Anjo Assassino

Capitulo I

"Rua Betelgeuse [1] esquina com a Westside - 02:30hs"

- Não... por favor, peça o quiser...diga seu preço... eu...eu...eu dou o quanto você quiser.

- Eu já fui pago.

- Nãããããooooooo...

A vítima ainda tentou correr de seu perseguidor, mas os três disparos encontraram o alvo um após o outro. O brilho dos projéteis saindo do cano, bem como as palavras de clemência e o grito da vítima, não formam vistos ou ouvidos por ninguém, a não ser pela figura encoberta pelas sombras, cuja única parte visível era o brilho frio de seus olhos.

*********

"Em alguma parte de Mirzam [2] parte nobre da cidade – 02:45hs"

- Trimm...Trimmm

Um homem de cabelos escuros bem cortados, traços fortes, com uma pequena cicatriz embaixo do queixo, aparentando cerca de 48 anos, acendeu o abajur ao lado da cama ao ouvir o som do seu celular tocando. Ele olhou para o relógio que marcava, aproximadamente, quinze para ás três da manhã. Contrariado, aborrecido e imaginando quem o estaria importunando há essa hora,  pegou o celular sobre a cômoda para verificar o número de onde se origina a ligação.

No entanto o visor mostrava que o número não havia sido identificado. Ainda mais aborrecido resolveu atender a ligação, mas antes que pudesse proferir qualquer palavra, uma voz fria foi ouvida, fazendo com que o homem começasse a tremer.

- O cliente recebeu a entrega, conforme o solicitado.

- Então o...

- Sim. Este foi o acordo.

- Tum...tum...tum...

Sem esperar a ligação foi cortada. O homem olhou por alguns segundos para o celular que indicava chamada finalizada, seu coração batia forte e sua respiração estava ligeiramente descompassada. A pessoa que ligou tinha o dom de deixa-lo nervoso apenas com a voz.

Mesmo nunca tendo o encontrado, ele o temia. Na verdade, todos, com que havia conversado a respeito, o temiam, mas o indicaram como o melhor no ramo. Nenhum rosto, apenas um pseudônimo e uma voz fria e sem emoção.

Mas o serviço havia sido feito, a um alto preço era verdade, mas ele teria pagado a triplo se fosse necessário. Ele voltou para a cama e deitou-se, apagando a luz, quando teve seu corpo abraçado pela pessoa deitada no outro lado da cama.

- Quem era?

- Engano, alguém pedindo um táxi, agora volte a dormir meu amor.

Ele deu um beijo na testa da mulher, enquanto um sorriso se formou em seus lábios, ele poderia ter uma noite tranqüila.

******

"Rua Betelgeuse esquina com a Westside – 08:00hs"

- Estamos aqui na Rua Betelgeuse esquina com a Westside, á 20 metros do 15° Distrito Policial, onde a aproximadamente uma hora, atrás foi encontrado o corpo de um homem branco de aproximadamente 37 anos. O corpo ainda não foi identificado, mas segundo a policia a vítima morreu por volta das 02h30 dessa manhã, com três tiros: dois na cabeça e um no peito. Estamos com o detetive Gathes responsável pela investigação. Detetive a polícia tem alguma pista do que aconteceu?

- Até o momento o que sabemos é que o homem levou três tiros pelas costas...

- Isso significa que a vítima estava tentando fugir do seu perseguidor?

- A perícia ainda não concluiu o laudo, mas pela trajetória dos disparos e a forma como a vítima foi encontrada, tudo leva a crer que sim.

- Teria sido um assalto ou teria sido uma morte encomendada?

- Ainda não podemos supor o motivo, uma vez que não sabemos ainda a identidade da vítima, e já que nenhum documento foi encontrado,  acreditamos que possa ter sido um assalto, mas não descartamos outros motivos. 

- Detetive Gathes o que a polícia tem a dizer sobre o crime que ocorreu a apenas 20 metros do distrito, onde teoricamente o número de viaturas entrando e saindo chega a ser de uma a duas a cada meia hora? Isso deveria ter intimidado a ação do bandido, mas parece que não foi o caso não é mesmo.

