Capítulo 10 - Confronto
Ela olhava pela janela com sua habitual expressão - ou falta de expressão - fitando a chuva sem realmente vê-la. O quarto iluminado lançava luz e sombra em seu rosto belo e pálido. O rosto que seu amo amava. O rosto que tornava seu amo cada vez mais distante, mais estranho. O rosto que ele mesmo nunca poderia amar, ou mesmo respeitar.
- Senhorita Anna? - a voz era polida, infantil e gentil, mas a falsidade nela era óbvia. Sabia que a jovem estava ouvindo, então não esperou uma resposta - Há uma pessoa lá embaixo, querendo falar com o mestre Hao.
- E por que veio falar comigo?
- Bem...O mestre Hao com certeza vai querer ver essa tal garota. Mas...Eu não sei se ele deve.
Anna desviou o olhar da chuva para Opacho, que a observava com expectativa e insegurança transparecendo em seus grandes olhos infantis.
- Por quê?
- Essa menina...Parece perigosa, Senhorita Anna. Ela está suja de sangue, de lama...E parece decididamente perigosa.
- O que você quer que eu faça?
- Bem...A Senhorita poderia vê-la...
A garota suspirou, mas não disse nada. Levantou-se e saiu do quarto, seguida pelo olhar de Opacho. Caminhou tranqüilamente pela casa ocupada por Hao e seus aliados, parando na porta que dava para o aposento onde podia sentir a energia da tal garota.
Ela já tinha sentido aquela energia antes. A garota que estava no grupo de Yoh.
Estranho. Em tão pouco tempo já tinha sido capaz de falar de Yoh com distância e segurança, como se fosse alguém que ela mal conhecia. E não a única pessoa que fora capaz de tocar seu coração.
Entrou no aposento. De pé, no meio dele, estava Liberté, observando-a com desprezo.
- Achei que tivesse dito que queria ver Hao, e não um de seus subordinados. A não ser que ele seja covarde a ponto de ter medo de me encarar.
- Opacho pediu que eu viesse ver quem era. Tem medo de que Hao se machuque.
- Não vim para machucar Hao. Não agora, pelo menos.
---
Pararam em frente à casa que Hao estava ocupando. Não tinha sido difícil encontrá-la - a energia que emanava era tão grande que não havia como confundir. Pertencia a Hao.
Mei-ann virou-se para Yoh, que estava atrás dela, e observou-o atentamente, seriamente. Por fim, disse:
- Yoh, eu avisei. Eu disse que você não precisava vir. Mas você quis. Antes, no entanto, tenho que te contar uma coisa.
- Por está tão séria, Mei-ann? - disse Yoh. Seu rosto era sério, mas era também muito calmo. Tão calmo que parecia estar sorrindo.
- Pode ter certeza de que não vai gostar do que vai ouvir agora. Mas é melhor que saiba antes.
- O quê? - perguntou ele, ainda muito calmo.
- A Anna. Ela não sumiu. Ela não voltou para casa. Ela não voltou para o monte onde vivem as outras bruxas. Ela está aqui.
- Na aldeia do Patch? E por que não avisou antes, Mei-ann? - disse ele, sorrindo - gostaria de encontrá-la novamente!
- Seu idiota. Quando eu disse aqui, não quis dizer que ela está na aldeia. Quis dizer que ela está aqui, nessa casa. Relaxe e sinta você mesmo a energia dela.
Yoh olhou para Mei-ann confuso. Olhou para a casa, tentando sentir a energia de sua ex-noiva. Tudo o que conseguiu foi sentir a poderosa energia de Hao, mas mesmo assim, não duvidou de Mei-ann. Anna estava...Com Hao.
- Temos que salvá-la também, mestre Yoh! Se esse maldito Hao seqüestrou a nossa Anna, devemos pegá-la de volta! - disse Ryuu, entusiasmado. Ele sentia a falta da presença da garota, mesmo que ela se esforçasse tanto para ser séria e antipática. Mesmo assim, ele sentia a sua falta, e se sentiu muito estranho quando os dois jovens olharam para ele com olhos cheios de tristeza. Foi Yoh que quebrou o silêncio, falando muito baixo.
- A Anna não foi seqüestrada pelo Hao, Ryuu. Ela está com ele porque quer. E a culpa é toda minha.
Mei-ann lançou um olhar de tédio para Yoh, e então virou as costas para ele.
- Hora de entrar.
