Capítulo 19 - Decisão
Uma onda de poder e malícia a atingiu mal os pés pisaram no rio de lama que era a arena. Encostou-se em uma das paredes que separavam o campo de batalha das arquibancadas para não cair, e ergueu a cabeça, fitando o quadro ao seu redor.
Yoh, Lyserg e Ryu estavam no chão. Estavam vivos, mas era óbvio que não podiam mais lutar. O burburinho da multidão era audível mesmo na chuva forte. Duas de suas adversárias sorriram para ela, sorrisos belos e cruéis, que fizeram com que Anna mais uma vez tivesse que se apoiar na parede. A outra mulher, ainda mais bela, alta e terrível que as outras, apenas olhou para ela, seriamente, de um jeito ainda mais assustador que os sorrisos das outras duas.
Anna não tinha sido treinada para lutar. Tinha recebido algumas noções básicas de batalha, mas a maior parte do seu treino fora focada apenas na compreensão dos mistérios mais profundos do mundo dos mortos. Nesse sentido ela era provavelmente a bruxa mais poderosa do mundo, mas ela não estava ali para prender ou invocar espíritos poderosos. As mulheres à sua frente sabiam não só invocar tais espíritos, mas também utilizá-los, algo que a jovem bruxa tinha apenas uma vaga noção de como fazer.
Ao menos agora ela tinha certeza do motivo pelo qual estava lutando. Não havia mais confusão ou medo em seu coração. Ele provavelmente não a amava, não do jeito que ela o amava. Mas não importava. Ela não ia tentar esconder ou acabar com seus sentimentos. Pelo menos daquela vez, Anna Kyôyama ia fazer aquilo que ela julgava certo, aquilo que ela queria fazer.
Havia uma chance, ela sabia. Era para aproveitar essa chance que ela tinha o seu colar de contas azuis nas mãos, pronto para ser usado. Ela podia, através de um encantamento muito antigo e complicado, trancar os espíritos que as três mulheres tinham invocado. Ela sabia que o encantamento a deixaria completamente esgotada, e que até completá-lo estaria vulnerável aos ataques das três bruxas à sua frente. Parecia meio estúpido, mas não era como se ela tivesse outra escolha.
Um sorriso cruel surgiu nos lábios de Anna. Havia algo morbidamente divertido naquela situação. Três mulheres experientes batalha contra uma única garota.
Ela fechou os olhos para o mundo exterior, esquecendo a chuva e o medo, tentando alcançar o estado de espírito necessário para aquele encantamento.
O encantamento que ela estava prestes a fazer era tão antigo que nem mesmo as poderosas adversárias de Anna o conheciam. No entanto, elas sabiam reconhecer algo perigoso quando necessário, e o que a frágil garota diante delas estava fazendo era claramente algo perigoso. Assim, elas resolveram atacar. Até agora tinham segurado sua verdadeira força, mas isso não aconteceria mais. O que quer que fosse aquilo que a jovem bruxa estivesse fazendo, devia ser impedido imediatamente. Assim, elas atacaram.
Seus golpes, ricos em fúria e poder, a atingiram ao mesmo tempo, arrastando o seu corpo frágil e magro pela lama até bater de encontro à parede. No entanto, a jovem nem mesmo abriu um olho. Estava imóvel, como que morta.
A imobilidade da jovem não fez com que as três bruxas interrompessem seus ataques. Elas sabiam, como qualquer um naquele lugar, que a jovem não estava morta, mas transbordando de poder.
Quando parecia que não havia mais um único osso intacto em seu corpo, ou que não havia mais sangue para escorrer de suas feridas, os olhos de Anna, escuros e profundos como túneis sombrios, se abriram. Ela se levantou, devagar, diante dos olhos perplexos da multidão, e encarou as três bruxas.
Ela esticou o braço que segurava o seu colar de contas azuis devagar, sem desperdiçar energia, ainda olhando fixamente para as três mulheres, que pareciam agora cansadas e extremamente tensas.
E então, algo aconteceu. O colar de contas cresceu, até ficar muito, muito maior que a sua dona, e foi lançado em direção aos espíritos que pertenciam às três bruxas. Os espectadores da luta viram Anna abrir os lábios e gritar palavras que se perdiam em meio ao vento e à chuva, palavras poderosas e desconhecidas, enquanto a imensa tempestade de poder ao seu redor finalmente desabava, caindo sobre as três mulheres, que não mais pareciam belas e imponentes.
Após um tempo, uma das duas tempestades que caíam sobre a arena se acalmou, até desaparecer. No meio da lama e do caos, de pé, estava Anna Kyôyama. Ela observou por um tempo o local onde suas adversárias tinham estado há pouco tempo. Não havia mais ninguém. Finalmente a jovem bruxa poderia parar de lutar. Finalmente ela poderia descansar.