- Srta Melissa, não sabemos, no momento, o que levou esse homem a morte e nem quem o fez. Como você mesma acaba de dizer, uma viatura chega e sai a cada meia hora, portanto, o crime pode ter sido cometido neste intervalo de tempo. Somos policiais e não seres onipresentes. Não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo. O crime será investigado e o culpado preso.

- Detetive mais uma pergunta...

- Sem mais perguntas.

- Como vimos a polícia ainda não tem dados sobre a vítima ou seu assassino. Assalto ou assassinato a sangue frio? A polícia diz que seja o que for, o culpado será preso. Vamos aguardar para que tudo seja solucionado. Eu sou Melissa Stuart, diretamente da cena do crime, para o canal 28.

*********

O detetive caminhou de volta ao distrito. Ele também pensava em como a vítima havia sido morta a apenas 20 metros do distrito, sem que ninguém tivesse visto ou ouvido nada. Se fossem bandidos comuns alguém teria ouvido o som dos tiros, mas nenhuma pista havia sido encontrada. O trabalho havia sido perfeito, para que não houvesse evidencias ou levantasse suspeitas. Todos os fatos levavam a crer que havia sido um assalto, uma vez que a carteira e o relógio haviam desaparecido. Mas ladrões não costumavam ser tão eficientes e corajosos, a ponto de matarem alguém tão próximo a uma delegacia. Tudo isso estava muito estranho. Estranho demais.

"Precisamos descobrir a identidade da  vítima. E talvez descubramos o seu assassino".

******

"Em alguma parte da Cidade"

Antes que a repórter terminasse de falar, a televisão foi desligada. Uma pessoa estava deitada em um sofá grande, as cortinas permaneciam fechadas impedindo que o sol entrasse. A figura jogou o controle da televisão sobre a pequena mesa a sua frente,  colocando as mãos, com os dedos entrelaçados atrás da cabeça, olhando para a janela encoberta pelas cortinas escuras. Pensava que seria mais um dia, em que o sol não entraria pela janela de vidro. Imaginava se um dia teria coragem de abrir ou mantê-las abertas todo o tempo, e não fechadas como sempre ficavam.

"Talvez um dia desses, eu me permita abri-las".

O dia estava maravilhoso, mas sua vontade era permanecer ali o dia inteiro, mas sabia que se o celular tocasse, provavelmente seria um novo serviço e provavelmente acabaria aceitando o trabalho como aceitara o da madrugada. O serviço havia sido bom, não era um trabalho difícil ou arriscado, não para alguém com sua capacidade, poderia tê-lo realizado em qualquer lugar, mas a ironia da situação levou-o a terminar o serviço ali mesmo próximo ao distrito. Os policiais não tinham como ligar o crime a sua pessoa ou ao seu cliente. Tudo havia sido feito com cuidado como tudo o que fazia.

*****

"Galeria de Arte Adhara [3] – 10:00hs"

Um jovem de óculos escuros, vestindo uma calça bege clara, uma blusa branca de manga comprida e um colete estampado caminhava apressadamente pela rua. Ele olhou para o relógio em seu pulso: estava definitivamente atrasado, mas seu dia não havia começado muito bem. Perdeu a hora, o carro se recusou a ligar e o ônibus que pegou acabou quebrando duas quadras antes de seu destino e com isso ele teve que descer e seguir o restante do caminho a pé. E se não bastasse tudo isso, estava começando a chover e ainda faltava uma quadra para chegar á galeria. Os pingos, antes finos, começaram a engrossar fazendo desabar um temporal. Em alguns minutos chegou a galeria

- Oh! Deus você está todo molhado.

- É, eu sei. Acho que hoje não é o meu dia, Fran.

- Dia ruim?

- Nem imagina.

