Capítulo 14 - Afastar
A lápide de pedra fria, cinzenta e molhada, não possuía qualquer inscrição. Um nome, uma data, nada. No entanto, podia sentir que o corpo que repousava na terra que pisava naquele momento tinha pertencido a uma pessoa cuja morte não tinha passado em branco. Fechando os olhos, ela podia sentir, quase tocar, a aura de tristeza, melancolia e esperança que ali pairavam. Lágrimas tinham sido derramadas sobre o túmulo onde repousava, pura, bela e solitária, uma única flor branca. Algumas daquelas lágrimas pertenciam a uma pessoa que conhecia sua irmã desde sempre. Outras tinham sido vertidas por olhos que raras vezes tinham visto antes a garota que, mesmo depois de morta, continuava fazendo com que ela, Anna Kyôyama, se sentisse pequena e fraca.
Muitas pessoas que mal a conheciam tinham chorado pela sua morte. Mas ela, sua própria irmã, não conseguia verter uma lágrima sequer. Não conseguia sentir tristeza pela morte da irmã, e aquele era um fato consumado.
No entanto, uma culpa terrível, maior que o céu e o mar, a consumia. Ela estava ao lado daquele que tinha matado sua irmã e que, sem qualquer remorso mataria aquele que, apesar de tudo, ela não conseguia deixar de amar. Por isso, por causa daquela culpa enorme, ela tinha ido visitar o túmulo da irmã.
Perguntou-se se quando morresse sua morte seria sentida por tantas pessoas. Não soube responder. Nunca imaginara que a irmã, uma pessoa tão fria, tivesse realmente feito diferença na vida de alguém.
A não ser, é claro, na de Yoh.
Talvez fosse essa a razão pela qual ela odiava tanto a irmã. Sempre, não importasse o que ela tentasse fazer, Mei-ann seria melhor, mais amada, mais admirada. E assim tinha sido com Yoh que, apesar de sempre ter sido gentil com ela, obviamente sentia algo muito especial por sua irmã.
Talvez o sentimento tivesse passado, talvez não. De qualquer forma, não importava.
Lançando um olhar frio ao túmulo da irmã, deixou cair uma flor amarela, que caiu suavemente ao lado da flor branca que tinha sido deixada lá mais cedo.
E então foi embora. Sem dizer uma única palavra, sem olhar para trás uma única vez. Como só duas pessoas no mundo podiam fazer. E uma delas, é claro, estava morta.
---
Foi subindo as estreitas escadas que o levariam ao andar onde ficava o quarto dela. Era engraçado como aquela pensão parecia não ter ninguém além do grupo do Yoh. Quando alcançou o último degrau, quase escorregou nos degraus molhados. Yoh estava ali, olhando para ele com aquele eterno sorriso gentil.
- Olá, Lyserg. Que surpresa vê-lo aqui!
- Eu...Eu só vim ver a Liberté. – gaguejou ele, nervoso.
- Ah...Soube que vocês dois têm conversado bastante. Boa conversa pra você! – disse Yoh, descendo os degraus calmamente.
- Que coisa... – murmurou Lyserg – A garota acabou de morrer e lá está ele, todo alegre.
- O Yoh é uma pessoa muito forte. – disse uma voz calma e carinhosa atrás dele. Ao ouvir a voz de Liberté, Lyserg quase caiu da escada, mas foi segurado por ela.
Liberté sorriu e, ainda segurando o braço de Lyserg, foi andando na direção de seu quarto. Entraram os dois, e ela fechou a porta cuidadosamente.
- Como vai, Lyserg?
- Vou bem. Soube que vocês tiveram bastante dificuldade na sua última luta. Você está bem?
Uma nuvem de dor e melancolia passou pelos olhos de Liberté, mas desapareceu imediatamente, para dar lugar a um sorriso sereno.
- Realmente, foi bastante difícil. Eu certamente não estava preparada para lutar contra aquele tipo de poder. Mas acho que...Acho que se essa luta tivesse acontecido há algum tempo atrás, eu teria realmente perdido.
- E por que não agora? O que mudou?
- Ah...Mudou tudo. – ela deu um sorriso, e fez um gesto vago.
- Como assim?
- Bem...Você está na luta dos xamãs para matar o Hao, não é? Só por que ele matou os seus pais, não é?
- Sim...E achei que com você também era assim.
