Capítulo 9
Estava tudo escuro e ela...Era como se não existisse. Nada poderia existir naquela escuridão.
E, de repente, como quando as cortinas se abrem no teatro, surgiu diante de seus olhos a cena que já conhecia tão bem de seus sonhos e lembranças. A rua fresca e silenciosa, o barulho suave do rio, o azul ofuscante do céu, o movimento calmo da chuva de flores rosadas. Uma das lembranças que mais odiava.
Mas aquela não era a sua lembrança, pois havia dois jovens no lugar das crianças que deveriam estar ali. Uma garota - ela mesma - de pele maltratada pelo sol, roupas rotas, cabelos sem qualquer cuidado. E um garoto de longos cabelos castanhos e rosto estranhamente pálido. Um garoto morto, estendido no chão com sangue espalhando-se à sua volta.
Aproximou-se mais para ouvir o que a garota sussurrava enquanto chorava, soluçava e abraçava o garoto morto.
- Não. Não. Não posso aceitar isso. Não quero. Você não pode estar morto. Por favor, Hao. Por favor.
E, entre sussurros e lágrimas, a garota pousou seus lábios suavemente sobre os dele.
---
Sentou-se na cama, os olhos muito abertos e espantados. Não podia ser. Aquele sonho não fazia sentido algum. Ela jamais ficaria triste com a morte de Hao. O desejo de vingar-se, de torturá-lo, de matá-lo, tinha sido a única coisa capaz de mantê-la viva por todos aqueles anos de privações, abandono e sofrimento. Fora o ódio que lhe dera forças quando o corpo insistia, exigia, morrer de fome, frio e exaustão. Estava viva apenas para matar Hao.
Mas ao mesmo tempo...
Ao mesmo tempo, não queria mais morrer depois que tivesse cumprido sua missão. As coisas estavam mudando. E tudo graças a ele. Aquele garoto sério e mal humorado estava mudando tudo.
Levantou-se e foi até a janela do quarto. A chuva continuava caindo do céu sem diminuir de intensidade, mas era possível ver o contorno de um garoto treinando lá fora, movendo-se devagar. Movia-se com graça, naturalidade e força, apesar dos ferimentos. Fechando os olhos ela quase podia sentir a força de seu olhar determinado e sério. Estava de tal forma conectada ao jovem chinês que pôde sentir quando ele interrompeu seus movimentos e olhou para a sua janela.
Abriu os olhos e, sentindo seu rosto ficar quente, afastou-se da janela. Sentia uma necessidade enorme de sair daquele quarto, encarar a pessoa que tanto odiava, para ter certeza de que ainda queria matá-la.
Dirigiu-se à porta do quarto, mas parou abruptamente ao passar por um espelho velho e rachado no qual ainda não tinha reparado. Examinou-se atentamente pela primeira vez em muitos e muitos anos. Os cabelos sem serem penteados há semanas, talvez meses. As roupas encardidas e rasgadas pelo tempo. As unhas roídas e sujas. Os sapatos semidestruídos.
Saiu da frente do espelho, mas em vez de sair do quarto foi até a mochila onde estavam seus poucos pertences e pegou um pente. Um pente velho, com sua delicada pintura de flores de cerejeira descascada e dentes quebrados. Voltou para o espelho e pacientemente, cuidadosamente, começou a se pentear.
---
Seis pessoas permaneciam em pé, no meio da chuva, esperando a luta começar. Havia poucos espectadores, e a própria luta quase tinha sido cancelada por causa daquela estranha e intensa chuva que já caía há uma semana.
No entanto, ali estavam eles. Yoh, estranhamente sério e solene, segurando sua espada sem muita convicção. Ryuu, observando atentamente os adversários. Mei-ann, com os longos cabelos presos num rabo de cavalo alto que deixava seu rosto exposto à chuva. Seus olhos, descobertos pelo cabelo, brilhavam nervosos e ansiosos.
