. Se houver algum imprevisto, me chame. Às dez eu venho supervisionar os preparativos.

As relações entre bruxos e elfos haviam mudado nos últimos cinco anos. Os dois elfos da casa eram livres, mas Severus acreditava na linha dura com elfos e alunos, e nada mudaria isso. Os elfos eram livres, tinham salário, roupas, eram tratados com formal educação, nunca eram castigados, mas seguiam os rígidos padrões de disciplina do Mestre de Poções de Hogwarts. Havia muito poucos diante de quem Severus se abrandava.

Antes de começar a ler a correspondência não pôde deixar de implicar com Sirius. E, como sempre que provocavam um ao outro, usou o sobrenome:

-Black, são oito e meia. Acorda.

-Snape, o almoço é ao meio dia. Deite aqui comigo que eu acordo.

Sirius nem mesmo abrira os olhos, a voz cheia de preguiça. Mas Severus não esperava mesmo que ele se levantasse, e desceu com um meio sorriso divertido para o escritório, onde começou a ler a montanha de cartões de congratulações. Dentro do cartão de Draco e Harry, um dos poucos não cantantes que eles haviam recebido, havia uma nota breve de Draco.

"Vou fazer o que me pediu. Eu e Harry chegamos às 11:30 para
ajudar você com a invasão."

-Black, são dez horas. Acorda.

-Snape, o almoço é ao meio dia. Deite aqui comigo que eu acordo.

-Você ainda tem de tomar banho, e eu tenho que checar o que os elfos estão aprontando.

-Se você for lavar minhas costas eu levanto.

-Vê se cresce Black. – Era difícil para Severus manter o tom sério, eles adoravam se provocar desse jeito. Era um jogo que quase sempre acabava na cama. Mas não hoje, faltando poucas horas para terem a casa invadida.

Sirius girou o corpo, ficando de frente para Severus, apenas um lençol de seda negra cobrindo partes do seu corpo. Era tentador; ele sabia disso e provocou.

-Venha me tirar da cama.

-Eu conheço você, Black. Se eu chegar a um metro dessa cama, nenhum de nós sai dela.

A risada de Sirus acompanhou Severus escada abaixo:

-Você está fugindo, Snape.

-Retirada estratégica, Black – respondeu, rindo, já na saída da sala de estar.

Mas às 11 da manhã era hora de uma providência.

-Black, são onze horas. Acorda.

-Snape, o almoço é ao meio dia. Deite aqui comigo que eu acordo. – O animago repetia a ladainha para provocar Severus.

Sirius estranhou o silêncio e a falta de resposta à provocação. De repente, luz e som o fizeram pular na cama. Severus fizera todos os cartões cantantes se abrirem no quarto, e escancarara as cortinas com apenas dois movimentos de varinha. A varinha de Sirius estava na mão de Snape, o que impedia Sirius de se defender das mais de 20 canções diferentes, cantadas bem alto, e ao mesmo tempo. O terceiro movimento da varinha de Snape materializou um balde flutuando em cima da cama.

-Você vai levantar para se lavar no chuveiro ou quer água aí mesmo, Black? – A sobrancelha erguida, os braços cruzados no peito e a distância segura que Snape tomara indicavam que viraria mesmo o balde de água na cabeça de Sirius.

Rindo, Sirius se rendeu e levantou. Passando pelo amante, lhe deu um beijo no nariz.

-Chantagista. Vai ter troco.

-Vou aguardar ansioso. – Severus olhava apreciativamente o corpo de Sirius, que se encaminhava nu para o banheiro. - Draco e Harry vão chegar mais cedo.

-Mas ainda acho que dá tempo de você lavar minhas costas – convidou Sirius, parado à porta do banheiro com um ar que só podia ser descrito como angelicalmente safado.

A resposta que ele obteve foi o balde descer do quarto e pairar sobre sua cabeça.

Severus estava na sala com Harry e Draco esperando Sirius descer.

-Quantas pessoas meu padrinho convenceu você a convidar, Severus?

-Perdi a conta. Mas sei que ele chamou todos os Weasley e seus consortes e filhos, Albus, Minerva... ele pretendia que eu convidasse todos os professores de Hogwarts, mas acho que consegui demovê-lo disso... Remus e a esposa, Olho-Tonto, e sabe lá quem mais.