---
Lyserg olhava atentamente para a Donzela de Ferro. O aposento estava tão silencioso que ele podia ouvir a respiração da garota lá dentro. Fechando os olhos ele quase podia vê-la, os olhos vermelhos e gentis, a pele muito clara e delicada...
Nunca antes tinha conseguido ficar tão próximo a ela. Geralmente, quando estava ali, era acompanhado por Marcos. Mas agora...Agora era diferente. Somente eles dois, naquele silêncio sagrado, mítico, e que ele estava prestes a destruir.
- Senhorita Jeanne?
Não houve resposta, mas mesmo assim ele continuou.
- Falei com a menina, como disseram que deveria fazer. No entanto...Não deu certo. Ela não quis se unir a nós. Diz que não conhecemos Hao e que não se importa em ser amaldiçoada, não se importa com a Justiça. Ela é tão...Diferente. Sinto muito, Senhorita Jeanne. Não consegui ajudá-los nem mesmo a arranjar mais alguém para o nosso grupo. Eu...Sinto muito, Senhorita Jeanne.
A jovem dentro da prisão de ferro não fez um único movimento. Seus olhos não piscaram, seus lábios não se abriram. Mas Lyserg pôde sentir, de alguma forma, mãos percorrendo o caminho entre seus cabelos, até seu pescoço. Mãos puxando-o delicadamente, e abraçando-o gentilmente. E então ele sentiu um beijo na face. Tão delicado e etéreo quanto o abraço, mas ainda sim um beijo.
---
Anna virou as costas para Liberté. Podia sentir várias pessoas se aproximando apressadas, esquentadas, desprendendo uma energia poderosa, uma energia familiar. Três pessoas entraram no grande aposento, sem se preocuparem com educação ou discrição. Estavam molhadas, sujas de sangue e lama da cabeça aos pés, e nos olhos vinham a determinação e a coragem. A única garota do grupo afastou os longos cabelos dourados do rosto e disse, com a usual voz dura e objetiva:
- Anna, avise a Hao que eu também estou aqui. Vá agora, pois não temos tempo a perder.
A irmã mais nova não disse nada. Observou os recém chegados com uma expressão indefinível, que misturava dor, nostalgia, nojo e desprezo. Ainda sem dizer nada, virou-se e olhou impiedosamente para a criança que espiava os recém chegados meio escondida pela porta.
- Opacho, vá chamar Hao. Agora.
- Opacho não vai chamar Hao. Essas pessoas são perigosas, e Opacho não quer ver o mestre Hao machucado.
- Seu mestre ficará muito aborrecido, Opacho, se descobrir que não foi chamado a receber pessoas tão importantes. Ficará muito aborrecido, e a culpa terá sido sua.
O pequeno corpo a quem pertencia a voz partiu de seu esconderijo, provavelmente indo avisar seu mestre dos recém chegados.
Mei-ann passou direto por sua irmã mais nova, andando decidida em direção à Liberté. Yoh e Ryuu pareciam ainda não ter reparado nisso. Observavam os dois a jovem que um dia fizera parte de seus dias. Tão mudada e estranha. Sempre tinha sido séria, rigorosa e exigente, mas nunca tinha olhado-os com aquele olhar tão estranho. Nunca tinha ignorado-os. Nunca tinha parecido tão distante, tão inatingível, tão inexpressiva.
Mei-ann não se importava com isso. Não ligava para a irmã, há muitos anos que não convivia com ela e tinha algo mais importante a fazer. Tinha que salvar alguém. Dirigiu-se a Liberté, falando numa voz baixa demais para os outros ouvirem.
- Liberté...O que diabos você está fazendo aqui? - sua voz era irritada, e era a primeira vez que Liberté via Mei-ann abrir a boca para fazer uma pergunta cuja resposta era óbvia.
- Por que pergunta se sabe a resposta? Eu vim ver Hao.
- Agora? Não seja estúpida, você tem que ficar muito mais forte do que já é para conseguir vencê-lo. Ele vai te matar.
- Você é surda? Eu não disse que vim lutar com o Hao. Disse que vim vê-lo.
- E por que quer fazer isso?
- Por que eu... - e ela parecia um tanto quanto insegura ao dizer isso - Eu não...Não sei se realmente odeio Hao, agora. Eu mudei, estou estranha. Não dá para falar disso agora, mas...Estou mudada. O meu ódio por Hao era o que me fazia sobreviver, mas...Agora...As coisas mudaram.
- Então você tem algo ou alguém que ama o suficiente para impedi-la de morrer lutando contra ele. - e a voz de Mei-ann se elevou um pouco ao dizer isso. Yoh desviou os olhos de Anna, e passou a observar as outras duas garotas.