O jovem estava completamente ensopado, os cabelos claros estavam caídos por sobre os olhos e suas roupas estavam desconfortavelmente grudadas no corpo. Assim que retirou os óculos, olhos de um azul claríssimo piscaram devido à água que escorria de seus cabelos. Ele era o próprio retrato da desolação.

A jovem de cabelos castanhos escuros riu, enquanto o observava. Seu amigo estava ensopado dos pés a cabeça e atrasado para uma reunião que já havia começado á uma hora atrás. Ela o puxou para o banheiro dos fundos e assim que chegaram, ela entregou-lhe uma toalha, enquanto saia para procurar algo que ele pudesse vestir. O rapaz aceitou a toalha, mas não sabia se iria adiantar muita coisa, e percebeu quando a garota saiu. Ele procurou secar os cabelos, retirou o colete e a blusa branca enquanto enxugava o dorso e os braços. Depois de dez minutos depois ela retornou.

Fran foi até armário onde os funcionários da galeria guardavam suas coisas. Hoje era aniversário de seu namoro e ela havia comprado uma blusa de manga comprida verde clara, para dar ao namorado de presente, mas no momento outra pessoa precisava dela. Como Frank e Quatre tinha quase o mesmo porte físico ela tinha certeza que a camisa ficaria bem no jovem loiro.

"Bem blusa resolvido... agora um par de calças...".

Ela olhou para o pessoal dentro da galeria até localizar quem precisava.

- John você tem uma calça sobrando?

O segurança da galeria olhou para a jovem de cabelos castanhos escuros e olhos amendoados, como se ela estivesse louca. Por que ela estava perguntando se ele tinha uma calça extra? Fran viu que o segurança a olhava como se tivesse crescido uma cabeça extra sobre o pescoço. Percebeu, tardiamente, que não havia sido clara o suficiente, afinal se alguém chegasse do nada para ela e perguntasse se ela tinha uma saia extra, também olharia como se a pessoa fosse louca. Sendo assim ela resolveu explicar, o mais rápido possível, a situação.

- Desculpa é que o Quatre esta completamente encharcado no banheiro e ele tem uma reunião com a diretoria e já esta atrasado. Eu tenho uma blusa, mas faltam as calças. Ele não pode ir a reunião parecendo um pintinho molhado.

O segurança sorriu entendendo a pergunta. Sim, ele tinha calças extras dentro do armário, e sempre as mantinha lá para o caso de uma emergência. Ele não esquecia o dia em que sua calça ficou coberta de tinta verde, derramada por uma criança, que visitava a galeria com os pais. Felizmente o gerente o havia liberado mais cedo, assim ele não teria que passar o dia inteiro com a calca manchada de verde, uma vez que a mancha se recusava a sair. As voltando ao assunto, era claro que ele ficaria feliz em ajuda-lo.

- Claro, Fran, tenho sim. Ela esta dentro do meu armário. Você sabe o número não é?

- Sei sim.

- Toma a chave. Vê se não esquece de trancar.

- Ok.

Fran correu até os armários, localizou o de John e pegou a calça preta. Trancando novamente o armário, correu para o banheiro para encontrar Quatre sem camisa, e se enxugando.

Ela teve que se segurar na maçaneta e prender a respiração, diante da visão de seu chefe nu da cintura para cima, segurando a toalha contra o tórax, para se enxugar. Quatre notou que sua secretária o olhava como se estivesse tendo uma visão. Para se recuperar, ele notou as roupas na mão dela e sorriu, fazendo o coração de Fran falhar uma batida. Ele poderia ter a aparência de um anjo, mas ele possuía um corpo que fazia com que ela tivesse pensamentos nada celestiais.

- Fran você está bem?

- Hã? Ah sim, desculpe...eu não...que dizer...você me pegou de surpresa foi isso.

- Ah! Sei. Por isso que você me olhava como se fosse me devorar?

- Eu não fiz isso!

- Fez sim.

- É que... eu não sabia...que você tinha..tudo isso embaixo da roupa.