Apesar da chuva e da escuridão, pouco a pouco foi ficando mais fácil de se distinguir os contornos dos espíritos que, atrás de seus mestres, aguardavam o início da luta. Lembrando-se dos comentários de Yoh sobre o espírito de Mei-ann, Ryuu lançou um olhar rápido na direção da garota. Ficou ligeiramente decepcionado. Esperava algo grandioso, que irradiasse poder, mas o espírito atrás dela mais parecia um garoto normal, muito magro, com cabelos negros muito lisos presos num rabo de cavalo alto e asas de dragão vermelhas. A decepção logo o abandonou quando o espírito abriu seus olhos, revelando um brilho metálico letal, impiedoso. Seus olhos irradiavam poder, parecendo uma extensão dos olhos de Mei-ann.
O juiz anunciou o início da luta. Os espíritos foram incorporados o mais rápido possível, e em poucos segundos todos os seis xamãs lutavam furiosamente contra algum adversário, sem tomar conhecimento dos outros. A chuva forte dificultava qualquer comunicação.
Mei-ann nunca lutara com tanta vontade. Logo o abundante sangue de seu adversário se espalhava nas águas do rio que se formara com aquela chuva. Dando as costas para o rio escarlate, Mei-ann voltou-se para ajudar Ryuu, seus olhos desligados do mundo, como se estivesse em transe. Não lançou nem mesmo um único olhar a Yoh. Sabia que ele estaria bem.
---
Num ponto muito distante da aldeia, num lugar protegido da chuva e do barulho, um par de olhos rubros como gotas de sangue se abrem na escuridão de sua prisão, e os lábios secos se abrem para proferir apenas algumas palavras.
- O rio de sangue. A carnificina começou.
---
- Onde você está indo? - perguntou ele, sua voz séria e desconfiada como sempre, seus olhos desafiadores e ácidos.
- Não interessa. - disse ela, o mais suavemente possível.
- Interessa sim! Disse que estava cansada, que precisava descansar. Então por que está saindo quando todos estão fora? Por que está saindo quando deveria ficar lá dentro?
- Se você fosse meu pai, meu irmão ou meu amigo, talvez eu lhe desse alguma atenção. Mas você não é nada meu. Não tem a menor autoridade para me proibir de sair quando quero. Dê licença agora. - sua voz agora era mais fria e distante, mesmo que doesse tanto dizer palavras tão duras a ele.
- Como pode dizer isso? Achei...Achei que tivesse entendido quando disse que você podia confiar em mim, para o que der e vier. Achei que tivesse entendido que eu quero ser seu amigo. - Disse ele, a voz um pouco mais suave. Liberté olhou para ele atentamente, a expressão do rosto suavizando-se um pouco. Podia-se ver, entre a chuva, o fantasma de um sorriso em seus lábios. Ela disse então:
- Vou ver Hao.
- Como? - disse ele, descrente - Então você está nos traindo! É uma espiã, não é? Diga a verdade! - gritou Ren, apontando sua espada para ela. Sentiu-se mal ao fazer isso, como se estivesse fazendo algo errado. Mas era certo, não era? Era certo tentar impedir o seu inimigo de fazer algo que poderia prejudicar alguém, não era?
- Você quer lutar comigo? - perguntou ela, tristemente.
- Vou fazer o que for necessário para te impedir.
- Certo então.
Ela não parecia perigosa. Parecia melancólica, frágil, perdida. Pela primeira vez Ren achou-a realmente bela. Não que não fosse sempre, mas essa face dela, a mesma face mostrada naquela noite em que ela tinha chorado em seus braços, fazia com que se sentisse ainda mais atraído por ela. Aquela face despertava dentro dele um instinto protetor, gentil.
Ele estava mudando cada vez mais. A princípio, por causa de Yoh. E agora, por causa daquela garota.
Uma traidora.