- É...Deve ser isso. - disse Liberté, ainda insegura.
- E é idiota o suficiente para querer reavivar esse ódio horrível, que te consome, que impede que você seja feliz? Você é burra, ou algo do tipo? Vá embora agora, Liberté. Vá embora antes que o ódio possa voltar, e impedi-la de ser feliz. Vai logo.
Dúvida passou dentro da mente de Liberté. Seu lado mais rebelde revoltou-se contra Mei-ann, dizendo-lhe que não tinha que aceitar ordens de ninguém. Era independente, e fazia o que queria. Seu lado que odiava Hao, o lado que predominara em sua personalidade por todos aqueles anos, disse que Mei-ann estava errada. Ela nunca poderia ser feliz com Hao vivo.
Mas aqueles dois lados dela ela já conhecia. No entanto, um outro lado, uma outra faceta sua que ela desconhecia, falou em sua mente. Falou que Mei-ann estava certa. Falou que Hao seria castigado mais cedo ou mais tarde, e que ela não devia mais se prender a ele. Falou que ela devia voltar e pedir desculpas a alguém. E tentar ser feliz com esse alguém.
Esse lado pegou-a de surpresa. E a surpresa foi grande o suficiente para que ela o ouvisse. Para que ela o seguisse. Para que ela engolisse o orgulho e o resto do ódio que havia dentro dela. Para que ela começasse a andar em direção às portas de saída do aposento.
E então as portas se abriram, e alguém entrou. Antes mesmo que entrasse, todos ali já sabiam quem era. Sua energia era forte demais para passar desapercebida. Mei-ann prendeu a respiração, Anna ergueu a cabeça imperceptivelmente, Yoh e Ryuu fitaram a porta com curiosidade. E Liberté continuou andando.
Quando Hao entrou no aposento, seus olhos imediatamente se colocaram sobre a garota tão familiar para ele. Seus olhos se colocaram sobre ela, esperançosos, querendo conversar com ela, descobrir quem ela era. No entanto, a esperança se transformou em decepção quando ela passou direto por ele, evitando seus olhos.
Ela passou direto e, esforçando-se ao máximo para evitar que qualquer pensamento cruzasse sua cabeça, saiu para a noite chuvosa.
---
Assim que as portas se fecharam às costas da garota, o olhar de Hao voltou-se para Mei-ann.
- Então você voltou. Eu imaginava que voltaria. Estava com saudades, Mei-ann.
- Voltei para te matar, Hao. Prepare-se, porque eu vou lutar a sério, e espero que você lute também.
- Mas minha querida Mei-ann, se eu lutar a sério contra você, vai morrer. E eu não quero que você morra.
- Você ficaria surpreso, Hao. Chame logo seu espírito.
- Chame o seu primeiro. Eu sei que você sempre demora muito para incorporá-lo, não? Antes de incorporá-lo você precisa encontrá-lo, não é? Ele nunca está com você, afinal de contas. Você ainda precisa fazer a prece que abre as portas do inferno, não é?
Mei-ann olhou irritada para Hao, e desenrolou dos pulsos escondidos pelas mangas da blusa social muito larga para ela um colar que se parecia muito com o da própria Anna, que se pôs a olhar com interesse. Mei-ann fechou os olhos e fez sua prece numa voz tão baixa que apenas os ouvidos de Hao entenderam.
- Portões que guardam os mistérios do inferno, ouçam meus apelos e abram-se para mim.
Deixem-me perscrutar sua escuridão, buscando nela aquilo que sou.
Deixem-me trazer para a luz meu poder, meu servo, meu espírito.
O espírito de Mei-ann surgiu, e Hao disse com a voz zombeteira:
- Muito bonita a sua prece, Mei-ann. E realmente impressionante seu pequeno espírito. Vejo que estava falando sério. Então teremos que lutar. Não se deve deixar uma dama esperando, não é mesmo?
Sorrindo, ele fez com que o Espírito de Fogo aparecesse. Rapidamente o espírito, com suas enormes mãos, agarrou Mei-ann e trouxe-a para perto de Hao, que estava sentado em seu ombro, observando a garota como um adulto que observa com curiosidade as travessuras de uma criança. Mei-ann, com um estranho golpe de energia, conseguiu se soltar do Espírito de Fogo e destruir a mão que a agarrava, caindo no chão ofegante.
