Capítulo 8 - Passado
Ergueu a cabeça ao sentir alguém entrar no quarto grande e fracamente iluminado por velas vacilantes. Seus olhos não agüentavam muito mais do que aquilo.
Logo se tornou possível vislumbrar a sombra de uma jovem mulher, seguida por um rapaz um pouco mais novo que ela. Qualquer um que os visse perceberia que eram irmãos, tão parecidos, com o mesmo ar frágil, os membros magros e compridos, a pele geralmente clara vermelha e ardida por causa do sol do deserto.
Pelos cabelos dourados e compridos que ambos traziam encharcados, pelos sapatos fortes e resistentes que pingavam água por todos os lados, pelas roupas gastas e puídas que se colavam aos seus corpos, pôde ver que não estava mais fazendo sol. Estava chovendo, e não era uma chuva qualquer.
A mulher se aproximou mais dele e se ajoelhou à sua frente, enquanto o rapaz permanecia em pé, um pouco mais distante. Foi também ela que ergueu seus olhos estreitos e duros, de um verde surpreendentemente suave, e falou com uma voz que pouco passava de um sussurro tímido.
- Fizemos o que pediu, Asgard. Assistimos a luta, e como previu, o grupo daquelas três crianças japonesas ganhou.
- O que você quer perguntar, Niffleheim?
A jovem mulher sacudiu a cabeça com um meio sorriso. Era bela, apesar do ar rígido, com a luz das velas se refletindo nos cabelos de um loiro meio acobreado e nos olhos verdes.
- Como você sabe que ELES vão lutar conosco?
- Eu já sabia que eles eram fortes o suficiente para vencer o grupo de Yuri. E quanto à luta contra nós, eu já arranjei isso.
- Você armou a luta, Asgard? Você roubou?
O rapaz rapidamente colocou as mãos grandes e calejadas sobre a boa, como se tentasse impedir as palavras, e a decepção contida nelas, de saírem. A expressão em seu rosto era escondida pelas sombras, mas certamente deveria ser bem cômica. Mesmo Niff, que se julgava tão adulta e séria, fora incapaz de controlar a expressão de desagrado e censura pela evidente falta de respeito da parte do irmão. Ele se divertia com aqueles dois, tão dedicados e poderosos, mas tão crianças ainda em certos aspectos.
- Tialfi. - falou a jovem, com a voz menos baixa e respeitosa do que quando se dirigia a Asgard - Não seja desrespeitoso. Peça desculpas a Asgard agora mesmo.
- Não é necessário, Niff. - a garota corou, obviamente irritada pelo apelido de quando era ainda criança - Tialfi não falou nada mais que a verdade. Eu roubei.
- Mas...
- Niffleheim, agora não é hora para discutir. Está chovendo lá fora, não está?
- Sim, senhor.
- E está escuro o suficiente para que eu possa sair?
- Sim, senhor.
- O que você quer me perguntar?
- Vai ver novamente aquele grupo?
- Vou.
Ela esperou que Asgard saísse do aposento para finalmente se levantar. Verificou se ele já tinha desaparecido, e massageou os joelhos pontudos. Olhava o ponto na escuridão onde Asgard tinha desaparecido com melancolia e adoração. O que será que ele tanto via naquelas crianças?
- Qual o problema, Niff?
- Não me chame assim. - falou, ríspida - Sabe que odeio.
- Você deixa o Asgard te chamar assim. - disse o rapaz, maliciosamente.
- É porque ele merece ser respeitado. É superior a nós, um enviado dos deuses. E não me irrite.
- Não sei o que você tem com ele. Ele merece ser respeitado, mas também deve respeitar você.
- Ele me respeita.
- Ele te usa!