Não precisou incorporar seu espírito, que já estava com ele. Atacou-a sem aviso e, apesar da proximidade dos dois, ela ainda teve tempo para transformar o seu pequeno e delicado Espírito Guardião naquela estranha lança usada na luta anterior com calma e serenidade. Ainda parecendo tristemente calma, defendeu-se dos golpes dele, carregados de ódio e força. Ele atacava-a por todos os lados. For frente, por trás, por cima, pelos lados. E mesmo assim ela se defendia com perfeição e calma que chegavam a assustá-lo. Quando é que tinha ficado tão fraco?
- Ficar com raiva não vai deixá-lo mais forte. Muito pelo contrário, a raiva sugará as suas energias até que não sobre nada.
E ainda dava conselhos. Droga. Que tipo de traidor dava conselhos aos adversários? Que tipo de inimigo olhava para seu alvo com tanta delicadeza, tanta ternura? Que tipo de pessoa não tentava atacar quando alguém atacava? E o pior é que aqueles malditos conselhos pareciam estar certos, pois ele se sentia cada vez mais fraco e cansado. Bem, talvez tivesse sido apenas o longo e exaustivo treino. Sim, era aquilo. Ela não estava certa. Não estava tentando ajudá-lo.
Sentiu, num misto de raiva e decepção, uma lâmina fria cortar as suas costas pela segunda vez em poucos dias. O sangue quente encharcava seu corpo, e mãos quentes e bondosas o erguiam e o ajudava a caminhar até o seu quarto. Depois disso, tudo foi ficando cada vez mais distante, até que ele não sentisse mais nada.
---
Parecia que toda a energia estava sendo sugada de seu corpo. Era tão, tão estranho...Sentia-se fraco, cansado, mesmo que nenhum golpe o tivesse realmente acertado. Ainda assim, estava alerta o suficiente para sentir uma presença ao seu lado.
- Deixe-me te ajudar. Temos que terminar isso logo.
- Qual a pressa? Que eu saiba, você nunca foi uma pessoa muito apressada. - disse, ele muito tranqüilo, apesar da situação.
- Mesmo assim. Tenho que ir logo atrás de Liberté. Ela quer fazer algo que eu não posso permitir.
- Você consegue sentir o que ela está fazendo? Lutando, e a essa distância? Você é realmente incrível, Mei-ann.
Ele deu a ela um daqueles sorrisos indescritíveis, e por um segundo ela se distraiu e esqueceu da luta. O adversário não era estúpido, e aproveitou para atacar Yoh.
Tudo foi muito, muito rápido. Num momento a ponta da espada estava quase sobre o pescoço de Yoh e, no momento seguinte, a mão que segurava a espada foi arrancada de seu corpo, caindo sobre a lama e o sangue no chão. Mei-ann tinha o braço sobre o local onde Yoh seria atingido, e Ryuu, a alguns metros deles, a respiração ofegante e os olhos sérios e estreitos fitando o casal, falou:
- Se nós temos que ir atrás da Liberté, então vamos logo.
- Vocês não precisam vir comigo. Exaustos como estão serão de pouca ajuda. Vão descansar.
- Obrigado por se preocupar conosco, Mei-ann. Mas não precisa. Nós não vamos com você porque temos que ir, vamos porque queremos.
- É isso aí.
- Vocês...Têm certeza?
- É claro, Mei-ann. Confia na gente. Vai ficar tudo bem.
- Certo então.
E, sem lançar ao menos um olhar ao juiz que observava o grupo vencedor estarrecido, os três correram sem se importar com a chuva, lama e o sangue. Tudo para salvar alguém. Quem diria que ela, Mei-ann, um dia correria para salvar duas vidas?
---
As duas jovens se abraçavam com carinho. Nos olhos de ambas havia lágrimas e também gotas da chuva fina que caía do céu de chumbo. A natureza parecia ter se condoído com a tristeza das duas amigas, fazendo com que tudo parecesse muito triste, mas ao mesmo tempo muito bonito.