- É, era assim mesmo. Só que mudou, entende? Não quero mais matar Hao, pelo menos não por meus pais. Mesmo que eu o mate, mesmo que eu queira matá-lo, esse deixou de ser o objetivo principal da minha vida.
- E qual é o objetivo principal da sua vida, agora?
- Ah... – e ela corou furiosamente – Bem...Eu conheci uma pessoa muito especial. Acho que é a pessoa que eu mais amo, sabe? E por ela...Eu quero viver. Quero viver e ser feliz, para poder vê-la para sempre. Mesmo que essa pessoa não me ame, e nem queira ficar comigo, vê-la já é um motivo grande o suficiente para que eu...Eu esqueça um pouco dessa história de matar o Hao.
- A pessoa que você mais ama...Como você sabe que essa pessoa é realmente a pessoa que você mais ama?
- Eu não sei. Mas eu sinto. E isso é o suficiente. – disse ela, sorrindo, um pouco corada – Você não conhece alguém assim? Alguém que faz com que você sinta que, com ela, tudo muda?
Foi a vez de Lyserg corar. Ele não respondeu nada, mas dentro de sua cabeça mil pensamentos fervilhavam, exigindo explicação. Mas para obter uma explicação, precisaria expô-los a alguém. E ele não queria. Aquilo, aquela parte de sua mente e de seu coração eram só dele, pelo menos por enquanto. Por fim, ele sorriu para Liberté e se levantou para sair.
- Lyserg?
- O que foi? – perguntou ele, virando-se para encarar Liberté.
- Se você...Quando você descobrir quem é essa pessoa, e não quiser mais matar o Hao...Então que tal se juntar ao grupo do Yoh? Eles precisam arranjar alguém logo, ou serão desclassificados.
Lyserg sorriu mais uma vez para Liberté e, com a imagem de uma certa garota de olhos cor de sangue na mente, saiu andando tranqüilamente na chuva.
---
Liberté suspirou. Aquelas conversas com Lyserg cansavam, e muito. Levantou-se, passando a mão delicadamente pelas dobras do tecido delicado do vestido preto. Era a última roupa limpa que tinha, já que todas as suas outras, apesar de lavadas, não conseguiam secar naquele clima úmido. Não gostava muito daquele vestido, delicado e elegante demais para ela. No entanto, ao olhando-se no espelho, tinha que admitir que ficava bem nele.
Desceu as escadas da pensão e foi até a varanda. Mesmo que tudo estivesse coberto pela grossa cortina cinzenta da chuva, precisava ver algo além das paredes descascadas de seu quarto e tomar algum ar puro, mesmo que fosse o ar carregado de podridão daquela chuva tão estranha.
- Veio aproveitar um pouco de ar puro? – perguntou a dona da pensão, uma senhora chinesa bastante rechonchuda que estava sentada num banquinho olhando para um cronômetro com um ar bastante cômico.
- É... – respondeu Liberté, hesitante – Estava me sentindo um pouco presa no quarto.
- Imagino...Essa chuva que não deixa a gente sair é impossível, não é mesmo? – perguntou de modo simpático a velha, tentando puxar assunto.
- É bem chata. Eu até gosto de chuva, principalmente nessa aldeia tão quente. Mas...
- Eu sei. É uma chuva estranha. – disse a velha pensativa – e sabe o que é mais estranho ainda? Andam dizendo que há um local que a chuva não alcança.
- Sério? Que lugar?
- A área em volta daquele grande lago que dá vista para o Grande Espírito. Muito estranho. As pessoas andam com medo de ir lá, mesmo que a tentação de ver um pouco de sol seja grande. Eu não vou. Sabe-se lá o que pode acontecer nesses tempos tão estranhos...Andam dizendo que nunca morreu tanta gente na Luta dos Xamãs antes.
Liberté não respondeu. Deu um sorriso sereno para a velha, e saiu para a chuva. Na direção do grande lago que dava vista para o Grande Espírito.
---
As pesadas gotas de chuva machucavam a sua pele e seu corpo exausto pedia descanso, mas ele continuava a correr. Em sua última luta, tinha sentido uma delicada perda de força. Afinal, ele tinha ficado um bom tempo sem treinar. Mas agora ia compensar. A boa senhora que cuidava da pensão onde estava hospedado com os outros tinha concordado em ajudá-lo cronometrando suas corridas, já que não tinha muito que fazer durante o dia.