Graciosamente, o corpo frágil e destruído de Anna Kyôyama caiu no chão.
---
Olhava fixamente de Yoh para Anna, como se houvesse algo muito interessante para ver nos corpos dos dois. Tinham sido limpos e suas feridas tinham sido tratadas. Era só uma questão de tempo até que acordassem. Não havia o que fazer ali, mas ela tinha medo. Tinha medo de se mexer, de quebrar o encanto que mantinha tudo imóvel, que evitava que ela tivesse que enfrentar a situação.
No mesmo aposento que ela estavam as duas pessoas que ela menos queria ver no momento. Perto, perigosamente perto. Liberté podia sentir em seu corpo a intensidade do olhar de Hao sobre ela e, em seus pulsos, as mãos fortes de Ren.
Ren...Ela não sabia o que pensar. As palavras que ele tinha dito há algumas horas destruíram todas as suas opiniões a respeito do jovem chinês. Ele parecia gostar dela e, ao mesmo tempo, odiá-la por causa disso. Ren sempre a ignorava, ou então era rude com ela. Mesmo a sua declaração – se é que aquilo podia ser considerado uma declaração – tinha sido brutal, com palavras secas e ações rudes. No entanto, quando pensava nele, Liberté só conseguia se lembrar da noite em que ele a abraçara e consolara de forma tão gentil.
O que ela sentia por ele? Confiança, admiração, medo...Era tudo isso e um pouco mais. Por algum motivo, a palavra amor não saía de sua cabeça. Mas será que ela realmente o amava?
Sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo. Hao continuava olhando para ela, Liberté tinha certeza. E ela não sabia o que pensar. Os sentimentos que nutria por ele eram tão antigos que a garota nem mesmo precisava se dar ao trabalho de analisá-los. Mas não tinha coragem de encarar que, no meio de todo o ódio, medo e desprezo que sentia pelo xamã, havia também pena, admiração, e restos de um amor que fora abandonado havia muito, muito tempo. Não que esse resto de amor fosse suficiente para ela perdoá-lo, ou simplesmente cogitar a idéia de ter algo a ver com ele. No entanto, não sabia o que fazer com Hao. Por mais que quisesse esquecê-lo e viver como se nunca tivesse conhecido-o, tinha que encarar que ele já estava envolvido demais em sua vida para que ela pudesse fazer isso.
Ren olhava de Liberté para Hao, sentindo o sangue ferver. Não conseguia entender o que aquele idiota estava fazendo ali, com eles, como se nunca tivesse feito nada de errado. E ainda se atrevia a olhar para Liberté daquele jeito, como se...
Ele não queria nem pensar no que aquele olhar poderia significar.
Entre aqueles dois, ele se sentia um intruso. Havia coisas mal resolvidas entre eles, coisas que tinham que ser explicadas, decisões a serem tomadas. Ele podia imaginar a confusão que a garota ao seu lado estava sentindo, tendo a pessoa que mais odiava tão próxima, depois de tantos anos de distância segura e confortável.
Soltou o pulso de Liberté, vendo com remorso as marcas arroxeadas que havia deixado. Silenciosamente, levantou-se, lançou um olhar de ódio a Hao e abandonou o quarto.
---
O único som no quarto era o da chuva lá fora, chuva que depois de dias, semanas e meses, ainda não passara, e que ainda parecia estar longe de terminar.
Liberté encolheu-se, sentindo-se desprotegida. Não queria ficar ali, sozinha. Não com ele. Podia sentir as lágrimas se formando em seus olhos e suas pernas movendo-se para levantar o seu corpo. E então, um outro som, suave e morno, preencheu o quarto. Liberté parou de se levantar, horrorizada, enquanto Hao falava calmamente:
- Quanto tempo você acha que vai levar até que eles acordem?
Pela primeira vez em anos e anos de raiva e solidão, ela olhou para ele, de verdade. Olhou dentro de seus olhos, ainda com medo, ainda com raiva. Queria machucá-lo, queria que ele sofresse tanto quanto ela tinha sofrido.
- Por quê? Acha que quando ela – e apontou a garota loira com o indicador trêmulo – acordar, vai simplesmente se levantar e ir embora com você? Eu duvido. Duvido, porque entendo algo de escolhas, e sei que ela escolheu outra pessoa. E você vai ficar sozinho. Completamente. Não terá a mim, não terá Mei-ann, não terá Anna. Nenhuma de nós quer ficar com você. Você é desprezível, é nojento, um monstro. Você vai ficar sozinho, Hao. Para o resto da sua vida. E a culpa é sua.