As duas eram muito, muito diferentes. Não pareciam pertencer ao mesmo mundo, não pareciam nem mesmo pertencer à mesma espécie. Uma tinha o aspecto de um gato selvagem, com cabelos negros longos e mal tratados, o corpo ágil, magro e alto, olhos que apesar de ainda brilharem carregavam visivelmente dor e tristeza. A outra, com um aspecto saudável e bem tratado, longas tranças loiras, cílios compridos de onde pendiam lágrimas gentis e infantis. Foi esta última que quebrou o silêncio:
- Liberté...Você tem mesmo que ir?
- Tenho. Já disse, tenho uma missão muito importante a cumprir.
- Ah, Liberté...Eu entendo. A nossa vida é muito pequena, muito insignificante comparada ao que te espera. Embora eu não possa, como você, ver espíritos ou sentir a energia dos outros, posso ver perfeitamente que grandes coisas te esperam. Só rezo para que encontre em seu caminho pessoas que cuidem bem de você...Ah, Liberté!
- Não fique triste, Reiko. Foi muito bom conhecer você e seus pais. Diga a eles que não tenho nem mesmo palavras para me explicar ou para agradecê-los. Eles me acolheram quando eu estava quase perdendo a pouca esperança que me restava e...
Não conseguiu continuar a falar. Os meses com a família de Reiko tinham se passado tão rápido...Por que ela tinha que ir? Por que tinha que partir, abandonar um lugar onde poderia ser feliz?
Poderia mesmo? Sacudiu a cabeça, sem muita convicção. Ainda acordava todas as noites, suada e fraca, querendo desaparecer, morrer, terminar com aquela dor tão forte.
- Reiko...Eu prometi que voltaria, mas não posso mentir. Não para você. Não vou voltar.
- Por quê? Por que não, Liberté? Fomos ruins com você? Por acaso fizemos algo que...
- Não, muito pelo contrário. Eu gostaria de ficar. Mas tenho que terminar isso e temo que não consiga. Mas vou morrer tentando, se for necessário. Não vou poder viver sabendo que...Que nem mesmo tentei.
- Ah, Liberté! Eu...Eu não sei o que dizer! Você é a minha melhor amiga!
- E você é mais que isso para mim, Reiko. Você é a minha única amiga. Vou sentir sua falta.
- Eu também...Eu também. Se cuide, Liberté. E não se esqueça de pentear os cabelos!
- Vou tentar... - disse Liberté, com um sorriso melancólico. Ainda assim, era um sorriso. Queria que Reiko se lembrasse dela assim, sorrindo.
E, sem olhar para trás, sem chorar, sem reclamar, partiu da casa onde fora feliz por alguns meses. Onde, por algum tempo, tinha sido capaz de abandonar a dor e a tristeza.
Mas não podia abandoná-la. Tinha que encará-la.
---
Oi!
Sinto muito pela demora. Esse capítulo foi realmente difícil de escrever. Na verdade, achei que não conseguiria. No entanto, consegui. Não muito bem, mas consegui. Abandonei por pelo menos um capítulo toda aquela tristeza e desespero, porque simplesmente não consegui escrever algo triste demais. O meu humor influi e muito na historia, assim como a história influi muito no meu humor. Comecei a escrever esta historia triste, e quanto mais eu escrevia, mais triste ficava. Até que não agüentei mais, e dei um jeito de jogar toda aquela tristeza pro alto. Portanto, agora que estou alegre, os capítulos vão provavelmente ser menos pesados, e também demorarão mais para chegar. Peço a compreensão de todos vocês que estão lendo minha fanfic, e agradeço a todos que mandaram reviews. Continuem mandado, tá? Eu ADORO receber críticas, elogios ou sugestões.
Quanto à luta do grupo do Yoh, só para esclarecer, quem salvou o Yoh foi o Ryuu. Ahei que o coitado precisava pelo menos uma vez fazer algo de útil nessa história.
E quanto ao último quadro, acontece entre a morte dos pais de Liberté e a ida dela à aldeia do Patch, e foi escrito para mostrar que o Ren não foi o único capaz de tocar o coração de Liberté. Ela decididamente não é um caso perdido. Bem, acho que é só.