Corria distraído, sem reparar na paisagem à sua volta. Antes que pudesse perceber, bateu de cara numa pobre pessoa que caminhava distraidamente pelas ruas.
Rapidamente ele segurou a pessoa pelos pulsos e a trouxe para mais perto de si, evitando que ela caísse. Não podia ver com clareza quem era por causa da chuva, mas conhecia há muito tempo aquela energia para confundi-la com a de outra pessoa. Sabia quem era pelo cheiro, pelo barulho da respiração, pela grossura dos pulsos, pelo calor da pele. Trouxe-a ainda mais para perto, absorvendo desesperadamente os traços delicados, os cabelos dourados, os olhos sérios de que tanto sentira falta.
Quanto a ela, estava paralisada. A influência dele, que julgava ter-se esvaído como água entre os dedos, continuava ali, mais forte do que nunca, machucando, agoniando, mexendo com seus nervos, fazendo sua pele ficar mais quente naquela estranha e agradável febre.
A proximidade do rosto dela era perturbadora. Como ela conseguia fazer aquilo? Como ela conseguia fazer com que ele se sentisse tão estranho perto dela? Como ela conseguia fazer com que seus lábios parecessem tão quentes, tão convidativos, tão perfeitos? Como ela fazia com que ele se sentisse tão quente por dentro, tão feliz, tão maravilhado?
- Anna... – disse ele. Gostava daquele nome, pequeno e suave, nome que podia ser dito num suspiro.
Foi como se o encanto se quebrasse. Ela, a muito custo, se soltou de seus braços protetores e olhou-o com o máximo de desprezo que conseguiu juntar. O que resultou num olhar que era mais de tristeza do que de superioridade.
- Anna...Já faz bastante tempo...Desde a última vez que nos vimos.
- Não seja idiota. Nos vimos outro dia, quando Mei-ann lutou contra Hao. – ela permaneceu fria e distante, mas não conseguiu evitar que seus lábios tremessem um pouco.
- Mas tanta coisa aconteceu...Parece que foi há tanto tempo... - disse ele, sorrindo. Sorrindo para ela, um sorriso todo especial. Ela tremeu ao ver aquele sorriso, e desviou o olhar. Sem conseguir dizer alguma outra coisa. Distanciou-se dele e voltou a andar em direção ao seu destino.
Quando sua forma já estava se desaparecendo por entre a pesada cortina cinzenta da chuva, ele gritou, com sua habitual voz alegre e despreocupada:
- Hei, Anna! Não pense que esse é o fim! A gente ainda vai se ver de novo!
Ela parou de andar, mas ele não viu. Ele simplesmente continuou a treinar.
Ele tinha uma razão para treinar, uma razão para querer vencer. Tal razão tinha um pouco de vingança, tinha um pouco de tentar evitar que Hao machucasse mais pessoas.
Mas, acima de tudo, a razão era que agora ganhar a luta significava ganhar uma outra coisa.
---
O vento limpo e fresco balançava seus cabelos e suas roupas delicadamente, dando à sua figura uma mobilidade estranha, como se estivesse dentro da água, afundando devagar, sem pressa, sem medo. No entanto, estava imóvel, os olhos escuros fechados, o rosto virado para o céu azul, aproveitando o sol morno que aquecia a sua pele. O único barulho que podia perceber era o da brisa na grama e o marulhar suave das águas do lago.
Não pensava em nada. Estava, pelo menos por alguns segundos, dando férias a si mesma. Férias de si mesma. Nem Hao, nem Ren, nem vingança, nem amor. Apenas vazio. Não o vazio aterrador da solidão e do desespero, mas o agradável vazio da paz.
- Aproveitando o sol?
Surpresa, abriu os olhos e fitou atentamente o adulto ao seu lado. Nunca o levara a sério, com seus costumes tolos, suas maneiras de criança e seu cabelo engraçado. Mas era um adulto, afinal. E tinha sido com a serenidade de um adulto que ele falara. E era com a sabedoria e experiência de um adulto que ela a olhava agora. Com pena e simpatia.
- Coisas demais na cabeça? – perguntou ele.
- Mais ou menos. – disse ela.
- Vocês, jovens...
- O quê?
- Sempre com pressa, querendo resolver tudo ao mesmo tempo. Não conseguem entender que é preciso resolver uma coisa de cada vez. Cada coisa a seu tempo.
