Moruame domauame

Hogsmead – 10/08/2003

Severus estava dormindo, e Sirius velava o sono dele. "Cinco anos juntos e eu ainda gosto de ficar vendo Severus dormir, cinco anos juntos e eu ainda tenho tanto para conhecer desse homem". A expressão tranquila no rosto de Snape era totalmente diferente da que seus alunos conheciam, ou da que ele mostrara pouco tempo antes enquanto faziam amor.

Quando Severus se entregava a Sirius, como a pouco, ele o fazia completamente. O animago era fascinado pelas expressões que passavam pelo rosto do amante quando estavam juntos. O abandono total de si mesmo quando se entregava a Sirius era tão intenso quanto a paixão e a possessividade com que ele possuía Sirius quando os papéis se invertiam.

Eles eram assim, apaixonados, possessivos, intensos. Na cama ou fora dela. Quando concordavam ou quando brigavam. Capazes de qualquer coisa um pelo outro.

Ver Severus dormir nesse dia em especial fazia Sirius recordar tudo o que eles haviam vivido. O ódio que os separara na adolescência, o dia em que, por sua culpa, Remus quase matara Snape. Quando Severus quase o entregara aos dementadores. O dia da batalha no Ministério, quando Severus dissera para ele ficar, e ele, Sirius, não atendera. Não havia mais raiva nessas memórias, só uma tristeza cansada. O ódio de um pelo outro estava morto, suas cicatrizes não, mas eles haviam construído muita coisa boa depois disso.

Vendo Severus dormir, Sirius se lembrava dos dias escondidos na Floresta Proibida, quando, na hora de dormir, por menos que ele quisesse, seus pensamentos se voltavam para o Professor de Poções. A sensação de estranheza quando se percebera feliz ao vê-lo. O Natal no esconderijo da Ordem, quando, enfim, admitira para si mesmo que estava perdidamente apaixonado por Severus. Eram lembranças doces, apesar dos tempos de perigo.

Seu coração ainda acelerava quando recordava as missões em que haviam se envolvido juntos no último ano da guerra. "Dumbledore devia desconfiar de algo", pensou, divertido. Eram missões arriscadas, a sobrevivência de um dependia do outro. Era preciso confiar no parceiro. E eles eram tão diferentes um do outro. Sirius era o impulsivo, o guerreiro destemido, o combatente heróico que detestava um recuo. Severus era o prudente, o estrategista, o guerrilheiro capaz de criar armadilhas mortais. Muitas vezes eles brigaram; os dois detestavam ceder. Mas fora assim que haviam aprendido a agirem juntos. E juntos eles eram absurdamente bons.

Ele se lembrava da vez em que uma dessas discussões resultara na queda dele numa armadilha. Ele deveria ter percebido a palidez de Severus ao ajudá-lo a sair, meio amarrotado, um pouco tonto, mas, de modo geral, intacto, do campo mágico de contenção. Severus o arrastara para o esconderijo e chegara a pôr a missão em risco por causa dos cuidados que tomara com Sirius.

Era o feriado da Páscoa. Era a primeira vez que dividiam um quarto; complicado dormir tão perto de alguém que se deseja tanto e não poder tocar nele. Nessa missão, Sirius descobrira o irritante hábito madrugador de Snape, e Severus descobrira que Black tinha um péssimo humor matinal.

Sirius ainda estava perdido nas memórias quando Severus abriu os olhos.

-Oi, dorminhoco.

-Oi. – Severus se espreguiçou longamente sem tirar os olhos do amante.

-Eu já falei o que esse seu jeito de espreguiçar provoca em mim, Severus?

-Já. – Severus se espreguiçou de novo. – Eu estou morto de fome.

-Se você fosse um animago, seria algum felino. Deve ser por isso que a gente discute tanto. Você fica me provocando.

-Eu não provoco você. Você é que gosta de me irritar.

-Está vendo? Já quer me arrastar para uma discussão.

-Não, Sirius. Estou morto de fome, não consigo discutir nada agora.

- Pode deixar, eu vou buscar o chá, seu felino manhoso.

Snape esperou Sirius chegar à porta antes de dizer:

-Vista uma roupa, Sirius.