-Isso é que dá a gente se envolver com alguém da Grifinória – disse Draco, olhando brincalhão para Harry, e recebendo um selinho nos lábios.

-Bom dia, meninos. – Sirius abraçou os dois ao mesmo tempo.

-Até que enfim! – deixou escapar Severus.

-Sou um colírio para seus olhos. Não é verdade, Snape?

Mais que acostumados às provocações do casal mais velho, Harry e Draco se afastaram para deixar Severus procurar e corrigir imaginárias incorreções na roupa de Sirius.

-Você é um tormento para minha vida, Black. Isso sim.

Quando Severus acabou de arrumar o já impecável traje de Sirius, surpreendentemente sem ouvir nenhuma vez o amante dizer que isso era desculpa para ficar passando a mão nele, Black pediu:

-Harry, você e Draco podem ir recebendo os convidados no jardim, por favor? Eu preciso trocar duas palavrinhas com Severus e nós já vamos.

Antes de poder perguntar o que estava acontecendo, Snape teve seus lábios capturados num beijo apaixonado.

-Feliz aniversário, Severus. – Sirius escorregou um embrulho nas mãos do amante e se afastou para observá-lo abrir.

Era um fio de ouro branco com uma estrela de cristal negra.

-É lindo, Sirius, obrigado. – Ele beijou Sirius e lhe entregou seu presente. – Eu pensei realmente em comprar uma focinheira para você, mas achei melhor isso.

Um cordão de ouro com pequeno relicário em forma de cachorro. Quando Sirius abriu a jóia, viu dentro dela uma pintura de um nascer do sol.

-É perfeito, meu amor.

Hogwarts – 04/06/1997

Sirius estava parado à sombra das árvores da Floresta Proibida em sua forma canina. Na noite escura, sem lua ou estrelas, seu pêlo negro era a melhor camuflagem. Um leve ruído fez o enorme cão erguer as orelhas. Farejando o ar, identificou quem se aproximava. "Severus." Ocultou-se melhor e esperou o outro bruxo se aproximar. Quando Snape estava bem próximo, deu um ganido baixinho para que ele o encontrasse, e foi andando mais para o interior da Floresta.

As vestes negras de Snape eram uma camuflagem quase tão boa quando o pêlo de Sirius. De qualquer forma, colher um ingrediente raro para poções justificaria a presença de Snape na Floresta a qualquer hora.

Quando tinham andado o suficiente, Sirius voltou à forma humana.

-Você é confiante demais, Black. Se mostrou antes que eu me identificasse, poderia ser qualquer um usando uma poção de Polissuco.

-Boa noite para você também, Severus. A poção não altera o cheiro da pessoa, não enganaria um cachorro.

Snape se sentiu embaraçado. Ser identificado por Sirius pelo cheiro era perturbador demais, um pouco erótico até. Severus vinha lutando desde setembro com a crescente atração que Sirius exercia sobre ele.

Ninguém percebera ainda, mas desde que Sirius voltara e vivera algum tempo escondido nas masmorras, tendo Snape como principal contato com o mundo, muita coisa mudara.

Eles não eram gentis um com outro. Tampouco eram de conversar mais que o estritamente necessário. A mudança talvez fosse sutil demais para outras pessoas perceberem, mas Severus não conseguia mais odiar Sirius. E Sirius parecia algumas vezes desconcertado quando próximo a Severus.

-O que Dumbledore quer, Snape?

-Ele pediu que Lupin trouxesse um mapa que o filho mais velho dos Weasleys encontrou. Ele deve chegar ao ponto de encontro de vocês à meia noite. Eu devo ir com você e trazer o documento para Dumbledore. Ele não quer você no castelo. Acha perigoso.

-Eu sei. Venha, então. A caminhada é longa, e não temos muito tempo.

Depois de uma hora de marcha forçada entre as árvores da Floresta Proibida, eles chegaram às margens de um riacho, e Sirius levou Severus para uma caverna, não sem antes inspecionar toda a região na sua forma canina.

-Está vivendo aqui, Black? – Severus aceitou o cantil de água que Sirius lhe oferecia enquanto olhava a caverna, que além do cantil tinha um colchão e a marca de uma fogueira nos fundos.

-Não. Esse é só o ponto de encontro. Minha "casa" fica um pouco mais perto de Hogwarts, mas não é muito diferente.

-Isso não parece incomodar você.