- Não é fácil. Dá medo. E se amanhã eu morrer numa luta? Não vou ter alcançado meus sonhos, aproveitado o que podia, vivido o que queria. – ao ouvir isso, Ryuu abriu um grande sorriso e respondeu.
- E daí? Você vai estar morta, não vai fazer diferença alguma. Você devia se preocupar menos com o que fez ou com o que precisa fazer. Apenas faça, uma coisa de cada vez.
- Como?
Ryuu parou de sorrir e olhou atentamente para a garota. Tinha olheiras profundas debaixo dos olhos, pálpebras avermelhadas de tanto chorar, corpo fragilizado pela vontade tão pequena de viver.
- Uma coisa de cada vez. Só isso. Descubra qual a sua prioridade e deixe o resto para depois.
- E como eu posso descobrir qual é a minha prioridade?
- Afaste-se do turbilhão em que está vivendo. Para pensar direito, você precisa, acima de tudo, de calma.
- Me afastar... – disse ela, hesitante – Não sei se consigo.
- Consegue sim. Confie mais em si mesma. E tudo vai dar certo.
Liberté não respondeu. Deixou escapar um pequeno sorriso, um sorriso de agradecimento. E então, abandonou a tranqüilidade e a paz do lugar.
Estava se afastando.
---
Oi!
Bem, esse capítulo chegou bem rápido. Então, quem falar que demorou leva porrada! XD
Pessoalmente, gostei bastante desse capítulo. Tive a idéia agora a pouco e aí sentei pra escrever que nem louca. Não ficou muito pequeno, nem muito grande. Achei o tamanho ideal. E resolvi botar o Ryuu pra fazer alguma coisa na história, coitado. Afinal, achei que tava faltando alguém com experiência pra dar conselhos.
Enfim, está aí. Espero que gostem. esse capítulo finalmente me tirou do bloqueio. Estou tão cheia de idéias para o fim que nem sei qual usar. Talvez escolha a que me leve a um final mais rápido, por estar meio cansada dessa fic. Ou talvez escolha a que me levar ao fim mais lentamente. Afinal, o que eu vou fazer da vida quando acabar com isso aqui?
Complicado, complicado.
Deixem reviews!
Lady Macbeth
A lápide de pedra fria, cinzenta e molhada, não possuía qualquer inscrição. Um nome, uma data, nada. No entanto, podia sentir que o corpo que repousava na terra que pisava naquele momento tinha pertencido a uma pessoa cuja morte não tinha passado em branco. Fechando os olhos, ela podia sentir, quase tocar, a aura de tristeza, melancolia e esperança que ali pairavam. Lágrimas tinham sido derramadas sobre o túmulo onde repousava, pura, bela e solitária, uma única flor branca. Algumas daquelas lágrimas pertenciam a uma pessoa que conhecia sua irmã desde sempre. Outras tinham sido vertidas por olhos que raras vezes tinham visto antes a garota que, mesmo depois de morta, continuava fazendo com que ela, Anna Kyôyama, se sentisse pequena e fraca.
Muitas pessoas que mal a conheciam tinham chorado pela sua morte. Mas ela, sua própria irmã, não conseguia verter uma lágrima sequer. Não conseguia sentir tristeza pela morte da irmã, e aquele era um fato consumado.
No entanto, uma culpa terrível, maior que o céu e o mar, a consumia. Ela estava ao lado daquele que tinha matado sua irmã e que, sem qualquer remorso mataria aquele que, apesar de tudo, ela não conseguia deixar de amar. Por isso, por causa daquela culpa enorme, ela tinha ido visitar o túmulo da irmã.
Perguntou-se se quando morresse sua morte seria sentida por tantas pessoas. Não soube responder. Nunca imaginara que a irmã, uma pessoa tão fria, tivesse realmente feito diferença na vida de alguém.
A não ser, é claro, na de Yoh.
Talvez fosse essa a razão pela qual ela odiava tanto a irmã. Sempre, não importasse o que ela tentasse fazer, Mei-ann seria melhor, mais amada, mais admirada. E assim tinha sido com Yoh que, apesar de sempre ter sido gentil com ela, obviamente sentia algo muito especial por sua irmã.
Talvez o sentimento tivesse passado, talvez não. De qualquer forma, não importava.
Lançando um olhar frio ao túmulo da irmã, deixou cair uma flor amarela, que caiu suavemente ao lado da flor branca que tinha sido deixada lá mais cedo.