Lady Macbeth
Estava tudo escuro e ela...Era como se não existisse. Nada poderia existir naquela escuridão.
E, de repente, como quando as cortinas se abrem no teatro, surgiu diante de seus olhos a cena que já conhecia tão bem de seus sonhos e lembranças. A rua fresca e silenciosa, o barulho suave do rio, o azul ofuscante do céu, o movimento calmo da chuva de flores rosadas. Uma das lembranças que mais odiava.
Mas aquela não era a sua lembrança, pois havia dois jovens no lugar das crianças que deveriam estar ali. Uma garota - ela mesma - de pele maltratada pelo sol, roupas rotas, cabelos sem qualquer cuidado. E um garoto de longos cabelos castanhos e rosto estranhamente pálido. Um garoto morto, estendido no chão com sangue espalhando-se à sua volta.
Aproximou-se mais para ouvir o que a garota sussurrava enquanto chorava, soluçava e abraçava o garoto morto.
- Não. Não. Não posso aceitar isso. Não quero. Você não pode estar morto. Por favor, Hao. Por favor.
E, entre sussurros e lágrimas, a garota pousou seus lábios suavemente sobre os dele.
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Sentou-se na cama, os olhos muito abertos e espantados. Não podia ser. Aquele sonho não fazia sentido algum. Ela jamais ficaria triste com a morte de Hao. O desejo de vingar-se, de torturá-lo, de matá-lo, tinha sido a única coisa capaz de mantê-la viva por todos aqueles anos de privações, abandono e sofrimento. Fora o ódio que lhe dera forças quando o corpo insistia, exigia, morrer de fome, frio e exaustão. Estava viva apenas para matar Hao.
Mas ao mesmo tempo...
Ao mesmo tempo, não queria mais morrer depois que tivesse cumprido sua missão. As coisas estavam mudando. E tudo graças a ele. Aquele garoto sério e mal humorado estava mudando tudo.
Levantou-se e foi até a janela do quarto. A chuva continuava caindo do céu sem diminuir de intensidade, mas era possível ver o contorno de um garoto treinando lá fora, movendo-se devagar. Movia-se com graça, naturalidade e força, apesar dos ferimentos. Fechando os olhos ela quase podia sentir a força de seu olhar determinado e sério. Estava de tal forma conectada ao jovem chinês que pôde sentir quando ele interrompeu seus movimentos e olhou para a sua janela.
Abriu os olhos e, sentindo seu rosto ficar quente, afastou-se da janela. Sentia uma necessidade enorme de sair daquele quarto, encarar a pessoa que tanto odiava, para ter certeza de que ainda queria matá-la.
Dirigiu-se à porta do quarto, mas parou abruptamente ao passar por um espelho velho e rachado no qual ainda não tinha reparado. Examinou-se atentamente pela primeira vez em muitos e muitos anos. Os cabelos sem serem penteados há semanas, talvez meses. As roupas encardidas e rasgadas pelo tempo. As unhas roídas e sujas. Os sapatos semidestruídos.
Saiu da frente do espelho, mas em vez de sair do quarto foi até a mochila onde estavam seus poucos pertences e pegou um pente. Um pente velho, com sua delicada pintura de flores de cerejeira descascada e dentes quebrados. Voltou para o espelho e pacientemente, cuidadosamente, começou a se pentear.
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Seis pessoas permaneciam em pé, no meio da chuva, esperando a luta começar. Havia poucos espectadores, e a própria luta quase tinha sido cancelada por causa daquela estranha e intensa chuva que já caía há uma semana.
No entanto, ali estavam eles. Yoh, estranhamente sério e solene, segurando sua espada sem muita convicção. Ryuu, observando atentamente os adversários. Mei-ann, com os longos cabelos presos num rabo de cavalo alto que deixava seu rosto exposto à chuva. Seus olhos, descobertos pelo cabelo, brilhavam nervosos e ansiosos.