Londres – 16/07/1998

A violência dos ataques de Voldemort havia aumentado muito. A tensão dominava todo o mundo bruxo. Era claro que a qualquer momento um lance decisivo aconteceria. Remus levara Jane para a Escócia, para outro dos esconderijos da ordem, e seguira para a Floresta Proibida onde, junto com Sirius, velava pela segurança de Hogwarts. Molly e Arthur viviam entre a casa dos Black e a Toca. Harry e os outros membros do ED treinavam e se preparavam. Severus arriscava seu pescoço como espião, e suportava a fúria de Voldemort, que era descarregada nos Comensais da Morte cada vez que a Ordem frustrava seus planos.

Por volta de meio dia, Sirius estava sozinho na casa de sua família. Fora levar algumas orientações que Dumbledore preferia não confiar aos meios de comunicação habituais. Desincumbida a tarefa, ele aguardava a noite para regressar quando a campainha da porta disparou.

Com uma súbita intuição ruim, Sirius correu para atender. Ele mal havia aberto a porta quando Severus caiu nos seus braços.

Havia sangue por todo lado; um dos olhos do bruxo estava tão inchado que Sirius duvidava que Severus pudesse abri-lo mesmo se estivesse consciente.

Sirius o arrastou para dentro. Sua mente teve um momento de pânico total, mas o animago a obrigou a trabalhar logicamente. Todos os membros da Ordem tinham conhecimento de socorro de emergência, mas aquilo superava o que Sirius sabia. Havia um curandeiro que trabalhava para a Ordem; Sirius enviou o pedido de socorro em emergência máxima e levou Severus para um quarto. Enquanto o curandeiro não chegava, tirou capa, sapato e veste de Severus e estancou o sangue que corria de uma ferida na fronte e de um corte profundo no ombro. Era óbvio que Snape havia sido torturado. Algum feitiço poderoso o atingira; ele estava gelado e sua respiração era tão fraca que Sirius chegou a temer que estivesse morto.

A campainha anunciou a chegada do curandeiro, que não escondeu a preocupação ao ver o estado de Severus.

Depois de examinar o bruxo inconsciente, o medico executou uma série de feitiços e pediu que Sirius, que se recusara a sair do quarto, o envolvesse em cobertores e acendesse o fogo da lareira.

-Sirius, ele chegou a dizer algo antes de desmaiar?

-Não, ele estava se sustentando na aldrava da porta e, quando eu a abri, ele caiu nos meus braços desmaiado. O que ele tem?

-Ele recebeu uma carga enorme de Cruciatus, e alguns feitiços que têm efeito de pancadas. Pelo estado geral, parece ter tido uma forte privação de sono, e acredito que não se alimentou muito bem. Mas há algo mais, por isso é tão importante que ele recobre a consciência e nos diga o que houve. Eu o deixei o mais confortável possível. Mantenha-o aquecido. Ele deve começar a suar em algumas horas; não o descubra, e nem deixe que ele se descubra. Não posso ficar muito tempo fora do hospital para não levantar suspeita, mas volto no fim da tarde. Se ele recobrar a consciência, faça-o falar sobre que tipos de feitiços recebeu. Tente fazê-lo tomar bastante água. Se tiver fome, o que é pouco provável, atenda ao que ele pede. Se ele piorar, me chame.

-Certo. Mas, por favor, Hipócrates, venha o mais rápido possível.

-Claro, filho, claro. Já avisou Dumbledore? Ou prefere que eu o faça? Tenho um canal de emergência no hospital.

-Prefiro que você o faça. Diga que eu vou cuidar dele aqui.

-Certo, meu jovem. Não precisa me levar até a porta. Conheço o caminho.

Da porta do quarto, o curandeiro avisou:

– Ah, Sirius, não se assuste com possíveis delírios. Ele vai ter febre daqui a pouco e muito provavelmente vai delirar.