- É verdade. – disse ele, muito calmo, olhando para ela com um toque de nostalgia no rosto.
- Você merece isso...Eu te odeio...Eu te odeio, Hao. – disse ela, com lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
- Por incrível que pareça, eu suspeitava disso. – disse ele, a voz fria e distante – E você, provavelmente, quer explicações. Por que eu fiz? Como eu fiz? Eu vou te contar. Tudo. – disse ele, com um sorriso cruel no rosto.
- Cale a boca Hao. Cale a boca. Você não podia ter feito isso. Meus pais te acolheram. Eles te trataram como se você fosse o filho deles. E você...Tudo o que você fez foi...
- Eu não pedi a eles que me tratassem assim. Fizeram porque queriam. Mas eram fracos, e mereciam morrer.
- Eu também era fraca, Hao. Eu ainda sou fraca. Mas não estou morta, e não acho que mereça morrer. Você...E suas idéias...Estão completamente errados.
- Você é diferente. Você é...
- Você é solitário. Terrivelmente solitário. É por isso que me queria ao seu lado, não era? Você usou a minha estupidez para realizar seus desejos egoístas e cruéis. Você não se cansa de ser assim? Você acabou com a minha vida, acabou com a vida de Mei-ann, e queria acabar com a vida da Anna. Por que você faz isso? Até quando vai fazer isso?
- Eu não sou solitário. E você não era estúpida. E um homem poderoso deve ter uma mulher poderosa atrás dele. Por isso eu não te matei. Por isso eu acolhi Mei-ann quando ela fugiu de casa. Por isso eu procurei Anna quando ela foi rejeitada. Eu serei o Rei Xamã e preciso de uma rainha para mim.
- Bem, agora não restou ninguém. O que você pensa em fazer? Ser acolhido por uma família que tenha uma filha da sua idade? Procurar uma garota de coração partido? Botar um anúncio no jornal?
- Não acho que botar um anúncio no jornal seja uma boa idéia.
Liberté já não chorava. Ela olhava para Hao, muito séria, com os olhos vermelhos e o nariz inchado.
- Você não vai ser Rei Xamã. Sabia disso? Yoh vai ser o Rei Xamã. Você não pode ser. Seria ruim demais.
- Quem vai me impedir?
- Não sei. Mas alguém vai. Eu tenho certeza.
Hao sorriu, e disse:
- Ah, Liberté. Ninguém pode me impedir. Não é sempre que os bonzinhos vencem.
---
Oi! ^^
Outro dia, numa das minhas memoráveis insônias, eu me peguei pensando nessa história pela primeira vez em muito, muito tempo. Com o retorno das aulas, os meus eternos problemas e o carnaval, eu acabei deixando essa patética história em segundo plano. Afinal, eu não gosto mais dela. Não muito.
Primeiro, em pensei em abandoná-la. Já esqueci dos meus planos para o fim e, sinceramente, 19 capítulos é muita coisa. Mas aí, sei lá. Achei melhor terminar, mesmo que fosse rapidinho. Assim, pensei num final rápido (não é bom, mas assim pelo menos combina com o resto da história) e comecei a escrever. O nome do capítulo é tanto pela decisão da Anna de ficar com o Yoh quanto pela minha decisão de acabar logo com isso. Quanto ao resto do capítulo, não acho que precise de maiores explicações. É bem simples. Gostaria de ter desenvolvido mais as três bruxas, mas enfim...
Portanto, a história está mesmo no fim. Mais dois, talvez três capítulos, e eu vou estar livre disso. Vou sentir falta, é claro, mas também vou sentir alívio. Então é isso. Até o próximo capítulo.
Lady Macbeth
Uma onda de poder e malícia a atingiu mal os pés pisaram no rio de lama que era a arena. Encostou-se em uma das paredes que separavam o campo de batalha das arquibancadas para não cair, e ergueu a cabeça, fitando o quadro ao seu redor.
Yoh, Lyserg e Ryu estavam no chão. Estavam vivos, mas era óbvio que não podiam mais lutar. O burburinho da multidão era audível mesmo na chuva forte. Duas de suas adversárias sorriram para ela, sorrisos belos e cruéis, que fizeram com que Anna mais uma vez tivesse que se apoiar na parede. A outra mulher, ainda mais bela, alta e terrível que as outras, apenas olhou para ela, seriamente, de um jeito ainda mais assustador que os sorrisos das outras duas.
Anna não tinha sido treinada para lutar. Tinha recebido algumas noções básicas de batalha, mas a maior parte do seu treino fora focada apenas na compreensão dos mistérios mais profundos do mundo dos mortos. Nesse sentido ela era provavelmente a bruxa mais poderosa do mundo, mas ela não estava ali para prender ou invocar espíritos poderosos. As mulheres à sua frente sabiam não só invocar tais espíritos, mas também utilizá-los, algo que a jovem bruxa tinha apenas uma vaga noção de como fazer.