Apesar da chuva e da escuridão, pouco a pouco foi ficando mais fácil de se distinguir os contornos dos espíritos que, atrás de seus mestres, aguardavam o início da luta. Lembrando-se dos comentários de Yoh sobre o espírito de Mei-ann, Ryuu lançou um olhar rápido na direção da garota. Ficou ligeiramente decepcionado. Esperava algo grandioso, que irradiasse poder, mas o espírito atrás dela mais parecia um garoto normal, muito magro, com cabelos negros muito lisos presos num rabo de cavalo alto e asas de dragão vermelhas. A decepção logo o abandonou quando o espírito abriu seus olhos, revelando um brilho metálico letal, impiedoso. Seus olhos irradiavam poder, parecendo uma extensão dos olhos de Mei-ann.
O juiz anunciou o início da luta. Os espíritos foram incorporados o mais rápido possível, e em poucos segundos todos os seis xamãs lutavam furiosamente contra algum adversário, sem tomar conhecimento dos outros. A chuva forte dificultava qualquer comunicação.
Mei-ann nunca lutara com tanta vontade. Logo o abundante sangue de seu adversário se espalhava nas águas do rio que se formara com aquela chuva. Dando as costas para o rio escarlate, Mei-ann voltou-se para ajudar Ryuu, seus olhos desligados do mundo, como se estivesse em transe. Não lançou nem mesmo um único olhar a Yoh. Sabia que ele estaria bem.
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Num ponto muito distante da aldeia, num lugar protegido da chuva e do barulho, um par de olhos rubros como gotas de sangue se abrem na escuridão de sua prisão, e os lábios secos se abrem para proferir apenas algumas palavras.
- O rio de sangue. A carnificina começou.
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- Onde você está indo? - perguntou ele, sua voz séria e desconfiada como sempre, seus olhos desafiadores e ácidos.
- Não interessa. - disse ela, o mais suavemente possível.
- Interessa sim! Disse que estava cansada, que precisava descansar. Então por que está saindo quando todos estão fora? Por que está saindo quando deveria ficar lá dentro?
- Se você fosse meu pai, meu irmão ou meu amigo, talvez eu lhe desse alguma atenção. Mas você não é nada meu. Não tem a menor autoridade para me proibir de sair quando quero. Dê licença agora. - sua voz agora era mais fria e distante, mesmo que doesse tanto dizer palavras tão duras a ele.
- Como pode dizer isso? Achei...Achei que tivesse entendido quando disse que você podia confiar em mim, para o que der e vier. Achei que tivesse entendido que eu quero ser seu amigo. - Disse ele, a voz um pouco mais suave. Liberté olhou para ele atentamente, a expressão do rosto suavizando-se um pouco. Podia-se ver, entre a chuva, o fantasma de um sorriso em seus lábios. Ela disse então:
- Vou ver Hao.
- Como? - disse ele, descrente - Então você está nos traindo! É uma espiã, não é? Diga a verdade! - gritou Ren, apontando sua espada para ela. Sentiu-se mal ao fazer isso, como se estivesse fazendo algo errado. Mas era certo, não era? Era certo tentar impedir o seu inimigo de fazer algo que poderia prejudicar alguém, não era?
- Você quer lutar comigo? - perguntou ela, tristemente.
- Vou fazer o que for necessário para te impedir.
- Certo então.
Ela não parecia perigosa. Parecia melancólica, frágil, perdida. Pela primeira vez Ren achou-a realmente bela. Não que não fosse sempre, mas essa face dela, a mesma face mostrada naquela noite em que ela tinha chorado em seus braços, fazia com que se sentisse ainda mais atraído por ela. Aquela face despertava dentro dele um instinto protetor, gentil.
Ele estava mudando cada vez mais. A princípio, por causa de Yoh. E agora, por causa daquela garota.
Uma traidora.