Parou de falar, arrependido, ao perceber que havia lágrimas nos olhos da irmã. Mas não conseguia se conter. Não conseguia aceitar o fato de sua irmã, tão poderosa e orgulhosa, se sujeitar de tal maneira àquele homem que ele admirava. Não conseguia esconder a raiva quando via os olhos da irmã seguirem os movimentos felinos de Asgard como que hipnotizados. Não conseguia evitar que seu corpo tremesse de raiva quando sua irmã tão séria e compenetrada largava o que quer que estivesse fazendo para vir atender a qualquer capricho dele.
- Desculpe.
- Não. Você está certo. - apressadamente, ela esfregou as mãos nos olhos, tentando afastar as lágrimas - Sou tola em achar que algum dia...Algum dia...Me amar...
Parou de falar, suprimindo os soluços e as lágrimas que tentavam sair. Condoído, o irmão deu alguns passos até ela, e abraçou-a com força e carinho.
- Não precisa se preocupar, Niff. Vai ficar tudo bem. Você vai ver. Assim que ganharmos a luta dos xamãs, tudo vai se resolver.
Os dois irmãos se abraçavam nas sombras do grande e luxuoso quarto, enquanto o seu dono de olhar felino e sorriso de dentes brancos e pontudos observava deliciado os movimentos do estranho e triste casal com o qual tanto queria lutar.
---
Abriu os olhos escuros que encontraram mais uma vez o teto da pensão de onde ainda caíam goteiras por todos os lados. Não precisou olhar para si mesma para perceber que ainda estava suja de lama e sangue. Levantou-se, ainda meio tonta de cansaço, e foi para o banheiro sem ao menos dar uma olhada no quarto. Se desse, teria visto uma sombra sentada num canto que a observava atentamente.
Demorou-se no banho quente, muito quente, para esquentar os ossos congelados após ficar tanto tempo dormindo molhada num dia frio. A chuva tinha baixado bruscamente a temperatura. Teria que arranjar roupas novas.
Saiu do banho enrolada na toalha, que quase deixou cair no chão de susto. De pé, no meio do quarto, um garoto de cabelos verdes usando um manto comprido, observando-a com olhos determinados.
- Quem é você?
- Meu nome é Lyserg. - a voz dele era surpreendentemente infantil e delicada, quase feminina.
- O que você quer? O que estava pensando quando invadiu o meu quarto?
- Sinto muito se...Se te assustei. Eu...Você...Odeia o Hao, não é?
- Por que quer saber?
- Bem...Eu sou dos X-Laws. Nosso objetivo...Nosso maior objetivo...É acabar com Hao.
- O que diabos é isso? Um antifã-clube do Hao?
- O Hao...Ele fez mal a muita gente. Ele matou os meus pais!
- Os meus também.
Lyserg calou-se, observando a garota. Era tão estranha. Parecia triste, à beira do suicídio. Parecia tão fraca e incapaz de realizar sua vingança...
- Você quer se vingar do Hao, não é? Há apenas um meio de fazer isso, sem que se torne uma assassina também. Há apenas uma maneira de se vingar do Hao sem sujar suas mãos, sem se tornar uma pessoa amaldiçoada. Junte-se a nós. Junte-se aos X-Laws.
- Não.
- Não? Mas...Como não? Você não quer matá-lo?
- Quero. Mas não vou me juntar a vocês. Não sou como vocês. Vocês não conhecem o Hao, provavelmente nunca tinham ouvido falar nele até o dia em que ele foi até vocês e fez algo terrível. Comigo não foi assim. Foi...Diferente.
- Mas...Mesmo assim...
- Você não entende. Minha família abrigou-o, deu àquele monstro comida, roupas, carinho, amor. O meu amor. Eu o amei, e o que ele fez em troca? Matou meus pais! Meus pais, que lhe deram carinho e amor. Que foram como pais para ele!
A garota parou de falar. Não havia lágrimas em seu rosto, nem qualquer sinal de raiva, angústia ou tristeza. Apesar do tom de pele avermelhado, parecia pálida, calma, séria. Como se falasse de algo com que já tinha se acostumado.
