Capítulo 16 – Noite Feliz

Esfregou os braços, tentando se aquecer. Devagar, foi até a janela e afastou as cortinas. Olhou a rua comprida e vazia, os hotéis, restaurantes e casas iluminadas, parecendo alegres e acolhedores.

Não é que não gostasse do Natal. Ela gostava. Gostava do que simbolizava, das comemorações, de toda a alegria geralmente presente naquele dia. Mas não gostava das lembranças que aquele dia trazia. Naquele dia, em que todas as famílias geralmente se reuniam e trocavam presentes, ela sempre ficava sozinha. Afinal, não tinha família.

Sacudiu a cabeça, tentando afastar aqueles pensamentos tristes da cabeça. Esfregou mais uma vez os braços nus, sentindo o corpo tremer um pouco. Ali, no meio do deserto, não tinham neve nem mesmo no Natal, mas o frio era tanto que ela não estranharia se de repente pequenos flocos brancos começassem a cair do céu. Foi até a sua sacola e pegou um pouco do dinheiro que antes pertencia à sua família.

Saiu para a rua fria, vazia e comprida. Seria difícil encontrar uma loja aberta naquele dia. Afinal, no Natal as pessoas geralmente queriam estar com suas famílias. Bem, não importava. Ela tinha bastante tempo para procurar uma loja que estivesse aberta.

Andou pelas ruas por um bom tempo, sentindo cada vez mais frio. Nunca tinha se importado muito com coisas assim. Na verdade, durante todos aqueles anos em que vagara por aí, nunca tinha sentido frio. Nem fome, nem dor, nem cansaço. Nunca tinha sentido nada, para falar a verdade. Era como se o espírito tivesse abandonado o corpo. Como se estivesse morta.

Agora era diferente. Ela estava incrivelmente sensível a tudo ao seu redor. O ar frio, o cheiro das comidas para a ceia de Natal sendo preparadas, a chuva caindo sobre a sua pele. Era como se ela estivesse viva novamente.

Por fim, depois de andar por muito tempo, encontrou uma loja pequena, mas bem iluminada e de aspecto acolhedor. A vitrine estava ocupada por uma grande árvore de natal, e por trás dela Liberté podia ver algumas roupas penduradas em cabides.

Abriu a porta de vidro e entrou na loja.

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A mulher, alta e magra, de longos cabelos negros e sorriso gentil, ergueu os olhos azuis e olhou para a garota. Seu sorriso diminuiu um pouco ao vê-la. Tinha o aspecto típico de uma criança abandonada, maltratada, sem família. Uma criança completamente sozinha. E numa noite de Natal.

- O que deseja? – perguntou, tentando ser o mais gentil possível.

A garota disse algumas palavras numa língua estranha, provavelmente japonês. Depois, vendo que a mulher não estava entendendo nada, apontou para as roupas. Depois, indicou os próprios braços nus e cruzou-os, fingindo que estava com frio.

O sorriso da mulher diminuiu mais um pouco assim que ela entendeu o que a garota queria dizer. Um casaco. Abandonada, sozinha e, ainda por cima, com frio. Aquela garota estava deixando-a transtornada. Nunca tinha visto uma criança assim. A aura de tristeza e solidão ao seu redor era quase palpável, e seus olhos decididamente não eram os olhos de uma criança. Eram olhos distantes, pensativos, cheios de sofrimento.

Liberté podia sentir os olhos da mulher nela enquanto procurava um casaco. Olhos cheios de pena e solidariedade. Não gostava de ser observada, e não gostava de que sentissem pena dela. Querendo sair dali logo, pegou rapidamente um casaco, sem olhar muito, e foi até o balcão pagar por ele. Voltou os olhos para a vitrine, tentando ignorar a pena que a mulher estava sentindo por ela. Seus olhos observaram por um tempo a árvore de natal e os seus enfeites. E então, ela viu. Ali, no meio de bolas coloridas e luzes que piscavam. Foi andando até a árvore, esquecendo a mulher, a sua dor, a sua confusão. Tirou o minúsculo anjo de porcelana e segurou delicadamente entre os dedos, como se fosse quebrar a qualquer momento. Seus lábios se abriram num sorriso pequeno e nostálgico, e ela ficou parada ali, segurando o pequeno anjo, até a mulher pigarrear e dizer alguma coisa, afastando-a de suas lembranças de um Natal distante e alegre.

Quando a garota se virou, o sorriso da mulher alargou-se e seus olhos muito azuis se arregalaram de surpresa pela mudança na expressão da menina. Não só nos lábios, que sorriam, mas também nos olhos, que pareciam ter se enchido de esperança e alegria. E então ela percebeu, nas mãos da menina, um pequeno enfeite de natal, da sua própria árvore.

E ela entendeu o porquê da mudança na menina. Seu sorriso aumentou ainda mais, e ela disse:

- Você pode ficar com esse enfeite.