-É melhor do que Azkaban, ou do que ficar enfiado na casa dos meus pais. Temos ainda uma hora antes de Remus chegar. Por que não se senta?

Sirius indicou o colchão para Snape e, depois de hesitar por alguns momentos, se dirigiu à entrada da caverna, onde ficou de pé, olhando os céus. Parecia inquieto, se controlando com esforço. Ao indicar o colchão para Severus se sentar, Sirius desejara se sentar junto dele e relaxar. Uma vontade enorme de abraçar Severus invadira Sirius, que lutava contra esses sentimentos nos quais não se reconhecia. Acabara de tomar consciência de que estava atraído por Severus, e estava assustado com isso.

-Posso esperar lá fora, se eu o incomodo. – Snape interpretara errado a tensão de Black.

-Vai chover. Remus talvez se atrase. – Black se sentou numa ponta do colchão e indicou a outra para Snape enquanto acendia a fogueira com a varinha. – Vai esfriar, também.

-Como você se virou com o inverno? Esse ano foi especialmente frio.- Severus se sentara na outra ponta do colchão e perguntava algo que o preocupara durante os meses frios, mas perguntava como se só agora aquilo lhe ocorresse.

Sirius deu um muxoxo:

-A outra caverna é mais fechada, e Molly me mandou tantos cobertores que quase dava para construir um abrigo só com eles. Além disso, Remus fez alguns feitiços para proteger a caverna do frio.

-Lupin, claro. Acha mesmo que ele vai se atrasar?

-Com a chuva que vem aí? Sim, acho. Para quando Dumbledore está esperando o tal mapa?

-Ele calculou que eu estaria de volta lá pelas três ou quatro horas. Mas acredito que só vá se preocupar depois que o sol nascer.

-Então durma. Você tem que dar aula amanhã. Eu vigio a chegada de Remus.

Sirius se erguia ao falar, querendo fugir para longe de Severus e da atração que só aumentava na caverna iluminada pela fogueira. Mas um trovão, seguido por um forte relâmpago e por um aguaceiro digno de ser chamado de dilúvio, o impediram de sair.

Sirius fitou a chuva, preocupado:

-Espero que Remus tenha o bom senso de se abrigar e não tentar voar com esse tempo.

-Você se preocupa muito com Lupin.

-Claro, ele é meu amigo. – Duas coisas estavam intrigando Sirius. Ele e Snape estavam tendo uma conversa pessoal, e uma nota triste na voz de Snape. – Esse temporal vai demorar.

Sirius se sentou novamente na ponta do colchão, apoiando-se na parede e enroscando-se na capa. Severus o imitou, e ficaram em silencio por algum tempo. Sirius estava chocado consigo mesmo e, com os sentidos aguçados pelo choque e pela tensão, estava especialmente sensível a tudo que Severus fazia. Mesmo sem olhar, Sirius sabia que o outro estava com os olhos fechados, mas que não dormia. Ele próprio não conseguia dormir, mas estava entrando em um estado de torpor que o fazia fantasiar.

Imaginava qual seria a reação de Snape se simplesmente deitasse a cabeça no colo dele. Ou se assumisse a forma canina e se deitasse enroscado ao lado dele, será que afagaria sua cabeça ou suas costas? Ou então se fizesse o que realmente estava com vontade, puxar Severus e beijá-lo até perder o fôlego?

Quando percebeu a imagem mental que criara e o quanto ela o afetava, Sirius se levantou de um pulo, fazendo Snape se levantar também.

-O que houve Black? Escutou algo?

-Nada, Snape, nada. Acho que comecei a cochilar.

Sirius sabia que não enganaria Snape, mas por nada no mundo iria admitir que se assustara com o quanto gostava da imagem dos dois se beijando.

Estavam os dois de pé. De frente um para o outro. Nunca tinham estado tão próximos em toda a vida. Sirius mergulhou o olhar nos olhos escuros de Snape e detectou uma forte emoção, que o mestre oclumancista se apressou em ocultar. Mesmo perturbado, Snape não pôde deixar de notar o fogo nos olhos de Sirius, paixão e susto. E se perguntava o que podia estar provocando aquilo.

Antes que um deles dissesse ou fizesse alguma coisa, Remus entrou na caverna e, notando a tensão no ar, acreditou que mais uma discussão estivesse em andamento.