- Talvez você não entenda. Mas pouco me importa sujar minhas mãos. Na verdade, prefiro sujar minhas mãos. Não quero que ninguém o mate para mim. Quero matá-lo eu mesma, com minhas próprias mãos, mesmo que, para isso, eu seja amaldiçoada. Pouco importa.
Lyserg continuou apenas olhando para a garota em choque. Tinha observado-a por tanto tempo, e ainda sim ela o surpreendia. Não sabia o que fazer. Não tinha a menor idéia do que fazer. Tinha que falar com Jeanne-sama. Andou devagar em direção à porta. Abriu-a, e virou-se mais uma vez para a garota, que o observava atentamente. Sua voz, ainda infantil e tímida, pela primeira vez soou séria e perigosa.
- Cuidado. Se não está com os X-Laws, então é inimiga deles.
Sem mais nenhuma palavra, o delicado garoto abandonou o triste aposento.
---
Estavam os dois sentados frente a frente no quarto escuro, como sempre. Apesar de tão diferentes, os dois tinham facilidade em ficar juntos, em silêncio, sem que um exigisse nada do outro. Aquele silêncio, do qual fazia parte o barulho das goteiras caindo nos baldes dispostos pelo chão, foi repentinamente interrompido pelo estridente som do oráculo tocando. Cada um olhou para o seu, e em seguida trocaram olhares. Yoh sorriu para a sua noiva, e perguntou:
- Sabe alguma coisa sobre esse grupo?
- Não.
Silenciosamente, ela se levantou e se dirigiu à janela fechada, seguida pelo olhar atento de seu noivo. Abriu as janelas sem fazer nenhum barulho, e o quarto logo se viu invadido por uma tênue luminosidade e pela chuva.
- Encontrei Anna.
- O que ela está fazendo aqui? - sua voz parecia calma como sempre, mas a dor dentro dele era forte o suficiente para que Mei-ann pudesse perceber.
- Está ajudando Hao. Você entende o que isso quer dizer, não sabe?
- Você está disposta a lutar contra ela? A matá-la? Matar a sua própria irmã?
- Estou. - disse Mei-ann, secamente - Só estou te avisando porque não quero que seja consumido pela culpa. A culpa não é sua se não a ama.
- Não é que eu não a ame. É que...Eu tenho medo dela. Muito medo para me envolver com ela.
- Então a culpa é sua por não ter dito a verdade a ela. E vai ter que agüentar os fatos. Se ela persistir em ajudar Hao, vou ter que eliminá-la.
- Como...Como consegue ser tão fria?
- Pergunte a Liberté.
- O que ela tem a ver com isso?
- Pergunte.
Sem dizer nada, Yoh levantou-se e saiu do quarto, sentindo-se feliz por isso. Gostava de estar com Mei-ann, que nada exigia dele, mas às vezes se cansava de sua frieza. Nem mesmo Anna era assim. Chegou à porta do quarto de Liberté, e bateu nela delicadamente. Pôde ouvir o som de passos percorrendo o caminho até a porta, que se abriu apenas o suficiente para que ela ver quem era.
- Yoh?
- Olá, Liberté. - disse ele, sorrindo - Já está melhor?
- Sim. Como está o Ren?
- Já está muito bem, foi comer com os outros.
- Quer entrar?
- Posso?
Cautelosamente, abriu a porta, com um sorriso gentil nos lábios. Foi até o seu futon, onde se sentou, seguida por Yoh.
- Então, o que veio fazer aqui?
- Estava falando com Mei-ann, e ela me disse umas coisas...Mas não quis explicar. E disse que você poderia. Você pode?
A expressão dela se fechou imediatamente. Por seus olhos escuros passou raiva, tristeza, angústia. Por fim, ela começou a falar.
- É sobre Hao, não é?
- É. Eu perguntei a Mei-ann como ela consegue ser tão fria com as coisas que envolvem Hao...Ainda mais do que com o resto.