Liberté não entendeu o que a mulher disse, mas percebeu o que significava. O tom de voz e o sorriso diziam tudo. Ela olhou para mulher e inclinou a cabeça em sinal de agradecimento. Em seguida, deixou o dinheiro no balcão, pegou o casaco e saiu da loja.

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Yoh caminhava até o seu quarto, sentindo-se desanimado. A ceia de Natal tinha sido muito quieta e triste, com um Ren completamente mudo, um Ryuu estranhamente sério e um Horohoro confuso. Ele mesmo não podia dizer que estava se sentindo muito alegre. É claro, ele tinha adorado passar o Natal com seus amigos. Mas faltava alguma coisa. Faltavam duas pessoas. Duas garotas que tinham saído de suas vidas tão repentinamente como tinham entrado. Uma delas, para nunca mais voltar.

Deixou um suspiro escapar. Não adiantava viver no passado. Na havia nada que ele pudesse fazer para mudar o que tinha acontecido. O melhor era olhar pra frente e continuar vivendo. Afinal, no fim tudo daria certo. Ele só não conseguia parar de imaginar quando o fim chegaria.

Entrou no quarto e deixou uma exclamação de surpresa escapar de seus lábios. Num canto, encostada à janela, estava uma terceira garota que tinha saído de sua vida. Observou-a por um tempo, esquecido do resto do mundo. Ela tinha mudado. Continuava bonita e poderosa, mas agora parecia mais frágil, mais delicada, como um pássaro ferido. E ele podia ver nos seus olhos que quem a ferira fora ele.

A voz dela, doce e melodiosa, cortou o silêncio constrangedor entre os dois.

- Yoh.

De repente ele sentiu-se muito nervoso. Ele não sabia o que dizer. Tinha muito para dizer, mas tudo que passava pela sua mente parecia tolo e inapropriado. Por fim, resolveu. Simples, patético e nem um pouco original.

- Oi Anna. Tudo bem?

Anna deixou um sorriso escapar de seus lábios. Tinha se esquecido de como Yoh podia ser bobo às vezes. Mas era por isso que ela gostava dele. Pensando bem, ela mesma era um pouco boba. Tinha simplesmente entrado no quarto dele, sem ter nada para dizer ou fazer. Ficou grata por ele não ter perguntado o porquê de ela estar ali. Não por muito tempo.

- Anna...Eu não quero ser grosso, mas...Por que você está aqui?

- Não sei.

Tais palavras foram seguidas por um longo silêncio. Não é que eles não tivessem o que dizer. É que eles simplesmente pareciam hipnotizados, um se afogando nos olhos do outro, sem conseguir pensar em nada. Por fim, Yoh, a muito custo, conseguiu formular uma frase completa:

- Estou feliz por você estar aqui.

Os olhos de Anna se arregalaram de surpresa. Ela sentiu suas bochechas ficarem quentes, e olhou para o chão.

- Por quê?

- Não sei. Senti sua falta. Acho que...Gosto de ficar com você.

Dessa vez ela olhou nos olhos dele, procurando algum sinal de que o que ele tinha acabado de dizer era mentira. Não encontrou nenhum.

- Por quê? Tudo o que eu faço é te dar ordens e ser antipática.

Ela pôde ver um sorriso se formar na sua face. Não era o sorriso habitual. Era mais tímido, mais inseguro. Aquele sorriso ela nunca tinha visto antes. Então, Anna Kyôyama sentiu seus próprios lábios se alargarem num sorriso pequeno, quase imperceptível. Já tinha sofrido muito, e não queria alimentar falsas esperanças. Mas não pôde deixar de pensar que aquele sorriso talvez – só talvez – fosse o sorriso pelo qual ela esperara por tanto tempo. O sorriso só pra ela.

Aquele sorriso tinha sido o melhor presente de Natal de sua vida. Sentindo seu sorriso aumentar e suas bochechas ficarem ainda mais quentes, ela disse:

- Obrigada, Yoh. Feliz Natal.

E, sem dizer mais nada, ela passou por ele e saiu do quarto.

Yoh virou-se, vendo apenas a sombra de Anna desaparecer pela escada. Não importava se eles tinham ficado tão pouco tempo juntos. Não importava se ela estava voltando para onde Hao estava. Não importava se talvez um longo tempo se passasse antes que ele pudesse vê-la de novo. Anna Kyôyama tinha sorrido. E ele podia dizer que, com certeza, aquele era o sorriso mais lindo do mundo.

Seu sorriso aumentou e ele disse, baixinho:

- Feliz Natal, Anna.

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Dentro de sua Dama de Ferro, Jeanne suspirou. Aquele tinha sido um Natal particularmente triste. Ninguém parecia ter se lembrado de que ela era uma criança. Assim, ela tinha passado toda a noite de Natal sozinha.

Sacudiu a cabeça, tentando afastar pensamentos tão inconvenientes. Ela não era uma criança, e sim um instrumento de Deus.

Se Lyserg estivesse ali, ele teria se lembrado. Ela tinha certeza. Mas não podia pensar assim. Lyserg tinha ido embora, provavelmente para seu próprio bem.