Quatro horas depois, Sirius lutava para conter um Severus delirante na cama. A agitação da febre o fazia se descobrir todo o tempo. Algumas vezes ele se acalmava o suficiente para Sirius fazê-lo beber um pouco de água. A temperatura elevada do quarto, mais o calor do corpo de Snape, faziam Sirius transpirar quase tanto quanto o doente. E ele delirava; a maioria eram palavras desconexas, mas Sirius reconheceu o próprio nome algumas vezes, o nome de Dumbledore e duas palavras estranhas, repetidas inúmeras vezes: uma delas sempre seguia o seu nome, e a outra algumas vezes aparecia quando Snape gritava por Dumbledore.

De repente, em um dos períodos de calmaria, Severus abriu os olhos.

-Sirius?

Pela primeira vez em horas, Sirius viu sanidade nos olhos do outro bruxo.

-Você está seguro agora. Calma. Beba isso. – Sirius levou o cálice de água aos lábios de Severus e o fez beber um pouco. – Agora me diga o que você puder lembrar do que aconteceu. Hipócrates diz que você está muito fraco.

-Cruciatus, muitas vezes. Dibelius também. Eu não conseguia nem mais contar – a voz de Severus era cansada. – Então ele nos soltou. Eu aparatei. Não ia ter força para andar, não podia ficar preso na casa dos Malfoy, eu precisava ver Dumbledore. Eu sabia que você estaria aqui.

A última frase foi dita tão baixo que Sirius quase não a escutou.

-Eu estou aqui para você, Severus. Vai ficar tudo bem. Descanse agora. Dumbledore já vem.

-Tanto frio. Tão escuro. – Severus se segurou na mão Sirius como uma criança com medo do escuro, e caiu em um sono agitado.

No fim do dia, Hipócrates chegou, logo seguido por Dumbledore e Molly Weasley. Severus ainda não tornara a recuperar a consciência, mas a febre se fora, e ele não delirava mais. Satisfeito em saber o que atingira seu paciente, o curandeiro executou mais alguns feitiços.

-Amanhã pela manhã eu venho antes de ir para o hospital. Dibelius é um feitiço cruel, provoca os sintomas de subnutrição e falta de sono que o Professor Snape apresentava. É um feitiço pouco conhecido. Em toda minha vida é a segunda vez que vejo alguém atingido por ele – o velho médico explicava enquanto entregava uma lista de poções e horários para Sirius. – Pelo que Sirius disse, as faculdades mentais do Professor não foram atingidas, ele vai se recuperar. O estado dele é delicado, e apresenta risco ainda. Mas seguindo o tratamento ele vai se recuperar. Por isso é tão importante que alguém vele por ele esta noite. Ele provavelmente ficará agitado de novo.

-Eu farei isso. - Molly se ofereceu olhando para o rosto abatido de Sirius.

-Não. Obrigado, Molly, mas eu ficarei com ele.

-Sirius, você já fez isso toda a tarde. Eu posso perfeitamen...

-Não, Molly. Eu vou ficar.

-Molly, deixe Sirius cuidar disso. – Dumbledore parecia ler mais uma vez o coração do animago. – Mas Sirius, enquanto Hipócrates e Molly trocam a roupa de cama de Severus e o ajeitam melhor, você vai descansar pelo menos uma hora e comer alguma coisa. Depois você volta.

A contragosto Sirius cedeu, mas estava de volta ao quarto de Severus antes de decorrida a hora inteira.

Snape se agitou boa parte da noite, só mergulhando em um sono mais sereno quase ao raiar do dia. Molly forçou Sirius a descansar mais um pouco, mas logo ele estava de volta. Só no meio da tarde Severus acordou de novo. Dessa vez mais lúcido e um pouco melhor. E a primeira coisa que viu foi o rosto preocupado de Sirius.

-Sirius?

-Bem-vindo de volta. – Sirius tentou um sorriso reconfortante. – Como se sente?

-Meio morto.

-Pelo menos seu péssimo senso de humor não foi alterado. Você nos deu um susto e tanto. O curandeiro falou que você vai ficar bem. – Sirius afastou o cabelo de Severus do rosto, o olhar mergulhado nos olhos de Snape.- Quer alguma coisa?

-Não. Só dormir.

-Então durma. Eu vou ficar aqui.