Liberté respirou fundo, e falou:
- Hao fez mal a muitas pessoas. Inclusive a mim, e a ela. Não sei o que ele fez a Mei-ann, e não a conheço, nem a conheci. Mas do mesmo jeito que eu mudei, ela também deve ter mudado. E talvez, assim como aconteceu comigo, talvez ela tenha sido tão machucada que quase morreu. Mas permaneceu viva, por um único motivo. Vingança. Ela quer se vingar, quer fazer Hao sofrer tanto quanto ela sofreu. Não importando o que tenha que fazer.
- Você pensa assim?
- Penso.
- O que Hao fez a você?
- Um monte de coisas. Não quero falar disso agora. Acabei de falar sobre elas com um garoto que invadiu o meu quarto.
- Como?
- É, um garoto de cabelo verde invadiu o meu quarto, me convidando a entrar para um anti-fã-clube do Hao. Achei a idéia engraçada, mas não aceitei. Não preciso da ajuda de ninguém para derrotar Hao. Não sou forte o suficiente para matá-lo, mas posso enfraquecê-lo por ser quem sou, e isso já é o suficiente.
- Eu...Eu não imaginava.
- Eu sei. Graças a Deus ainda consigo ao menos tentar ser normal, e me divertir. A única pessoa que suspeita que tem algo errado comigo é o Ren, por alguns motivos...Mas...Deixa pra lá. Chocado demais?
- Um pouco. Mas tudo vai ficar bem, eu tenho certeza. Espero que consiga deixar de querer matar Hao, Liberté. O que quer que tenha acontecido no passado, bem...Passou. Matar Hao não vai mudar nada. Talvez apenas te deixe ainda mais triste. Espero que com o tempo, convivendo conosco, você deixe de pensar em vingança. Vou lá embaixo ver se há algo para comer. Quer vir comigo?
- Está bem. - disse Liberté, sorrindo - Estou morrendo de fome.
---
Olhou irritada para o garoto, que dormia sem qualquer cuidado, jogado na grama coberta pela neve, faltando apenas algumas horas para a chegada do trem que o levaria a uma vida solitária em Tóquio. E ela deveria segui-lo assim que acabasse seu treinamento básico. Não acreditava que iria se casar com ele. Graças àquele garoto burro e preguiçoso não poderia ser a poderosa bruxa que queria ser. Graças àquele maldito casamento não poderia se aprofundar nos mistérios que apenas uma pessoa poderosa como ela conseguiria entender. Graças a ele nunca seria reconhecida por si mesma. Seria no máximo reconhecida como esposa do Rei Xamã.
Sabia que ele era fraco, preguiçoso e bobo, mas mesmo assim tinha certeza de que ele conseguiria. Se não tivesse tanta certeza, provavelmente ficaria louca, e fugiria de casa para uma vida miserável e solitária.
Fugiria, como Mei-ann fizera. E desapareceria, como Mei-ann desaparecera.
O apito do trem tirou-a de seus devaneios. Indelicadamente, sacudiu seu noivo para acordá-lo.
- O trem chegou. Vá logo. Lembre-se, logo irei atrás de você. E até lá é bom você arranjar um espírito decente. E não deixe de treinar todas as manhãs. Se desfizer tudo o que alcançamos aqui, jamais será o Rei Xamã, e jamais conseguirá me proporcionar o conforto que mereço.
- Está certo. Estou indo. Adeus, Anna.
- Não é um adeus, seu idiota. É apenas um até logo.
- Até logo então, Anna.
Abraçando o xale de lã junto ao seu corpo, Anna observou seu noivo entrar calmamente, como sempre, no trem.
- Até logo. - sussurrou.
---
Olá!
Será que demorei demais para postar esse capítulo? O próximo vai demorar bastante, pois vou viajar nessas férias. Espero que tenham gostado. Continuem mandando reviews!
Quanto à aparição dos três novos personagens do início do capítulo (que, por sinal, ficou enorme), seus nomes foram tirados da mitologia nórdica.