Fran ficou vermelha como um tomate, assim que terminou de falar; e com Quatre também não foi diferente. Ele sabia que não tinha um corpo muito musculoso, mas não deixava de ser atraente. Tórax bem definido, cintura estreita, bíceps fortes, coxas trabalhadas. Tudo adquirido com duas horas de corrida todas as noites. Ele possuía traços suaves, quase angelicais, mas não podia se negar o quão atraente e sedutor ele poderia ser, mesmo que evitasse.

- São para mim?

- Sim, contribuições minha e de John.

- Obrigado.

- A blusa deve ficar um pouco grande por que Frank tem um porte um pouco maior, mas as calças devem ficar perfeitas.

- Você ia dar a blusa de presente, não é?

- Sim, é aniversário dele hoje.

- Então...

- Tudo bem, você compra outra quando me levar para almoçar.

- A-há! Espertinha.

- Eu sei, vou sair e avisar que você já esta indo.

- Ok.

Quatre retirou as calças molhadas e estendeu-a no cabide, junto com o restante das roupas. Ele pediria que Fran providenciasse que fosse levadas a lavanderia. Quanto à roupa de baixo não havia muito a fazer a não ser ficar sem ela.

Ele vestiu as roupas e penteou os cabelos com os dedos, os jogando para trás, e deixando os cair naturalmente por sobre a testa. Ele observou sua imagem no espelho e sorriu deixando o banheiro. Viu Fran voltando da sala, onde ele costumava fazer pequenas reuniões com o pessoal da galeria, e onde deveria estar a diretoria a sua espera.

- Eu disse que você ficou preso no trânsito.

- Obrigado você poderia...

- Pode deixar, pedirei a Molly que leve a lavanderia.

- Não sei o que faria sem você.

- Eu também não. Agora ande logo, pois o Sr. Garden já esta aborrecido pela sua demora.

- Posso imaginar.

Quando o gerente da galeria estava quase chegando à porta da sala ouviu sua secretária o chamando.

- Quatre!

- Hum...

- Você ta uma graça.

Quatre sorriu e entrou na sala, onde quatro homens e uma mulher o aguardavam ao redor de uma mesa ovalada. Pela fisionomia dos homens, sabia que eles não estavam muito satisfeitos com seu atraso, a mulher, no entanto sorriu e indicou que sentasse ao seu lado. Quatre tomou a mão da mulher e beijou, enquanto ela acariciava seu rosto. Ele cumprimentou o restante com um movimento da cabeça sentando-se ao lado da mulher.

- Sr Winner, sua secretária nos disse que ficou preso no trânsito?

- É verdade Sr Strauss, embora o meu carro não ter pego essa manhã, eu peguei um ônibus, que quebrou a duas quadras daqui, e isso  contribuiu para meu atraso.

- E por que não tomou um táxi?

- A idéia não me ocorreu no momento, avistei o ônibus e acabei pegando a condução, como faço às vezes.

A mulher ao seu lado riu, enquanto olhava para o jovem a sua frente, o próprio retrato da candura. Ela sabia que algo tinha acontecido para o rapaz se atrasar desta forma. Quatre era incapaz de mentir, mesmo que quisesse, pois sempre que mentia, a verdade era revelada em seus olhos. Esse era um dos motivos pelo qual o mantinha a frente da galeria de arte, mesmo sendo tão jovem.

Ao seu ver, aos 26 anos Quatre era o retrato da eficiência, dedicação e criatividade. O jovem tinha uma mente brilhante e parecia querer prender mais a cada dia. Ele falava fluentemente cinco idiomas, conseguia conversar com políticos ou religiosos, sem embaraço como se os conhecesse a tempos. Tocava seu violino como se tocasse uma harpa e tinha um olhar que seria capaz de derreter uma muralha. Mas o mais fascinante, na sua opinião, era o fato de que ele possuía todas essas qualidades e não se gabava de nenhuma delas, ele era tão simples e sincero que não parecia real num mundo como os de hoje.

Quatre olhou para a mulher a seu lado: os cabelos loiros começando a branquear, os olhos verdes, que ainda carregavam o brilho da juventude apesar da idade. Ela era especial, ensinara a ele muitas coisas, dera a ele uma oportunidade única, quando terminara a escola de artes.