Não precisou incorporar seu espírito, que já estava com ele. Atacou-a sem aviso e, apesar da proximidade dos dois, ela ainda teve tempo para transformar o seu pequeno e delicado Espírito Guardião naquela estranha lança usada na luta anterior com calma e serenidade. Ainda parecendo tristemente calma, defendeu-se dos golpes dele, carregados de ódio e força. Ele atacava-a por todos os lados. For frente, por trás, por cima, pelos lados. E mesmo assim ela se defendia com perfeição e calma que chegavam a assustá-lo. Quando é que tinha ficado tão fraco?
- Ficar com raiva não vai deixá-lo mais forte. Muito pelo contrário, a raiva sugará as suas energias até que não sobre nada.
E ainda dava conselhos. Droga. Que tipo de traidor dava conselhos aos adversários? Que tipo de inimigo olhava para seu alvo com tanta delicadeza, tanta ternura? Que tipo de pessoa não tentava atacar quando alguém atacava? E o pior é que aqueles malditos conselhos pareciam estar certos, pois ele se sentia cada vez mais fraco e cansado. Bem, talvez tivesse sido apenas o longo e exaustivo treino. Sim, era aquilo. Ela não estava certa. Não estava tentando ajudá-lo.
Sentiu, num misto de raiva e decepção, uma lâmina fria cortar as suas costas pela segunda vez em poucos dias. O sangue quente encharcava seu corpo, e mãos quentes e bondosas o erguiam e o ajudava a caminhar até o seu quarto. Depois disso, tudo foi ficando cada vez mais distante, até que ele não sentisse mais nada.
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Parecia que toda a energia estava sendo sugada de seu corpo. Era tão, tão estranho...Sentia-se fraco, cansado, mesmo que nenhum golpe o tivesse realmente acertado. Ainda assim, estava alerta o suficiente para sentir uma presença ao seu lado.
- Deixe-me te ajudar. Temos que terminar isso logo.
- Qual a pressa? Que eu saiba, você nunca foi uma pessoa muito apressada. - disse, ele muito tranqüilo, apesar da situação.
- Mesmo assim. Tenho que ir logo atrás de Liberté. Ela quer fazer algo que eu não posso permitir.
- Você consegue sentir o que ela está fazendo? Lutando, e a essa distância? Você é realmente incrível, Mei-ann.
Ele deu a ela um daqueles sorrisos indescritíveis, e por um segundo ela se distraiu e esqueceu da luta. O adversário não era estúpido, e aproveitou para atacar Yoh.
Tudo foi muito, muito rápido. Num momento a ponta da espada estava quase sobre o pescoço de Yoh e, no momento seguinte, a mão que segurava a espada foi arrancada de seu corpo, caindo sobre a lama e o sangue no chão. Mei-ann tinha o braço sobre o local onde Yoh seria atingido, e Ryuu, a alguns metros deles, a respiração ofegante e os olhos sérios e estreitos fitando o casal, falou:
- Se nós temos que ir atrás da Liberté, então vamos logo.
- Vocês não precisam vir comigo. Exaustos como estão serão de pouca ajuda. Vão descansar.
- Obrigado por se preocupar conosco, Mei-ann. Mas não precisa. Nós não vamos com você porque temos que ir, vamos porque queremos.
- É isso aí.
- Vocês...Têm certeza?
- É claro, Mei-ann. Confia na gente. Vai ficar tudo bem.
- Certo então.
E, sem lançar ao menos um olhar ao juiz que observava o grupo vencedor estarrecido, os três correram sem se importar com a chuva, lama e o sangue. Tudo para salvar alguém. Quem diria que ela, Mei-ann, um dia correria para salvar duas vidas?
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As duas jovens se abraçavam com carinho. Nos olhos de ambas havia lágrimas e também gotas da chuva fina que caía do céu de chumbo. A natureza parecia ter se condoído com a tristeza das duas amigas, fazendo com que tudo parecesse muito triste, mas ao mesmo tempo muito bonito.