Lady Macbeth
Ergueu a cabeça ao sentir alguém entrar no quarto grande e fracamente iluminado por velas vacilantes. Seus olhos não agüentavam muito mais do que aquilo.
Logo se tornou possível vislumbrar a sombra de uma jovem mulher, seguida por um rapaz um pouco mais novo que ela. Qualquer um que os visse perceberia que eram irmãos, tão parecidos, com o mesmo ar frágil, os membros magros e compridos, a pele geralmente clara vermelha e ardida por causa do sol do deserto.
Pelos cabelos dourados e compridos que ambos traziam encharcados, pelos sapatos fortes e resistentes que pingavam água por todos os lados, pelas roupas gastas e puídas que se colavam aos seus corpos, pôde ver que não estava mais fazendo sol. Estava chovendo, e não era uma chuva qualquer.
A mulher se aproximou mais dele e se ajoelhou à sua frente, enquanto o rapaz permanecia em pé, um pouco mais distante. Foi também ela que ergueu seus olhos estreitos e duros, de um verde surpreendentemente suave, e falou com uma voz que pouco passava de um sussurro tímido.
- Fizemos o que pediu, Asgard. Assistimos a luta, e como previu, o grupo daquelas três crianças japonesas ganhou.
- O que você quer perguntar, Niffleheim?
A jovem mulher sacudiu a cabeça com um meio sorriso. Era bela, apesar do ar rígido, com a luz das velas se refletindo nos cabelos de um loiro meio acobreado e nos olhos verdes.
- Como você sabe que ELES vão lutar conosco?
- Eu já sabia que eles eram fortes o suficiente para vencer o grupo de Yuri. E quanto à luta contra nós, eu já arranjei isso.
- Você armou a luta, Asgard? Você roubou?
O rapaz rapidamente colocou as mãos grandes e calejadas sobre a boa, como se tentasse impedir as palavras, e a decepção contida nelas, de saírem. A expressão em seu rosto era escondida pelas sombras, mas certamente deveria ser bem cômica. Mesmo Niff, que se julgava tão adulta e séria, fora incapaz de controlar a expressão de desagrado e censura pela evidente falta de respeito da parte do irmão. Ele se divertia com aqueles dois, tão dedicados e poderosos, mas tão crianças ainda em certos aspectos.
- Tialfi. - falou a jovem, com a voz menos baixa e respeitosa do que quando se dirigia a Asgard - Não seja desrespeitoso. Peça desculpas a Asgard agora mesmo.
- Não é necessário, Niff. - a garota corou, obviamente irritada pelo apelido de quando era ainda criança - Tialfi não falou nada mais que a verdade. Eu roubei.
- Mas...
- Niffleheim, agora não é hora para discutir. Está chovendo lá fora, não está?
- Sim, senhor.
- E está escuro o suficiente para que eu possa sair?
- Sim, senhor.
- O que você quer me perguntar?
- Vai ver novamente aquele grupo?
- Vou.
Ela esperou que Asgard saísse do aposento para finalmente se levantar. Verificou se ele já tinha desaparecido, e massageou os joelhos pontudos. Olhava o ponto na escuridão onde Asgard tinha desaparecido com melancolia e adoração. O que será que ele tanto via naquelas crianças?
- Qual o problema, Niff?
- Não me chame assim. - falou, ríspida - Sabe que odeio.
- Você deixa o Asgard te chamar assim. - disse o rapaz, maliciosamente.
- É porque ele merece ser respeitado. É superior a nós, um enviado dos deuses. E não me irrite.
- Não sei o que você tem com ele. Ele merece ser respeitado, mas também deve respeitar você.
- Ele me respeita.
- Ele te usa!