Não conseguia entender. Nunca tinha sido egoísta. Mas quando se tratava do garoto de cabelos verdes, ela ficava...Diferente. Talvez porque conviver com alguém mais ou menos da sua idade fosse uma experiência nova para ela. Talvez porque nunca tinha se atrevido a ser tão gentil com ela. Talvez porque ela significasse algo para ele, e ele para ela.

Suspirou, exasperada. Por que ela simplesmente não parava de pensar em coisas tão idiotas?

Ela fechou os olhos vermelhos como sangue, e algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto.

Lyserg estava distante, e devia estar passando muito bem. Ela só esperava que ele estivesse tendo um feliz Natal.

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Lyserg andava junto aos prédios e às lojas, protegendo-se nas marquises da chuva forte que continuava a cair. As ruas estavam frias, vazias e escuras. No entanto, passando junto às casas, ele podia ver as luzes brilhantes e sentir o calor humano que escapava pelas frestas de portas e janelas. No fim da rua, uma única pessoa, andando na chuva. Não podia vê-la com clareza por causa da distância, do escuro e da chuva, mas sabia quem era. Reconhecia-a pelo jeito de andar, sem se preocupar com o mundo à volta dela, e pela aura de solidão que ela exalava. No entanto, Liberté parecia, mesmo de longe, diferente. Não eram apenas o casaco de cores fortes e alegres, ou os cabelos recentemente penteados. Era algo mais.

Gritou seu nome, bem alto, para que ela o escutasse. Ela parou quando já ia desaparecendo de seu campo de visão, e deu meia volta. Ele deu alguns passos para frente, rápidos e largos, tentando chegar logo perto dela.

Quando se aproximou o suficiente para ver seu rosto com clareza, parou de andar, surpreso. Uma grande mudança se operara naquele rosto, geralmente marcado pela tristeza, mágoa e insegurança. Não era nenhum milagre. O sorriso em seu rosto era melancólico e muito, muito frágil. Ele já tinha visto Liberté dando sorrisos maiores e mais brilhantes que aquele. Mas, naquele momento, não eram só os lábios que sorriam. Os olhos também. Eles brilhavam, de alegria. Alegria calma e frágil, mas alegria.

- Lyserg. Que surpresa ver você aqui.

- Surpresa boa, eu espero. – Lyserg disse, sorrindo também.

- Claro. O que está fazendo aqui, no meio da rua, na véspera de Natal?

- Larguei os X-Laws, e ainda não tomei coragem para pedir para me juntar ao grupo do Yoh. Quem sabe amanhã...Mas e você? Não devia estar com eles?

- Acho que sim. Mas estou...Não os larguei, mas fugi deles. Não é definitivo. Fiz isso só pra dar um tempo. Pensar com calma. Sei lá.

- Bem, é uma pena que você tenha saído de lá justo quando eu vou entrar. Mas você faz o que achar melhor pra você, não é mesmo?

- É, acho que sim.

- O que é isso na sua mão?

- Ah...Bem, é um enfeite. De uma árvore de Natal. Da loja onde eu comprei esse casaco. É igual a um que eu tinha na casa onde eu vivia com os meus pais. E o Hao. Mas esse enfeite é de antes de o Hao chegar. Bem antes. Uma das poucas lembranças que tenho onde ele não está presente.

Lyserg desviou os seus olhos dos dela. Sentia-se quase envergonhado. Ela, que tinha sofrido muito mais que ele, estava lá, calma, alegre e cheia de certeza. Parecia que tinha amadurecido mil anos desde a primeira vez em que se encontraram. Ele, no entanto, quase não tinha mudado. Continuava cheio de dúvidas, consumido pelo ódio e pela dor.

Parecendo adivinhar seus pensamentos, Liberté disse:

- Sair dos X-Laws deve ter sido realmente difícil. Você provavelmente precisou de muita força e coragem, não é mesmo?

Lyserg olhou para Liberté, e sorriu. Ela sorriu também, e disse, ligeiramente melancólica:

- Agora estou indo. Foi ótimo te encontrar, Lyserg. Feliz Natal.

- Feliz Natal pra você também, Liberté.

Ela se afastou dele rapidamente de voltou a andar, parecendo um pouco envergonhada. Lyserg ficou parado, observando seu contorno ir ficando cada vez menos nítido, até desaparecer completamente.

Provavelmente, dali a algumas horas, aquele agradável calor que ele estava sentindo desaparecesse por completo. E aquele sorriso tímido abandonaria os lábios de Liberté, e ambos voltariam a ser tristes e cheios de ódio. E talvez fossem assim pro resto de suas vidas. Mas ele, pelo menos, sempre se lembraria daquele Natal em particular. Um Natal sem presentes, e sem comemorações. Mas também um Natal sem ódio e tristeza. Um intervalo.

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Oi!

Bem, não tenho muito a dizer. Até que esse capítulo não ficou de todo ruim, não é mesmo?

Um Feliz Natal pra todos vocês!