Tudo começara com um estágio, e agora ele era o gerente responsável pela galeria de arte da cidade, com pessoas, que possuíam mais experiência que ele, seguindo suas instruções. Ele sabia que muitos não gostavam de sua posição, o achando muito jovem, mas sabia também que admiravam sua eficiência, pois ela não podia ser contestada, mesmo que não gostassem dele. Mas ele não se importava com isso, sabia que era bom no que fazia e isso bastava.

- Bem Quatre, nós estamos pensando em realizar uma exposição de arte.

- Isso seria ótimo, Sarah.

- Na verdade a sugestão partiu da faculdade e nós achamos que poderia ser interessante ver novos talentos.

- Por isso queríamos que você organizasse tudo. Sabemos o quanto você é eficiente em tudo o que faz.

- Obrigado, Sr Dalton.

- Não me agradeça meu rapaz, podemos não gostar de ter alguém tão jovem á frente da galeria, mas sabemos reconhecer um bom trabalho quando vemos e você já nos mostrou isso várias vezes.

- Então você ficara a frente de tudo, se precisar de alguma coisa nos avise.

- Os senhores e a senhora serão avisados, não se preocupem.

- Nós não estamos preocupados querido. Almoça conosco?

- Adoraria, mas tenho que retribuir um favor a uma amiga.

- Entendo. Eu e Edwards o aguardamos amanhã no jantar, está bem? E sem desculpas dessa vez.

- Claro estarei lá.

Quatre se levantou, apertando a mão de cada um deles e beijando o rosto da senhora Falls, enquanto eles deixavam a sala. Ele sentou-se e fechou os olhos. De repente ele lembrou de Fran e  olhando para o relógio, percebeu que já eram quase meio-dia, levantou-se e deixou a sala.

Havia poucas pessoas dentro da galeria, observando algumas das peças expostas, quadros, esculturas, pinturas, cada uma com um significado diferente, retratados por artistas que procuraram passar seus sentimentos através de suas obras. Obras estas, muitas vezes incompreendidas pelos olhos e corações humanos, mensagens capitadas apenas por olhos sensíveis.

A arte era sua paixão, tanto quanto a música. Esse foi um dos motivos por ter escolhido a faculdade de artes em Paris. Mas mesmo tendo os melhores professores, tendo aprendido tudo sobre arte e o som das notas do seu violino serem tão perfeitas como o som das harpas tocadas pelos anjos, ele não conseguia pintar. Faltava paixão em suas pinceladas, e o único quadro que conseguiu começar ainda estava incompleto em algum lugar escuro de sua casa.

Quatre não soube quanto tempo ficou perdido em suas divagações, mas deve ter sido o suficiente para preocupar sua secretária. Fran não sabia o que estava acontecendo com Quatre, pois ela estava, a pelo menos, uns dois minutos ao lado dele o chamando, mas ele não parecia ouvi-la. Seus olhos estavam estranhos, como se a mente dele estivesse perdida em pensamentos profundos, enquanto ele parecia olhar para o nada. Quatre sentiu uma mão tocar seu ombro e por um momento Fran achou que estava olhando nos olhos de outra pessoa, quando Quatre piscou e sorriu.

- Acho que está na hora da almoçar, não é.

- Hã? É foi por isso que eu te chamei. Tudo bem?

- Sim, eu estava apenas pensando. Vamos, tenho um monte de coisas para contar e ainda temos que comprar outro presente para seu namorado.

Por um momento Fran não respondeu. Ficou olhando nos olhos de Quatre como se tentasse encontrar alguma coisa neles. Quatre ergeu a sombracelha esquerda esperando, ela sacudiu a cabeça e sorriu.

- Vou buscar minha bolsa. Espero que você esteja com sua carteira, pois você é quem vai pagar o almoço e o presente.

- Bem, não sei se vou ter dinheiro suficiente, vou ter de checar, a não ser que você coma uma folha de alface e dois grãos de arroz.