Snape não parecia mais aguentar manter os olhos abertos, mas ainda tentou um sorriso antes de dormir.

Já era quase manhã quando Severus acordou novamente.

-Sirius?

Dessa vez foi Molly que, abandonando o tricô, se aproximou dele.

-Sirius está descansando. O professor Dumbledore o ameaçou com um feitiço estuporante se ele não fosse dormir um pouco. Mas, se o conheço, ele não deve demorar.

Como se convocado por Severus, o animago entrou no quarto e se aproximou da cama.

-Molly, você disse que me chamaria se ele acordasse. Severus, como você está?

-Acordei agora, Sirius.

-Quer alguma coisa, professor? O curandeiro disse que, se o senhor conseguisse, devia se alimentar.

-Busque algo para ele, Molly, eu o ajudo a comer. – Sirius ajudava Severus a se sentar na cama depois desse ter tentado se sentar sozinho. – Pode ir. Eu fico aqui.

Quando Molly os deixou a sós, Sirius se sentou na lateral da cama e encarou Severus:

-Não faça isso de novo.

-Do que você está falando?

-Não se fira assim de novo, eu achei que você fosse morrer.

-Não fiz de propósito, Sirius. – Fraco com estava, Severus não conseguia esconder a emoção que sentia ao perceber a preocupação do outro bruxo.

-Eu sei. É que eu fiquei preocupado. - E Sirius surpreendeu Severus lhe dando o primeiro abraço na vida. Foi ainda abraçado a Snape que ele corrigiu. - Não. Na realidade eu fiquei quase louco.

A porta se abrindo para Molly entrar fez Sirius se recompor e se afastar um pouco.

Dumbledore a acompanhava, e Snape insistiu em fazer seu relatório antes de comer. Na verdade era pouca coisa o que ele tinha a dizer:

-É a situação lodesape. Ele tem tudo pronto para o dia 25.

-O que é lodesape?

-Faz parte de um código que eu Severus criamos há muito tempo. Voldemort vai atacar Hogwarts. – O Diretor da Escola respirou fundo. – Molly, ajude Sirius a cuidar de Severus. Quando você estiver bem, Severus, eu quero os dois de volta à escola. Eu vou hoje. Não perca as esperanças, Molly, pela primeira vez estamos um passo à frente de Voldemort.

Quando a sra Weasley e Dumbledore deixaram o quarto, Sirius se concentrou em fazer Severus comer. E, depois de acomodá-lo novamente nos travesseiros, sentou-se ao lado dele e o encarou por um longo tempo antes de perguntar:

-Está com medo, Severus?

-Medo? Um pouco. É mais uma sensação de que enfim chegamos ao momento aguardado. Será para valer agora, Sirius.

-Eu sei.

-Estou preocupado com os alunos. Dumbledore deveria tirá-los de lá.

-Talvez. Mas eu concordo com uma coisa que Harry me disse uma vez. O lugar mais seguro é sempre onde Dumbledore estiver.

-Aqueles garotos vão querer lutar, Sirius.

Severus fitou o teto por um tempo. Enfim, perguntou:

– E você? Está com medo?

-Um pouco. Eu seria realmente louco se não estivesse pelo menos um pouco assustado. Mas eu acredito que vai dar certo.

Sirius deixou alguns minutos de silêncio passarem antes de perguntar:

– O que quer dizer "moruame"?

-Como? –Severus se mostrou um pouco surpreso em ouvir essa palavra da boca de Sirius.

-Você delirou um pouco. Palavras soltas e alguns nomes. "Moruame" quase sempre acompanhava meu nome, e "lodesape" vinha perto do de Dumbledore muitas vezes.

-Moruame. Criei essa palavra baseada no mesmo código que eu e Dumbledore usamos. Mas não é uma palavra de guerra. É coisa minha. Um dia eu explico.

E, com um suspiro cansado, completou:

– Eu quero dormir agora.

-Certo.

Sirius já se levantara da beirada da cama quando Severus o chamou de novo.

-Obrigado, Sirius, por cuidar de mim.

E, enquanto Sirius se afastava com o olhar cheio de emoção, Severus murmurou baixinho:

– Moruame, domauame.