As duas eram muito, muito diferentes. Não pareciam pertencer ao mesmo mundo, não pareciam nem mesmo pertencer à mesma espécie. Uma tinha o aspecto de um gato selvagem, com cabelos negros longos e mal tratados, o corpo ágil, magro e alto, olhos que apesar de ainda brilharem carregavam visivelmente dor e tristeza. A outra, com um aspecto saudável e bem tratado, longas tranças loiras, cílios compridos de onde pendiam lágrimas gentis e infantis. Foi esta última que quebrou o silêncio:
- Liberté...Você tem mesmo que ir?
- Tenho. Já disse, tenho uma missão muito importante a cumprir.
- Ah, Liberté...Eu entendo. A nossa vida é muito pequena, muito insignificante comparada ao que te espera. Embora eu não possa, como você, ver espíritos ou sentir a energia dos outros, posso ver perfeitamente que grandes coisas te esperam. Só rezo para que encontre em seu caminho pessoas que cuidem bem de você...Ah, Liberté!
- Não fique triste, Reiko. Foi muito bom conhecer você e seus pais. Diga a eles que não tenho nem mesmo palavras para me explicar ou para agradecê-los. Eles me acolheram quando eu estava quase perdendo a pouca esperança que me restava e...
Não conseguiu continuar a falar. Os meses com a família de Reiko tinham se passado tão rápido...Por que ela tinha que ir? Por que tinha que partir, abandonar um lugar onde poderia ser feliz?
Poderia mesmo? Sacudiu a cabeça, sem muita convicção. Ainda acordava todas as noites, suada e fraca, querendo desaparecer, morrer, terminar com aquela dor tão forte.
- Reiko...Eu prometi que voltaria, mas não posso mentir. Não para você. Não vou voltar.
- Por quê? Por que não, Liberté? Fomos ruins com você? Por acaso fizemos algo que...
- Não, muito pelo contrário. Eu gostaria de ficar. Mas tenho que terminar isso e temo que não consiga. Mas vou morrer tentando, se for necessário. Não vou poder viver sabendo que...Que nem mesmo tentei.
- Ah, Liberté! Eu...Eu não sei o que dizer! Você é a minha melhor amiga!
- E você é mais que isso para mim, Reiko. Você é a minha única amiga. Vou sentir sua falta.
- Eu também...Eu também. Se cuide, Liberté. E não se esqueça de pentear os cabelos!
- Vou tentar... - disse Liberté, com um sorriso melancólico. Ainda assim, era um sorriso. Queria que Reiko se lembrasse dela assim, sorrindo.
E, sem olhar para trás, sem chorar, sem reclamar, partiu da casa onde fora feliz por alguns meses. Onde, por algum tempo, tinha sido capaz de abandonar a dor e a tristeza.
Mas não podia abandoná-la. Tinha que encará-la.
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Oi!
Sinto muito pela demora. Esse capítulo foi realmente difícil de escrever. Na verdade, achei que não conseguiria. No entanto, consegui. Não muito bem, mas consegui. Abandonei por pelo menos um capítulo toda aquela tristeza e desespero, porque simplesmente não consegui escrever algo triste demais. O meu humor influi e muito na historia, assim como a história influi muito no meu humor. Comecei a escrever esta historia triste, e quanto mais eu escrevia, mais triste ficava. Até que não agüentei mais, e dei um jeito de jogar toda aquela tristeza pro alto. Portanto, agora que estou alegre, os capítulos vão provavelmente ser menos pesados, e também demorarão mais para chegar. Peço a compreensão de todos vocês que estão lendo minha fanfic, e agradeço a todos que mandaram reviews. Continuem mandado, tá? Eu ADORO receber críticas, elogios ou sugestões.
Quanto à luta do grupo do Yoh, só para esclarecer, quem salvou o Yoh foi o Ryuu. Ahei que o coitado precisava pelo menos uma vez fazer algo de útil nessa história.
E quanto ao último quadro, acontece entre a morte dos pais de Liberté e a ida dela à aldeia do Patch, e foi escrito para mostrar que o Ren não foi o único capaz de tocar o coração de Liberté. Ela decididamente não é um caso perdido. Bem, acho que é só.
Lady Macbeth