Uma espada conjurou-se em suas mãos, e ela atacou. Não o Espírito de Fogo, mas Hao. No entanto, o Espírito foi mais rápido e conseguiu proteger seu mestre, agarrando-a mais uma vez. E mais uma vez ela se soltou, mais uma vez o Espírito de Fogo se feriu, recompondo-se logo em seguida. Mais uma vez ela caiu no chão, e mais uma vez ela se preparou para atacar.
Yoh e Anna, lado a lado, observavam a luta atentamente, silenciosamente. Então Yoh olhou para sua ex-noiva, e quebrou o silêncio:
- Está torcendo para quem?
- Como? - perguntou ela, aparentemente entediada e desinteressada.
- Para quem está torcendo? - ele sorria, e ela não conseguiu resistir àquele sorriso que ela ainda amava tanto. Evitou os olhos dele, mas respondeu:
- Não adianta nada torcer. Não estou torcendo.
- Mas quem você quer que ganhe?
- Hao. - disse ela, sem hesitar.
- Você não tem...Não tem nenhum sentimento pela sua irmã?
- Não. Para ser sincera, não me lembro muito bem dela e...E mesmo que lembrasse, não poderia deixar de querer que Hao vença. Ele me ajudou quando eu estava...
- Anna...Por que você...
- Não sei explicar. Agora cale-se, Yoh. Vamos assistir à luta.
E ele se calou.
Não sabia explicar porque, mas não conseguiu deixar de obedecer mais uma vez às ordens de Anna. Era sempre assim. Ela ordenava, ele obedecia. Por mais que quisesse falar com ela, por mais que quisesse entendê-la, não pôde deixar de mais uma vez fazer o que ela queria. Voltou seus olhos para a luta.
Os dois lados tinham perdido muito. Mei-ann estava ofegante, suas roupas chamuscadas e seu longo cabelo dourado queimado nas pontas. Hao ofegava um pouco também, o usual sorriso esquecido, o ombro direito ferido. E então algo aconteceu.
Como se sua energia estivesse sendo sugada, Mei-ann caiu no chão, deu alguns passos para frente, e caiu no chão.
Hao observava a garota caída tristemente.
Anna prendeu a respiração.
E Yoh não pôde acreditar em seus olhos onde lágrimas começavam a se formar.
Mas não havia como ignorar a ausência da forte energia de Mei-ann.
Não havia como ignorar sua face pálida, seu corpo que não ofegava mais.
Não havia como ignorar os olhos fechados, em paz finalmente.
---
Eu fiz.
Eu realmente fiz.
Eu não queria fazer isso, mas acabei fazendo, e não vou mudar nem uma vírgula desse capítulo. Nos últimos capítulos andava fugindo um pouco do roteiro original, mas agora...Agora eu resolvi mandar o roteiro original pros ares, e matei a Mei-ann. Não tenho a menor idéia do que me levou a fazer isso, e também não sei como vou fazer para terminar a história. Ela deveria terminar com a Liberté e a Mei-ann unindo suas forças para derrotar o Hao, mas hoje eu resolvi que não gostava desse final, e mudei tudo.
Isso significa, obviamente, que os próximos capítulos vão demorar ainda mais. Pobres de vocês, leitores.
Gostaria de falar um pouco mais de Mei-ann, e da minha história.
A princípio, era uma história muito simples. O Yoh dava um fora na Anna. O Ren ajudava-a, e propunha vingança. A Anna aceitava. Os dois garotos lutavam, e o Yoh perdia. Então a Mei-ann (que na época em que eu elaborei essa história ainda era Marian) chegava, e animava o Yoh. O Yoh lutava contra o Ren mais uma vez, vencia, e era feliz para sempre com a Anna.
Isso mesmo. A Mei-ann animava alguém. Originalmente ela era uma garota poderosa que sonhava em ser Rainha Xamã. Uma garota muito alegre, comilona e sociável. E que terminava com o Horohoro. Mesmo as roupas dela eram engraçadas e espalhafatosas (uma saia roxa com várias fitas coloridas penduradas, um chapéu daqueles de turista, uma camiseta preta e meias laranjas com estampas coloridas).
Mas no dia em que eu sentei para escrever o segundo capítulo dessa história, estava me sentindo um tanto quanto depressiva, e foi aí que a história virou o que vocês podem ver agora. Uma grande mudança.
Eu já passei da depressão, mas só consegui fazer com que a história ficasse ainda mais dramalhão mexicano. De qualquer forma, acho melhor terminar essa nota, que está mais parecendo uma Bíblia.
Agradeço à todos que me mandaram reviews, principalmente à Akari-chan. O seu apoio me ajudou bastante a continuar a escrever.