E então foi embora. Sem dizer uma única palavra, sem olhar para trás uma única vez. Como só duas pessoas no mundo podiam fazer. E uma delas, é claro, estava morta.
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Foi subindo as estreitas escadas que o levariam ao andar onde ficava o quarto dela. Era engraçado como aquela pensão parecia não ter ninguém além do grupo do Yoh. Quando alcançou o último degrau, quase escorregou nos degraus molhados. Yoh estava ali, olhando para ele com aquele eterno sorriso gentil.
- Olá, Lyserg. Que surpresa vê-lo aqui!
- Eu...Eu só vim ver a Liberté. – gaguejou ele, nervoso.
- Ah...Soube que vocês dois têm conversado bastante. Boa conversa pra você! – disse Yoh, descendo os degraus calmamente.
- Que coisa... – murmurou Lyserg – A garota acabou de morrer e lá está ele, todo alegre.
- O Yoh é uma pessoa muito forte. – disse uma voz calma e carinhosa atrás dele. Ao ouvir a voz de Liberté, Lyserg quase caiu da escada, mas foi segurado por ela.
Liberté sorriu e, ainda segurando o braço de Lyserg, foi andando na direção de seu quarto. Entraram os dois, e ela fechou a porta cuidadosamente.
- Como vai, Lyserg?
- Vou bem. Soube que vocês tiveram bastante dificuldade na sua última luta. Você está bem?
Uma nuvem de dor e melancolia passou pelos olhos de Liberté, mas desapareceu imediatamente, para dar lugar a um sorriso sereno.
- Realmente, foi bastante difícil. Eu certamente não estava preparada para lutar contra aquele tipo de poder. Mas acho que...Acho que se essa luta tivesse acontecido há algum tempo atrás, eu teria realmente perdido.
- E por que não agora? O que mudou?
- Ah...Mudou tudo. – ela deu um sorriso, e fez um gesto vago.
- Como assim?
- Bem...Você está na luta dos xamãs para matar o Hao, não é? Só por que ele matou os seus pais, não é?
- Sim...E achei que com você também era assim.
- É, era assim mesmo. Só que mudou, entende? Não quero mais matar Hao, pelo menos não por meus pais. Mesmo que eu o mate, mesmo que eu queira matá-lo, esse deixou de ser o objetivo principal da minha vida.
- E qual é o objetivo principal da sua vida, agora?
- Ah... – e ela corou furiosamente – Bem...Eu conheci uma pessoa muito especial. Acho que é a pessoa que eu mais amo, sabe? E por ela...Eu quero viver. Quero viver e ser feliz, para poder vê-la para sempre. Mesmo que essa pessoa não me ame, e nem queira ficar comigo, vê-la já é um motivo grande o suficiente para que eu...Eu esqueça um pouco dessa história de matar o Hao.
- A pessoa que você mais ama...Como você sabe que essa pessoa é realmente a pessoa que você mais ama?
- Eu não sei. Mas eu sinto. E isso é o suficiente. – disse ela, sorrindo, um pouco corada – Você não conhece alguém assim? Alguém que faz com que você sinta que, com ela, tudo muda?
Foi a vez de Lyserg corar. Ele não respondeu nada, mas dentro de sua cabeça mil pensamentos fervilhavam, exigindo explicação. Mas para obter uma explicação, precisaria expô-los a alguém. E ele não queria. Aquilo, aquela parte de sua mente e de seu coração eram só dele, pelo menos por enquanto. Por fim, ele sorriu para Liberté e se levantou para sair.
- Lyserg?
- O que foi? – perguntou ele, virando-se para encarar Liberté.
- Se você...Quando você descobrir quem é essa pessoa, e não quiser mais matar o Hao...Então que tal se juntar ao grupo do Yoh? Eles precisam arranjar alguém logo, ou serão desclassificados.
Lyserg sorriu mais uma vez para Liberté e, com a imagem de uma certa garota de olhos cor de sangue na mente, saiu andando tranqüilamente na chuva.
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Liberté suspirou. Aquelas conversas com Lyserg cansavam, e muito. Levantou-se, passando a mão delicadamente pelas dobras do tecido delicado do vestido preto. Era a última roupa limpa que tinha, já que todas as suas outras, apesar de lavadas, não conseguiam secar naquele clima úmido. Não gostava muito daquele vestido, delicado e elegante demais para ela. No entanto, ao olhando-se no espelho, tinha que admitir que ficava bem nele.