Parou de falar, arrependido, ao perceber que havia lágrimas nos olhos da irmã. Mas não conseguia se conter. Não conseguia aceitar o fato de sua irmã, tão poderosa e orgulhosa, se sujeitar de tal maneira àquele homem que ele admirava. Não conseguia esconder a raiva quando via os olhos da irmã seguirem os movimentos felinos de Asgard como que hipnotizados. Não conseguia evitar que seu corpo tremesse de raiva quando sua irmã tão séria e compenetrada largava o que quer que estivesse fazendo para vir atender a qualquer capricho dele.
- Desculpe.
- Não. Você está certo. - apressadamente, ela esfregou as mãos nos olhos, tentando afastar as lágrimas - Sou tola em achar que algum dia...Algum dia...Me amar...
Parou de falar, suprimindo os soluços e as lágrimas que tentavam sair. Condoído, o irmão deu alguns passos até ela, e abraçou-a com força e carinho.
- Não precisa se preocupar, Niff. Vai ficar tudo bem. Você vai ver. Assim que ganharmos a luta dos xamãs, tudo vai se resolver.
Os dois irmãos se abraçavam nas sombras do grande e luxuoso quarto, enquanto o seu dono de olhar felino e sorriso de dentes brancos e pontudos observava deliciado os movimentos do estranho e triste casal com o qual tanto queria lutar.
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Abriu os olhos escuros que encontraram mais uma vez o teto da pensão de onde ainda caíam goteiras por todos os lados. Não precisou olhar para si mesma para perceber que ainda estava suja de lama e sangue. Levantou-se, ainda meio tonta de cansaço, e foi para o banheiro sem ao menos dar uma olhada no quarto. Se desse, teria visto uma sombra sentada num canto que a observava atentamente.
Demorou-se no banho quente, muito quente, para esquentar os ossos congelados após ficar tanto tempo dormindo molhada num dia frio. A chuva tinha baixado bruscamente a temperatura. Teria que arranjar roupas novas.
Saiu do banho enrolada na toalha, que quase deixou cair no chão de susto. De pé, no meio do quarto, um garoto de cabelos verdes usando um manto comprido, observando-a com olhos determinados.
- Quem é você?
- Meu nome é Lyserg. - a voz dele era surpreendentemente infantil e delicada, quase feminina.
- O que você quer? O que estava pensando quando invadiu o meu quarto?
- Sinto muito se...Se te assustei. Eu...Você...Odeia o Hao, não é?
- Por que quer saber?
- Bem...Eu sou dos X-Laws. Nosso objetivo...Nosso maior objetivo...É acabar com Hao.
- O que diabos é isso? Um antifã-clube do Hao?
- O Hao...Ele fez mal a muita gente. Ele matou os meus pais!
- Os meus também.
Lyserg calou-se, observando a garota. Era tão estranha. Parecia triste, à beira do suicídio. Parecia tão fraca e incapaz de realizar sua vingança...
- Você quer se vingar do Hao, não é? Há apenas um meio de fazer isso, sem que se torne uma assassina também. Há apenas uma maneira de se vingar do Hao sem sujar suas mãos, sem se tornar uma pessoa amaldiçoada. Junte-se a nós. Junte-se aos X-Laws.
- Não.
- Não? Mas...Como não? Você não quer matá-lo?
- Quero. Mas não vou me juntar a vocês. Não sou como vocês. Vocês não conhecem o Hao, provavelmente nunca tinham ouvido falar nele até o dia em que ele foi até vocês e fez algo terrível. Comigo não foi assim. Foi...Diferente.
- Mas...Mesmo assim...
- Você não entende. Minha família abrigou-o, deu àquele monstro comida, roupas, carinho, amor. O meu amor. Eu o amei, e o que ele fez em troca? Matou meus pais! Meus pais, que lhe deram carinho e amor. Que foram como pais para ele!
A garota parou de falar. Não havia lágrimas em seu rosto, nem qualquer sinal de raiva, angústia ou tristeza. Apesar do tom de pele avermelhado, parecia pálida, calma, séria. Como se falasse de algo com que já tinha se acostumado.