Lady Macbeth
Ela olhava pela janela com sua habitual expressão - ou falta de expressão - fitando a chuva sem realmente vê-la. O quarto iluminado lançava luz e sombra em seu rosto belo e pálido. O rosto que seu amo amava. O rosto que tornava seu amo cada vez mais distante, mais estranho. O rosto que ele mesmo nunca poderia amar, ou mesmo respeitar.
- Senhorita Anna? - a voz era polida, infantil e gentil, mas a falsidade nela era óbvia. Sabia que a jovem estava ouvindo, então não esperou uma resposta - Há uma pessoa lá embaixo, querendo falar com o mestre Hao.
- E por que veio falar comigo?
- Bem...O mestre Hao com certeza vai querer ver essa tal garota. Mas...Eu não sei se ele deve.
Anna desviou o olhar da chuva para Opacho, que a observava com expectativa e insegurança transparecendo em seus grandes olhos infantis.
- Por quê?
- Essa menina...Parece perigosa, Senhorita Anna. Ela está suja de sangue, de lama...E parece decididamente perigosa.
- O que você quer que eu faça?
- Bem...A Senhorita poderia vê-la...
A garota suspirou, mas não disse nada. Levantou-se e saiu do quarto, seguida pelo olhar de Opacho. Caminhou tranqüilamente pela casa ocupada por Hao e seus aliados, parando na porta que dava para o aposento onde podia sentir a energia da tal garota.
Ela já tinha sentido aquela energia antes. A garota que estava no grupo de Yoh.
Estranho. Em tão pouco tempo já tinha sido capaz de falar de Yoh com distância e segurança, como se fosse alguém que ela mal conhecia. E não a única pessoa que fora capaz de tocar seu coração.
Entrou no aposento. De pé, no meio dele, estava Liberté, observando-a com desprezo.
- Achei que tivesse dito que queria ver Hao, e não um de seus subordinados. A não ser que ele seja covarde a ponto de ter medo de me encarar.
- Opacho pediu que eu viesse ver quem era. Tem medo de que Hao se machuque.
- Não vim para machucar Hao. Não agora, pelo menos.
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Pararam em frente à casa que Hao estava ocupando. Não tinha sido difícil encontrá-la - a energia que emanava era tão grande que não havia como confundir. Pertencia a Hao.
Mei-ann virou-se para Yoh, que estava atrás dela, e observou-o atentamente, seriamente. Por fim, disse:
- Yoh, eu avisei. Eu disse que você não precisava vir. Mas você quis. Antes, no entanto, tenho que te contar uma coisa.
- Por está tão séria, Mei-ann? - disse Yoh. Seu rosto era sério, mas era também muito calmo. Tão calmo que parecia estar sorrindo.
- Pode ter certeza de que não vai gostar do que vai ouvir agora. Mas é melhor que saiba antes.
- O quê? - perguntou ele, ainda muito calmo.
- A Anna. Ela não sumiu. Ela não voltou para casa. Ela não voltou para o monte onde vivem as outras bruxas. Ela está aqui.
- Na aldeia do Patch? E por que não avisou antes, Mei-ann? - disse ele, sorrindo - gostaria de encontrá-la novamente!
- Seu idiota. Quando eu disse aqui, não quis dizer que ela está na aldeia. Quis dizer que ela está aqui, nessa casa. Relaxe e sinta você mesmo a energia dela.
Yoh olhou para Mei-ann confuso. Olhou para a casa, tentando sentir a energia de sua ex-noiva. Tudo o que conseguiu foi sentir a poderosa energia de Hao, mas mesmo assim, não duvidou de Mei-ann. Anna estava...Com Hao.
- Temos que salvá-la também, mestre Yoh! Se esse maldito Hao seqüestrou a nossa Anna, devemos pegá-la de volta! - disse Ryuu, entusiasmado. Ele sentia a falta da presença da garota, mesmo que ela se esforçasse tanto para ser séria e antipática. Mesmo assim, ele sentia a sua falta, e se sentiu muito estranho quando os dois jovens olharam para ele com olhos cheios de tristeza. Foi Yoh que quebrou o silêncio, falando muito baixo.
- A Anna não foi seqüestrada pelo Hao, Ryuu. Ela está com ele porque quer. E a culpa é toda minha.
Mei-ann lançou um olhar de tédio para Yoh, e então virou as costas para ele.
- Hora de entrar.
---
Lyserg olhava atentamente para a Donzela de Ferro. O aposento estava tão silencioso que ele podia ouvir a respiração da garota lá dentro. Fechando os olhos ele quase podia vê-la, os olhos vermelhos e gentis, a pele muito clara e delicada...