Desceu as escadas da pensão e foi até a varanda. Mesmo que tudo estivesse coberto pela grossa cortina cinzenta da chuva, precisava ver algo além das paredes descascadas de seu quarto e tomar algum ar puro, mesmo que fosse o ar carregado de podridão daquela chuva tão estranha.
- Veio aproveitar um pouco de ar puro? – perguntou a dona da pensão, uma senhora chinesa bastante rechonchuda que estava sentada num banquinho olhando para um cronômetro com um ar bastante cômico.
- É... – respondeu Liberté, hesitante – Estava me sentindo um pouco presa no quarto.
- Imagino...Essa chuva que não deixa a gente sair é impossível, não é mesmo? – perguntou de modo simpático a velha, tentando puxar assunto.
- É bem chata. Eu até gosto de chuva, principalmente nessa aldeia tão quente. Mas...
- Eu sei. É uma chuva estranha. – disse a velha pensativa – e sabe o que é mais estranho ainda? Andam dizendo que há um local que a chuva não alcança.
- Sério? Que lugar?
- A área em volta daquele grande lago que dá vista para o Grande Espírito. Muito estranho. As pessoas andam com medo de ir lá, mesmo que a tentação de ver um pouco de sol seja grande. Eu não vou. Sabe-se lá o que pode acontecer nesses tempos tão estranhos...Andam dizendo que nunca morreu tanta gente na Luta dos Xamãs antes.
Liberté não respondeu. Deu um sorriso sereno para a velha, e saiu para a chuva. Na direção do grande lago que dava vista para o Grande Espírito.
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As pesadas gotas de chuva machucavam a sua pele e seu corpo exausto pedia descanso, mas ele continuava a correr. Em sua última luta, tinha sentido uma delicada perda de força. Afinal, ele tinha ficado um bom tempo sem treinar. Mas agora ia compensar. A boa senhora que cuidava da pensão onde estava hospedado com os outros tinha concordado em ajudá-lo cronometrando suas corridas, já que não tinha muito que fazer durante o dia.
Corria distraído, sem reparar na paisagem à sua volta. Antes que pudesse perceber, bateu de cara numa pobre pessoa que caminhava distraidamente pelas ruas.
Rapidamente ele segurou a pessoa pelos pulsos e a trouxe para mais perto de si, evitando que ela caísse. Não podia ver com clareza quem era por causa da chuva, mas conhecia há muito tempo aquela energia para confundi-la com a de outra pessoa. Sabia quem era pelo cheiro, pelo barulho da respiração, pela grossura dos pulsos, pelo calor da pele. Trouxe-a ainda mais para perto, absorvendo desesperadamente os traços delicados, os cabelos dourados, os olhos sérios de que tanto sentira falta.
Quanto a ela, estava paralisada. A influência dele, que julgava ter-se esvaído como água entre os dedos, continuava ali, mais forte do que nunca, machucando, agoniando, mexendo com seus nervos, fazendo sua pele ficar mais quente naquela estranha e agradável febre.
A proximidade do rosto dela era perturbadora. Como ela conseguia fazer aquilo? Como ela conseguia fazer com que ele se sentisse tão estranho perto dela? Como ela conseguia fazer com que seus lábios parecessem tão quentes, tão convidativos, tão perfeitos? Como ela fazia com que ele se sentisse tão quente por dentro, tão feliz, tão maravilhado?
- Anna... – disse ele. Gostava daquele nome, pequeno e suave, nome que podia ser dito num suspiro.
Foi como se o encanto se quebrasse. Ela, a muito custo, se soltou de seus braços protetores e olhou-o com o máximo de desprezo que conseguiu juntar. O que resultou num olhar que era mais de tristeza do que de superioridade.
- Anna...Já faz bastante tempo...Desde a última vez que nos vimos.
- Não seja idiota. Nos vimos outro dia, quando Mei-ann lutou contra Hao. – ela permaneceu fria e distante, mas não conseguiu evitar que seus lábios tremessem um pouco.
- Mas tanta coisa aconteceu...Parece que foi há tanto tempo... - disse ele, sorrindo. Sorrindo para ela, um sorriso todo especial. Ela tremeu ao ver aquele sorriso, e desviou o olhar. Sem conseguir dizer alguma outra coisa. Distanciou-se dele e voltou a andar em direção ao seu destino.