- Talvez você não entenda. Mas pouco me importa sujar minhas mãos. Na verdade, prefiro sujar minhas mãos. Não quero que ninguém o mate para mim. Quero matá-lo eu mesma, com minhas próprias mãos, mesmo que, para isso, eu seja amaldiçoada. Pouco importa.
Lyserg continuou apenas olhando para a garota em choque. Tinha observado-a por tanto tempo, e ainda sim ela o surpreendia. Não sabia o que fazer. Não tinha a menor idéia do que fazer. Tinha que falar com Jeanne-sama. Andou devagar em direção à porta. Abriu-a, e virou-se mais uma vez para a garota, que o observava atentamente. Sua voz, ainda infantil e tímida, pela primeira vez soou séria e perigosa.
- Cuidado. Se não está com os X-Laws, então é inimiga deles.
Sem mais nenhuma palavra, o delicado garoto abandonou o triste aposento.
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Estavam os dois sentados frente a frente no quarto escuro, como sempre. Apesar de tão diferentes, os dois tinham facilidade em ficar juntos, em silêncio, sem que um exigisse nada do outro. Aquele silêncio, do qual fazia parte o barulho das goteiras caindo nos baldes dispostos pelo chão, foi repentinamente interrompido pelo estridente som do oráculo tocando. Cada um olhou para o seu, e em seguida trocaram olhares. Yoh sorriu para a sua noiva, e perguntou:
- Sabe alguma coisa sobre esse grupo?
- Não.
Silenciosamente, ela se levantou e se dirigiu à janela fechada, seguida pelo olhar atento de seu noivo. Abriu as janelas sem fazer nenhum barulho, e o quarto logo se viu invadido por uma tênue luminosidade e pela chuva.
- Encontrei Anna.
- O que ela está fazendo aqui? - sua voz parecia calma como sempre, mas a dor dentro dele era forte o suficiente para que Mei-ann pudesse perceber.
- Está ajudando Hao. Você entende o que isso quer dizer, não sabe?
- Você está disposta a lutar contra ela? A matá-la? Matar a sua própria irmã?
- Estou. - disse Mei-ann, secamente - Só estou te avisando porque não quero que seja consumido pela culpa. A culpa não é sua se não a ama.
- Não é que eu não a ame. É que...Eu tenho medo dela. Muito medo para me envolver com ela.
- Então a culpa é sua por não ter dito a verdade a ela. E vai ter que agüentar os fatos. Se ela persistir em ajudar Hao, vou ter que eliminá-la.
- Como...Como consegue ser tão fria?
- Pergunte a Liberté.
- O que ela tem a ver com isso?
- Pergunte.
Sem dizer nada, Yoh levantou-se e saiu do quarto, sentindo-se feliz por isso. Gostava de estar com Mei-ann, que nada exigia dele, mas às vezes se cansava de sua frieza. Nem mesmo Anna era assim. Chegou à porta do quarto de Liberté, e bateu nela delicadamente. Pôde ouvir o som de passos percorrendo o caminho até a porta, que se abriu apenas o suficiente para que ela ver quem era.
- Yoh?
- Olá, Liberté. - disse ele, sorrindo - Já está melhor?
- Sim. Como está o Ren?
- Já está muito bem, foi comer com os outros.
- Quer entrar?
- Posso?
Cautelosamente, abriu a porta, com um sorriso gentil nos lábios. Foi até o seu futon, onde se sentou, seguida por Yoh.
- Então, o que veio fazer aqui?
- Estava falando com Mei-ann, e ela me disse umas coisas...Mas não quis explicar. E disse que você poderia. Você pode?
A expressão dela se fechou imediatamente. Por seus olhos escuros passou raiva, tristeza, angústia. Por fim, ela começou a falar.
- É sobre Hao, não é?
- É. Eu perguntei a Mei-ann como ela consegue ser tão fria com as coisas que envolvem Hao...Ainda mais do que com o resto.