Nunca antes tinha conseguido ficar tão próximo a ela. Geralmente, quando estava ali, era acompanhado por Marcos. Mas agora...Agora era diferente. Somente eles dois, naquele silêncio sagrado, mítico, e que ele estava prestes a destruir.
- Senhorita Jeanne?
Não houve resposta, mas mesmo assim ele continuou.
- Falei com a menina, como disseram que deveria fazer. No entanto...Não deu certo. Ela não quis se unir a nós. Diz que não conhecemos Hao e que não se importa em ser amaldiçoada, não se importa com a Justiça. Ela é tão...Diferente. Sinto muito, Senhorita Jeanne. Não consegui ajudá-los nem mesmo a arranjar mais alguém para o nosso grupo. Eu...Sinto muito, Senhorita Jeanne.
A jovem dentro da prisão de ferro não fez um único movimento. Seus olhos não piscaram, seus lábios não se abriram. Mas Lyserg pôde sentir, de alguma forma, mãos percorrendo o caminho entre seus cabelos, até seu pescoço. Mãos puxando-o delicadamente, e abraçando-o gentilmente. E então ele sentiu um beijo na face. Tão delicado e etéreo quanto o abraço, mas ainda sim um beijo.
---
Anna virou as costas para Liberté. Podia sentir várias pessoas se aproximando apressadas, esquentadas, desprendendo uma energia poderosa, uma energia familiar. Três pessoas entraram no grande aposento, sem se preocuparem com educação ou discrição. Estavam molhadas, sujas de sangue e lama da cabeça aos pés, e nos olhos vinham a determinação e a coragem. A única garota do grupo afastou os longos cabelos dourados do rosto e disse, com a usual voz dura e objetiva:
- Anna, avise a Hao que eu também estou aqui. Vá agora, pois não temos tempo a perder.
A irmã mais nova não disse nada. Observou os recém chegados com uma expressão indefinível, que misturava dor, nostalgia, nojo e desprezo. Ainda sem dizer nada, virou-se e olhou impiedosamente para a criança que espiava os recém chegados meio escondida pela porta.
- Opacho, vá chamar Hao. Agora.
- Opacho não vai chamar Hao. Essas pessoas são perigosas, e Opacho não quer ver o mestre Hao machucado.
- Seu mestre ficará muito aborrecido, Opacho, se descobrir que não foi chamado a receber pessoas tão importantes. Ficará muito aborrecido, e a culpa terá sido sua.
O pequeno corpo a quem pertencia a voz partiu de seu esconderijo, provavelmente indo avisar seu mestre dos recém chegados.
Mei-ann passou direto por sua irmã mais nova, andando decidida em direção à Liberté. Yoh e Ryuu pareciam ainda não ter reparado nisso. Observavam os dois a jovem que um dia fizera parte de seus dias. Tão mudada e estranha. Sempre tinha sido séria, rigorosa e exigente, mas nunca tinha olhado-os com aquele olhar tão estranho. Nunca tinha ignorado-os. Nunca tinha parecido tão distante, tão inatingível, tão inexpressiva.
Mei-ann não se importava com isso. Não ligava para a irmã, há muitos anos que não convivia com ela e tinha algo mais importante a fazer. Tinha que salvar alguém. Dirigiu-se a Liberté, falando numa voz baixa demais para os outros ouvirem.
- Liberté...O que diabos você está fazendo aqui? - sua voz era irritada, e era a primeira vez que Liberté via Mei-ann abrir a boca para fazer uma pergunta cuja resposta era óbvia.
- Por que pergunta se sabe a resposta? Eu vim ver Hao.
- Agora? Não seja estúpida, você tem que ficar muito mais forte do que já é para conseguir vencê-lo. Ele vai te matar.
- Você é surda? Eu não disse que vim lutar com o Hao. Disse que vim vê-lo.
- E por que quer fazer isso?
- Por que eu... - e ela parecia um tanto quanto insegura ao dizer isso - Eu não...Não sei se realmente odeio Hao, agora. Eu mudei, estou estranha. Não dá para falar disso agora, mas...Estou mudada. O meu ódio por Hao era o que me fazia sobreviver, mas...Agora...As coisas mudaram.
- Então você tem algo ou alguém que ama o suficiente para impedi-la de morrer lutando contra ele. - e a voz de Mei-ann se elevou um pouco ao dizer isso. Yoh desviou os olhos de Anna, e passou a observar as outras duas garotas.