- Tolinho.

Em alguns minutos eles deixaram a galeria em direção ao shopping, que ficava a poucos metros. O céu estava claro, nem parecia que a poucos minutos tinha caído um temporal.

Quatre tinha colocado os óculos escuros e seguia caminhando ao lado de Fran, que vestia um conjunto de saia e blazer no tom bege claro, sapatos altos em marrom escuro e uma bolsa no mesmo tom. Eles chegaram ao shopping e pegaram um elevador para o restaurante que ficava na cobertura, e que tinha a visão para a praça central do shopping.

Quatre olhava para as pessoas caminhando, ignorando os olhares de luxúria, das pessoas dentro do elevador, sobre si. Fran sorriu. Quatre não tinha noção da reação que sua figura criava nas mulheres e em alguns homens. Ele tinha ficado extremamente sexy com aquelas roupas, o verde claro da blusa combinava com seu tom de pele, os cabelos claros caindo elegantemente sobre a testa, e os óculos escuros lhe conferiam um ar misterioso, uma vez que não se podia ver os tom de seus olhos.

O elevador parou, trazendo sua atenção para a porta. Ele esperou que Fran passasse e depois saiu caminhando até a entrada do restaurante, sendo recepcionados por um funcionário.

- Onde o senhor e a senhora desejam sentar?

- Por mim tanta faz. E você Fran?

- Próxima a janela.

- Perfeitamente, me sigam, por favor.

Eles sentaram-se em uma mesa próxima a janela, de onde se podia ter a vista de toda a costa. O garçom entregou-lhes o menu e aguardou que fizessem o pedido. Quatre pediu salada, peixe ensopado com molho de alcaparras e batatas coradas. Fran pediu peito de frango ao molho de mostarda e gergelim, arroz branco e salada de legumes cozidos no vapor, para beber um vinho branco.

Em aproximadamente 10 minutos eles foram servidos e enquanto comiam, Quatre falou sobre a reunião e os projetos que tinha em mente para a exposição. Fran achou as idéias de Quatre maravilhosas. A exposição tinha tudo para ser um verdadeiro sucesso. Após terminarem, Quatre pagou a conta e se levantou puxando a cadeira de Fran, como um verdadeiro cavalheiro faria. Pegaram o elevador e foram encontrar outro presente para Frank.

Eles voltaram a galeria quase duas horas depois de terem saído. Quatre aproveitou e comprou uma cueca para si, a colocando assim que voltou; ele havia comprado também outra calça para John como agradecimento o que deixou o segurança muito feliz pelo presente, apesar dele achar desnecessário.

- Não precisava, Sr Winner.

- Que é isso, John, foi um prazer. Não sei o que teria feito se tivesse que me encontrar com a diretoria encharcado do jeito que estava. O mínimo que podia fazer era lhe devolver uma calça nova. E já disse que não precisa me chamar de senhor, Quatre já é suficiente para mim.

- Tudo bem, Quatre, obrigado.

- Vou colocar na minha mesa, quando você sair pode  pega-la comigo, ok?

- Obrigado Fran.

John olhou para o gerente ,que se dirigiu para sua sala. Seu chefe o fazia lembrar de seu irmão mais novo. Os cabelos claros, a gentileza e educação com que tratava a todos, independente do cargo ou posição social. Quatre conversava com todos da mesma forma.

O loiro sentou-se atrás de sua mesa, acessando o laptop em cima desta. Ele trabalhou durante horas sem se dar conta que já era noite; ele percebeu apenas porque Fran entrou na sala.

- Hei! Vai ficar fazendo hora extra chefinho.

- Hã?

- Já são 20h.

- Tudo isso!

- Exatamente.

- E o que você esta fazendo aqui até essa hora?  Achei que tivesse um jantar.

- Frank acabou de chegar e eu vim avisa-lo para ir para casa, já esta tarde.

- Ok estou indo, vou apenas terminar umas coisas e vou ok?