Liberté respirou fundo, e falou:
- Hao fez mal a muitas pessoas. Inclusive a mim, e a ela. Não sei o que ele fez a Mei-ann, e não a conheço, nem a conheci. Mas do mesmo jeito que eu mudei, ela também deve ter mudado. E talvez, assim como aconteceu comigo, talvez ela tenha sido tão machucada que quase morreu. Mas permaneceu viva, por um único motivo. Vingança. Ela quer se vingar, quer fazer Hao sofrer tanto quanto ela sofreu. Não importando o que tenha que fazer.
- Você pensa assim?
- Penso.
- O que Hao fez a você?
- Um monte de coisas. Não quero falar disso agora. Acabei de falar sobre elas com um garoto que invadiu o meu quarto.
- Como?
- É, um garoto de cabelo verde invadiu o meu quarto, me convidando a entrar para um anti-fã-clube do Hao. Achei a idéia engraçada, mas não aceitei. Não preciso da ajuda de ninguém para derrotar Hao. Não sou forte o suficiente para matá-lo, mas posso enfraquecê-lo por ser quem sou, e isso já é o suficiente.
- Eu...Eu não imaginava.
- Eu sei. Graças a Deus ainda consigo ao menos tentar ser normal, e me divertir. A única pessoa que suspeita que tem algo errado comigo é o Ren, por alguns motivos...Mas...Deixa pra lá. Chocado demais?
- Um pouco. Mas tudo vai ficar bem, eu tenho certeza. Espero que consiga deixar de querer matar Hao, Liberté. O que quer que tenha acontecido no passado, bem...Passou. Matar Hao não vai mudar nada. Talvez apenas te deixe ainda mais triste. Espero que com o tempo, convivendo conosco, você deixe de pensar em vingança. Vou lá embaixo ver se há algo para comer. Quer vir comigo?
- Está bem. - disse Liberté, sorrindo - Estou morrendo de fome.
---
Olhou irritada para o garoto, que dormia sem qualquer cuidado, jogado na grama coberta pela neve, faltando apenas algumas horas para a chegada do trem que o levaria a uma vida solitária em Tóquio. E ela deveria segui-lo assim que acabasse seu treinamento básico. Não acreditava que iria se casar com ele. Graças àquele garoto burro e preguiçoso não poderia ser a poderosa bruxa que queria ser. Graças àquele maldito casamento não poderia se aprofundar nos mistérios que apenas uma pessoa poderosa como ela conseguiria entender. Graças a ele nunca seria reconhecida por si mesma. Seria no máximo reconhecida como esposa do Rei Xamã.
Sabia que ele era fraco, preguiçoso e bobo, mas mesmo assim tinha certeza de que ele conseguiria. Se não tivesse tanta certeza, provavelmente ficaria louca, e fugiria de casa para uma vida miserável e solitária.
Fugiria, como Mei-ann fizera. E desapareceria, como Mei-ann desaparecera.
O apito do trem tirou-a de seus devaneios. Indelicadamente, sacudiu seu noivo para acordá-lo.
- O trem chegou. Vá logo. Lembre-se, logo irei atrás de você. E até lá é bom você arranjar um espírito decente. E não deixe de treinar todas as manhãs. Se desfizer tudo o que alcançamos aqui, jamais será o Rei Xamã, e jamais conseguirá me proporcionar o conforto que mereço.
- Está certo. Estou indo. Adeus, Anna.
- Não é um adeus, seu idiota. É apenas um até logo.
- Até logo então, Anna.
Abraçando o xale de lã junto ao seu corpo, Anna observou seu noivo entrar calmamente, como sempre, no trem.
- Até logo. - sussurrou.
---
Olá!
Será que demorei demais para postar esse capítulo? O próximo vai demorar bastante, pois vou viajar nessas férias. Espero que tenham gostado. Continuem mandando reviews!
Quanto à aparição dos três novos personagens do início do capítulo (que, por sinal, ficou enorme), seus nomes foram tirados da mitologia nórdica.
Lady Macbeth