-Sirius, Severus. Algum problema?

Sirius se virou rápido, Severus pôde detectar uma emoção diferente nos olhos dele, mas não havia como analisar aquilo agora.

-Remus! – E, olhando para a chuva que ainda não diminuíra, Sirius continuou. – Que diabos você tem na cabeça de voar num tempo desses!

-Calma, Almofadinhas. Só voei um pouco por baixo do temporal.

-Claro, mas não precisa mais que um raio para matar um bruxo tonto que voa numa tempestade.

-Calma, Sirius. – Remus conhecia o amigo muito bem e sabia que, apesar de preocupado, a explosão não era só por causa disso. – Severus, aqui está o mapa que o Professor Dumbledore está esperando. E Sirius, para acalmar seu mau humor, tome. Foi Molly quem mandou. Acho que ela está preocupada com o que você anda comendo.

Remus lhe entregava uma mochila, com uma ceia mais que suficiente para três pessoas.

-Senhores, espero que não se importem em comer com as mãos e dividir o gargalo da garrafa de vinho, que eu acredito que seja cortesia de Arthur e não de Molly. Vamos, Severus, não tem como ir andando até o Castelo com esse tempo, sente-se. E você, Remus, seque-se e sente-se. Eu estou faminto.

Usando de magia, Remus se secou e sentou perto dos outros dois bruxos, e se preparou para a ceia improvisada enquanto tentava entender se ficara louco ou surdo. Afinal Sirius chamara Severus de .... Severus. E Snape não só consentira nisso como aceitara o convite de comerem juntos. Certamente ele estava ficando louco, porque Severus Snape estava iniciando uma conversa civilizada com Sirius Black, que estava respondendo tranquila e familiarmente.

-Quando Molly Weasley não lhe manda nada, de que você vive Black? – Outra preocupação que o martirizara nos últimos meses, mas que só agora ele se arriscava a externar.

-Eu caço, pesco, e tem um elfo de confiança do Harry que me traz pacotes de coisas de Hogwarts. Minha caverna está virando um esconderijo de luxo – acrescentou Sirius, dando sua risada que lembrava um cachorro feliz. Estranhamente, Severus descobriu que gostava do som.

"Se eu contar ninguém acredita." Era o que passava na mente de Remus. Eles conversaram sobre notícias dos membros da Ordem, a rotina de Sirius; Severus chegou a contar algumas historias de seus alunos -o humor dele era ácido, mas inteligente, e fez Sirius rir. Então Remus pediu noticias dos garotos na escola; queria saber como Draco estava indo depois do seu dramático resgate nas férias passadas.

-Ele está desenvolvendo uma amizade interessante com Potter. De certa forma. Potter o protege, não só de possíveis ataques por ordem de Lucius Malfoy, mas também da rejeição dos outros membros do ED. E Draco mantém a mente dele alerta. Potter é incrivelmente distraído na hora de perceber nuances mais sutis, e Draco é afiado como navalha. Ele tem feito uma parceria interessante nesse aspecto é com a Granger e com a Lovegood.

A conversa continuou até a chuva passar. Remus pegou a vassoura para voltar para Londres enquanto ouvia, pasmo, Sirius avisar que escoltaria Severus até próximo ao castelo, uma vez que "Com a chuva você não vai conseguir reconhecer a trilha, Snape".

Duas horas depois, quando chegou ao castelo, Severus reconheceu que sem Sirius ele teria realmente tido problemas com a trilha. A Floresta estava enlameada e, em muitos pontos, alagada. Os meses escondidos nela tinham dado a Black o conhecimento necessário para conseguir atravessá-la.

Depois de entregar o mapa ao Diretor e tomar um banho para se livrar lama, Severus se deitou para aproveitar as duas horas de sono que ainda teria. Sua mente começou a vagar para Sirius sozinho na floresta, dormindo em uma caverna. No entanto, Sirius parecia quase feliz, com certeza muito mais feliz do que quando ficara trancado na mansão dos Black, mesmo com Remus lá com ele. Ao lembrar de Remus, Severus recordou a chegada do bruxo à caverna e a expressão dos olhos de Sirius. Só agora, relaxado em sua cama, conseguira entender o que vira. Sirius se frustrara com a chegada de Remus; parecia querer que Lupin tivesse demorado mais para chegar.

-Droga. Agora eu não vou conseguir dormir mais.