- Tudo bem, até amanhã.

- Até.

Quatre ficou olhando alguns segundos para a porta se fechando, e voltou seus olhos para a tela do laptop. Quase duas horas depois ele desligou a máquina, pegou a sacola com as roupas, que haviam sido lavadas, e saiu trancando a sala. A galeria estava silenciosa. Apenas ele e o vigia eram os únicos na galeria. Quatre o viu e acenou. Ele ficou pensando se pegava ou não um táxi para ir para casa.

Assim que chegou a rua, ele decidiu por ir andando até o ponto de ônibus, a noite estava tão linda. Ele quase não tinha tempo para observa-la: um grande manto negro repleto de pequenos pontos luminosos, uma lua brilhante, a brisa fresca da costa. Quatre ficou quase 10 minutos a espera do ônibus, onde havia umas quatro pessoas também aguardando a condução.  Subiu e cumprimentou o motorista, que já o conhecia, pois a linha passava a uma quadra de onde morava, assim freqüentemente acaba pegando sempre o mesmo ônibus para ir e voltar da galeria. Ele sentou-se em um dos bancos, que tinha a janela aberta, para aproveitar o ar da noite. Seu corpo pedia por um banho quente e descanso.

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"Acho que eu vou tomar um bom banho quente e deixar a corrida para amanhã".

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******

"Algumas horas mais tarde em alguma parte da Cidade"

Fechando a porta atrás de si optou por não aceder as luzes; não faria diferença, era capaz de caminhar por todo o lugar no escuro, sabia onde se encontrava cada peça, cada mesa, cada cadeira. Sua mente tinha memorizado todo o ambiente a sua volta, era como um exercício mental, ajudava a tornar a mente sempre ativa e alerta, além do mais, se sentia bem no escuro.

Caminhando até a cozinha, abriu a geladeira, pegando um pacote de comida congelada, acionando o para descongelar e aquecer o jantar. Em uma pequena adega pegou uma garrafa de vinho seco. Colocou a garrafa dentro de um balde com gelo, em cima da mesa junto com uma taça, acendeu as velas em frente ao prato e deitou-se no sofá enquanto aguardava. O cheiro da comida espalhou-se pelo ambiente. Na verdade não sentia fome, mas precisava se alimentar. Seu olhar pousou sobre a mesa, tentando imaginar o que estaria faltando. Então sua voz soou baixa e suave. Quase como um sussurro, mas suficientemente audível para o sistema captar o comando.

- Música.

No mesmo instante uma música suave encheu a sala e seus ouvidos, permitindo-se fechar os olhos por um instante, tentando visualizar o quadro em sua mente, o mesmo de todas as noites. Mas tudo que conseguia ver eram sombras, ainda faltava vida em seu quadro.

Ele ouviu o som vindo da cozinha, informando que a comida já estava pronta. Levantou-se pegou um prato, branco de porcelana, colocando sua refeição. O cheiro da comida penetrando por suas narinas... abriu o armário procurando por um condimento que pudesse utilizar para realçar o sabor da comida. Não costumava recorrer a comidas congeladas, mas elas eram práticas em determinados momentos, principalmente quando não se estava com disposição para cozinhar.

Um vidro de alho seco tocou a ponta de seus dedos e um sorriso surgiu em seu rosto, despejou um pouco sobre a comida e sentou-se a mesa, enquanto observava todo o lugar na penumbra, iluminado apenas pelas duas velas, Um pensamento passou por sua mente, o mesmo pensamento de todas as noites.

"Uma refeição solitária, como minha vida. Uma mentira pintada por um falsário, que a todo instante espera que descubram que não foi ele o artista a pintar o retrato. Um retrato que não reproduz a verdadeira essência do pintor. Uma obra sem alma, como eu".

Uma lágrima solitária caiu de seus olhos, sem que percebesse. Lágrimas não faziam parte de sua profissão, apenas daqueles que estão a sua frente na hora de suas mortes choram. Sentimentos não são permitidos, sabia disso, mas isso não impedia que seu coração desejasse um pouco mais de vida.