- É...Deve ser isso. - disse Liberté, ainda insegura.
- E é idiota o suficiente para querer reavivar esse ódio horrível, que te consome, que impede que você seja feliz? Você é burra, ou algo do tipo? Vá embora agora, Liberté. Vá embora antes que o ódio possa voltar, e impedi-la de ser feliz. Vai logo.
Dúvida passou dentro da mente de Liberté. Seu lado mais rebelde revoltou-se contra Mei-ann, dizendo-lhe que não tinha que aceitar ordens de ninguém. Era independente, e fazia o que queria. Seu lado que odiava Hao, o lado que predominara em sua personalidade por todos aqueles anos, disse que Mei-ann estava errada. Ela nunca poderia ser feliz com Hao vivo.
Mas aqueles dois lados dela ela já conhecia. No entanto, um outro lado, uma outra faceta sua que ela desconhecia, falou em sua mente. Falou que Mei-ann estava certa. Falou que Hao seria castigado mais cedo ou mais tarde, e que ela não devia mais se prender a ele. Falou que ela devia voltar e pedir desculpas a alguém. E tentar ser feliz com esse alguém.
Esse lado pegou-a de surpresa. E a surpresa foi grande o suficiente para que ela o ouvisse. Para que ela o seguisse. Para que ela engolisse o orgulho e o resto do ódio que havia dentro dela. Para que ela começasse a andar em direção às portas de saída do aposento.
E então as portas se abriram, e alguém entrou. Antes mesmo que entrasse, todos ali já sabiam quem era. Sua energia era forte demais para passar desapercebida. Mei-ann prendeu a respiração, Anna ergueu a cabeça imperceptivelmente, Yoh e Ryuu fitaram a porta com curiosidade. E Liberté continuou andando.
Quando Hao entrou no aposento, seus olhos imediatamente se colocaram sobre a garota tão familiar para ele. Seus olhos se colocaram sobre ela, esperançosos, querendo conversar com ela, descobrir quem ela era. No entanto, a esperança se transformou em decepção quando ela passou direto por ele, evitando seus olhos.
Ela passou direto e, esforçando-se ao máximo para evitar que qualquer pensamento cruzasse sua cabeça, saiu para a noite chuvosa.
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Assim que as portas se fecharam às costas da garota, o olhar de Hao voltou-se para Mei-ann.
- Então você voltou. Eu imaginava que voltaria. Estava com saudades, Mei-ann.
- Voltei para te matar, Hao. Prepare-se, porque eu vou lutar a sério, e espero que você lute também.
- Mas minha querida Mei-ann, se eu lutar a sério contra você, vai morrer. E eu não quero que você morra.
- Você ficaria surpreso, Hao. Chame logo seu espírito.
- Chame o seu primeiro. Eu sei que você sempre demora muito para incorporá-lo, não? Antes de incorporá-lo você precisa encontrá-lo, não é? Ele nunca está com você, afinal de contas. Você ainda precisa fazer a prece que abre as portas do inferno, não é?
Mei-ann olhou irritada para Hao, e desenrolou dos pulsos escondidos pelas mangas da blusa social muito larga para ela um colar que se parecia muito com o da própria Anna, que se pôs a olhar com interesse. Mei-ann fechou os olhos e fez sua prece numa voz tão baixa que apenas os ouvidos de Hao entenderam.
- Portões que guardam os mistérios do inferno, ouçam meus apelos e abram-se para mim.
Deixem-me perscrutar sua escuridão, buscando nela aquilo que sou.
Deixem-me trazer para a luz meu poder, meu servo, meu espírito.
O espírito de Mei-ann surgiu, e Hao disse com a voz zombeteira:
- Muito bonita a sua prece, Mei-ann. E realmente impressionante seu pequeno espírito. Vejo que estava falando sério. Então teremos que lutar. Não se deve deixar uma dama esperando, não é mesmo?
Sorrindo, ele fez com que o Espírito de Fogo aparecesse. Rapidamente o espírito, com suas enormes mãos, agarrou Mei-ann e trouxe-a para perto de Hao, que estava sentado em seu ombro, observando a garota como um adulto que observa com curiosidade as travessuras de uma criança. Mei-ann, com um estranho golpe de energia, conseguiu se soltar do Espírito de Fogo e destruir a mão que a agarrava, caindo no chão ofegante.