Quando sua forma já estava se desaparecendo por entre a pesada cortina cinzenta da chuva, ele gritou, com sua habitual voz alegre e despreocupada:
- Hei, Anna! Não pense que esse é o fim! A gente ainda vai se ver de novo!
Ela parou de andar, mas ele não viu. Ele simplesmente continuou a treinar.
Ele tinha uma razão para treinar, uma razão para querer vencer. Tal razão tinha um pouco de vingança, tinha um pouco de tentar evitar que Hao machucasse mais pessoas.
Mas, acima de tudo, a razão era que agora ganhar a luta significava ganhar uma outra coisa.
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O vento limpo e fresco balançava seus cabelos e suas roupas delicadamente, dando à sua figura uma mobilidade estranha, como se estivesse dentro da água, afundando devagar, sem pressa, sem medo. No entanto, estava imóvel, os olhos escuros fechados, o rosto virado para o céu azul, aproveitando o sol morno que aquecia a sua pele. O único barulho que podia perceber era o da brisa na grama e o marulhar suave das águas do lago.
Não pensava em nada. Estava, pelo menos por alguns segundos, dando férias a si mesma. Férias de si mesma. Nem Hao, nem Ren, nem vingança, nem amor. Apenas vazio. Não o vazio aterrador da solidão e do desespero, mas o agradável vazio da paz.
- Aproveitando o sol?
Surpresa, abriu os olhos e fitou atentamente o adulto ao seu lado. Nunca o levara a sério, com seus costumes tolos, suas maneiras de criança e seu cabelo engraçado. Mas era um adulto, afinal. E tinha sido com a serenidade de um adulto que ele falara. E era com a sabedoria e experiência de um adulto que ela a olhava agora. Com pena e simpatia.
- Coisas demais na cabeça? – perguntou ele.
- Mais ou menos. – disse ela.
- Vocês, jovens...
- O quê?
- Sempre com pressa, querendo resolver tudo ao mesmo tempo. Não conseguem entender que é preciso resolver uma coisa de cada vez. Cada coisa a seu tempo.
- Não é fácil. Dá medo. E se amanhã eu morrer numa luta? Não vou ter alcançado meus sonhos, aproveitado o que podia, vivido o que queria. – ao ouvir isso, Ryuu abriu um grande sorriso e respondeu.
- E daí? Você vai estar morta, não vai fazer diferença alguma. Você devia se preocupar menos com o que fez ou com o que precisa fazer. Apenas faça, uma coisa de cada vez.
- Como?
Ryuu parou de sorrir e olhou atentamente para a garota. Tinha olheiras profundas debaixo dos olhos, pálpebras avermelhadas de tanto chorar, corpo fragilizado pela vontade tão pequena de viver.
- Uma coisa de cada vez. Só isso. Descubra qual a sua prioridade e deixe o resto para depois.
- E como eu posso descobrir qual é a minha prioridade?
- Afaste-se do turbilhão em que está vivendo. Para pensar direito, você precisa, acima de tudo, de calma.
- Me afastar... – disse ela, hesitante – Não sei se consigo.
- Consegue sim. Confie mais em si mesma. E tudo vai dar certo.
Liberté não respondeu. Deixou escapar um pequeno sorriso, um sorriso de agradecimento. E então, abandonou a tranqüilidade e a paz do lugar.
Estava se afastando.
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Oi!
Bem, esse capítulo chegou bem rápido. Então, quem falar que demorou leva porrada! XD
Pessoalmente, gostei bastante desse capítulo. Tive a idéia agora a pouco e aí sentei pra escrever que nem louca. Não ficou muito pequeno, nem muito grande. Achei o tamanho ideal. E resolvi botar o Ryuu pra fazer alguma coisa na história, coitado. Afinal, achei que tava faltando alguém com experiência pra dar conselhos.
Enfim, está aí. Espero que gostem. esse capítulo finalmente me tirou do bloqueio. Estou tão cheia de idéias para o fim que nem sei qual usar. Talvez escolha a que me leve a um final mais rápido, por estar meio cansada dessa fic. Ou talvez escolha a que me levar ao fim mais lentamente. Afinal, o que eu vou fazer da vida quando acabar com isso aqui?
Complicado, complicado.
Deixem reviews!
Lady Macbeth