Abrindo a garrafa, despejou um pouco do líquido claro na taça. Enquanto mastigava, levou a taça aos lábios deixando que o vinho ajudasse a empurrar a comida. Olhou para o relógio, que marcava uma e meia da manhã. Levantou-se da mesa, com mais da metade de comida no prato, levando consigo apenas a taça cheia. Caminhou até a janela, afastando um pouco a cortina, apenas o suficiente para que pudesse ver o mar batendo nas rochas lá embaixo. Seu celular tocou, pegou o aparelho, que estava sobre a mesa em frente ao sofá, e o atendeu.

- Sim.

- Tenho um serviço para você.

- Não achei que tivesse ligado para me desejar boa noite.

Uma risada sarcástica foi ouvida do outro lado da linha antes que voltasse a falar.

- Não sabia que tinha senso de humor.

- ...

- Tudo bem, você deve encontrar um pacote.

- Que pacote.

- Não sei ao certo.

- Isso é um tanto vago não acha?

- Eu sei.

- Por que devo encontra-lo?

- Isso não é relevante, apenas encontre o pacote.

- Eu decido o que é ou não relevante, já que serei eu a procurar.

A voz fria não deixava margens para contestações. A pessoa do outro lado sabia que se quisesse ajuda deveria contar sobre o pacote, mas não pelo telefone, pois seria arriscado demais faze-lo, mas sabia que dificilmente a pessoa do outro lado da linha se arriscaria a encontra-lo.

Virando o restante do líquido da taça em sua boca, ficou aguardando que ele resolvesse lhe contar sobre o pacote. Jamais aceitava um serviço sem saber o por quê. Muitos não faziam perguntas sobre o motivo do trabalho, apenas aceitavam o serviço e o dinheiro que ele proporcionava, mas não era seu modo de trabalhar. Em sua profissão informação é imprescindível, quanto mais informação se tiver, menos risco se corre.

- Tudo bem, mas teremos que nos encontrar. Não posso lhe dar essa informação por telefone.

Por alguns segundos tudo ficou em silêncio, sua mente trabalhava a toda velocidade. Algo lhe dizia para a aceitar o serviço, enquanto uma outra parte lhe dizia para cortar a ligação. Mas nunca recusava um serviço sem antes obter mais informações sobre ele. Assim como nunca se encontrava com seus clientes frente a frente; apenas telefonemas, nunca encontros diretos. Sabia que não deveria encontrar com o homem que ligara, não confiava nele, como não confiava em ninguém, mas algo lhe dizia para encontra-lo e ouvir o que tinha a dizer e depois decidir se aceitava ou não o trabalho.

- Eu mandarei alguém amanhã.

- Onde? Que horas?

- Onde eu quiser e a hora que eu tiver vontade.

- Mas como saberei quem...

- Eu sei quem você é e isso é o bastante.

- Tum...tum...tum

A ligação foi cortada. Jogando o celular sobre o sofá, encostou a testa no vidro da janela, olhando o mar. Nem um som passava pelas janelas, era como se estivesse em uma grande caixa de vidro fechado emerticamente, sem som, cheiro, absolutamente nada, apenas o vazio.

A lua pálida parecia tocar seu rosto, iluminando o brilho frio e sem emoção de seus olhos, enquanto sua mente fervilhava. Fechou os olhos e tentou recriar novamente o quadro em sua mente, mas tudo que viu foram belíssimas asas brancas, manchadas de sangue, como tudo a sua volta.

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"Algum dia... algum dia".

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Continua...

[1] Betelgeuse nome de uma estrela identificada como Alpha Orionis pertencente à constelação de Orion.

[2] Mirzam nome de uma estrela identificada como Beta Canis Majoris pertencente à constelação de Cão Maior.

[3] Adhara nome de uma estrela identificada como Epsilon Canis Majoris pertencente à constelação de Cão Maior.

Dhandara mais um capítulo dedicado a você espero que goste.

Lien valeu pela betagem.