Uma espada conjurou-se em suas mãos, e ela atacou. Não o Espírito de Fogo, mas Hao. No entanto, o Espírito foi mais rápido e conseguiu proteger seu mestre, agarrando-a mais uma vez. E mais uma vez ela se soltou, mais uma vez o Espírito de Fogo se feriu, recompondo-se logo em seguida. Mais uma vez ela caiu no chão, e mais uma vez ela se preparou para atacar.
Yoh e Anna, lado a lado, observavam a luta atentamente, silenciosamente. Então Yoh olhou para sua ex-noiva, e quebrou o silêncio:
- Está torcendo para quem?
- Como? - perguntou ela, aparentemente entediada e desinteressada.
- Para quem está torcendo? - ele sorria, e ela não conseguiu resistir àquele sorriso que ela ainda amava tanto. Evitou os olhos dele, mas respondeu:
- Não adianta nada torcer. Não estou torcendo.
- Mas quem você quer que ganhe?
- Hao. - disse ela, sem hesitar.
- Você não tem...Não tem nenhum sentimento pela sua irmã?
- Não. Para ser sincera, não me lembro muito bem dela e...E mesmo que lembrasse, não poderia deixar de querer que Hao vença. Ele me ajudou quando eu estava...
- Anna...Por que você...
- Não sei explicar. Agora cale-se, Yoh. Vamos assistir à luta.
E ele se calou.
Não sabia explicar porque, mas não conseguiu deixar de obedecer mais uma vez às ordens de Anna. Era sempre assim. Ela ordenava, ele obedecia. Por mais que quisesse falar com ela, por mais que quisesse entendê-la, não pôde deixar de mais uma vez fazer o que ela queria. Voltou seus olhos para a luta.
Os dois lados tinham perdido muito. Mei-ann estava ofegante, suas roupas chamuscadas e seu longo cabelo dourado queimado nas pontas. Hao ofegava um pouco também, o usual sorriso esquecido, o ombro direito ferido. E então algo aconteceu.
Como se sua energia estivesse sendo sugada, Mei-ann caiu no chão, deu alguns passos para frente, e caiu no chão.
Hao observava a garota caída tristemente.
Anna prendeu a respiração.
E Yoh não pôde acreditar em seus olhos onde lágrimas começavam a se formar.
Mas não havia como ignorar a ausência da forte energia de Mei-ann.
Não havia como ignorar sua face pálida, seu corpo que não ofegava mais.
Não havia como ignorar os olhos fechados, em paz finalmente.
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Eu fiz.
Eu realmente fiz.
Eu não queria fazer isso, mas acabei fazendo, e não vou mudar nem uma vírgula desse capítulo. Nos últimos capítulos andava fugindo um pouco do roteiro original, mas agora...Agora eu resolvi mandar o roteiro original pros ares, e matei a Mei-ann. Não tenho a menor idéia do que me levou a fazer isso, e também não sei como vou fazer para terminar a história. Ela deveria terminar com a Liberté e a Mei-ann unindo suas forças para derrotar o Hao, mas hoje eu resolvi que não gostava desse final, e mudei tudo.
Isso significa, obviamente, que os próximos capítulos vão demorar ainda mais. Pobres de vocês, leitores.
Gostaria de falar um pouco mais de Mei-ann, e da minha história.
A princípio, era uma história muito simples. O Yoh dava um fora na Anna. O Ren ajudava-a, e propunha vingança. A Anna aceitava. Os dois garotos lutavam, e o Yoh perdia. Então a Mei-ann (que na época em que eu elaborei essa história ainda era Marian) chegava, e animava o Yoh. O Yoh lutava contra o Ren mais uma vez, vencia, e era feliz para sempre com a Anna.
Isso mesmo. A Mei-ann animava alguém. Originalmente ela era uma garota poderosa que sonhava em ser Rainha Xamã. Uma garota muito alegre, comilona e sociável. E que terminava com o Horohoro. Mesmo as roupas dela eram engraçadas e espalhafatosas (uma saia roxa com várias fitas coloridas penduradas, um chapéu daqueles de turista, uma camiseta preta e meias laranjas com estampas coloridas).
Mas no dia em que eu sentei para escrever o segundo capítulo dessa história, estava me sentindo um tanto quanto depressiva, e foi aí que a história virou o que vocês podem ver agora. Uma grande mudança.
Eu já passei da depressão, mas só consegui fazer com que a história ficasse ainda mais dramalhão mexicano. De qualquer forma, acho melhor terminar essa nota, que está mais parecendo uma Bíblia.
Agradeço à todos que me mandaram reviews, principalmente à Akari-chan. O seu apoio me ajudou bastante a continuar a escrever.
Lady Macbeth