Ao menos agora ela tinha certeza do motivo pelo qual estava lutando. Não havia mais confusão ou medo em seu coração. Ele provavelmente não a amava, não do jeito que ela o amava. Mas não importava. Ela não ia tentar esconder ou acabar com seus sentimentos. Pelo menos daquela vez, Anna Kyôyama ia fazer aquilo que ela julgava certo, aquilo que ela queria fazer.
Havia uma chance, ela sabia. Era para aproveitar essa chance que ela tinha o seu colar de contas azuis nas mãos, pronto para ser usado. Ela podia, através de um encantamento muito antigo e complicado, trancar os espíritos que as três mulheres tinham invocado. Ela sabia que o encantamento a deixaria completamente esgotada, e que até completá-lo estaria vulnerável aos ataques das três bruxas à sua frente. Parecia meio estúpido, mas não era como se ela tivesse outra escolha.
Um sorriso cruel surgiu nos lábios de Anna. Havia algo morbidamente divertido naquela situação. Três mulheres experientes batalha contra uma única garota.
Ela fechou os olhos para o mundo exterior, esquecendo a chuva e o medo, tentando alcançar o estado de espírito necessário para aquele encantamento.
O encantamento que ela estava prestes a fazer era tão antigo que nem mesmo as poderosas adversárias de Anna o conheciam. No entanto, elas sabiam reconhecer algo perigoso quando necessário, e o que a frágil garota diante delas estava fazendo era claramente algo perigoso. Assim, elas resolveram atacar. Até agora tinham segurado sua verdadeira força, mas isso não aconteceria mais. O que quer que fosse aquilo que a jovem bruxa estivesse fazendo, devia ser impedido imediatamente. Assim, elas atacaram.
Seus golpes, ricos em fúria e poder, a atingiram ao mesmo tempo, arrastando o seu corpo frágil e magro pela lama até bater de encontro à parede. No entanto, a jovem nem mesmo abriu um olho. Estava imóvel, como que morta.
A imobilidade da jovem não fez com que as três bruxas interrompessem seus ataques. Elas sabiam, como qualquer um naquele lugar, que a jovem não estava morta, mas transbordando de poder.
Quando parecia que não havia mais um único osso intacto em seu corpo, ou que não havia mais sangue para escorrer de suas feridas, os olhos de Anna, escuros e profundos como túneis sombrios, se abriram. Ela se levantou, devagar, diante dos olhos perplexos da multidão, e encarou as três bruxas.
Ela esticou o braço que segurava o seu colar de contas azuis devagar, sem desperdiçar energia, ainda olhando fixamente para as três mulheres, que pareciam agora cansadas e extremamente tensas.
E então, algo aconteceu. O colar de contas cresceu, até ficar muito, muito maior que a sua dona, e foi lançado em direção aos espíritos que pertenciam às três bruxas. Os espectadores da luta viram Anna abrir os lábios e gritar palavras que se perdiam em meio ao vento e à chuva, palavras poderosas e desconhecidas, enquanto a imensa tempestade de poder ao seu redor finalmente desabava, caindo sobre as três mulheres, que não mais pareciam belas e imponentes.
Após um tempo, uma das duas tempestades que caíam sobre a arena se acalmou, até desaparecer. No meio da lama e do caos, de pé, estava Anna Kyôyama. Ela observou por um tempo o local onde suas adversárias tinham estado há pouco tempo. Não havia mais ninguém. Finalmente a jovem bruxa poderia parar de lutar. Finalmente ela poderia descansar.
Graciosamente, o corpo frágil e destruído de Anna Kyôyama caiu no chão.
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Olhava fixamente de Yoh para Anna, como se houvesse algo muito interessante para ver nos corpos dos dois. Tinham sido limpos e suas feridas tinham sido tratadas. Era só uma questão de tempo até que acordassem. Não havia o que fazer ali, mas ela tinha medo. Tinha medo de se mexer, de quebrar o encanto que mantinha tudo imóvel, que evitava que ela tivesse que enfrentar a situação.
No mesmo aposento que ela estavam as duas pessoas que ela menos queria ver no momento. Perto, perigosamente perto. Liberté podia sentir em seu corpo a intensidade do olhar de Hao sobre ela e, em seus pulsos, as mãos fortes de Ren.
Ren...Ela não sabia o que pensar. As palavras que ele tinha dito há algumas horas destruíram todas as suas opiniões a respeito do jovem chinês. Ele parecia gostar dela e, ao mesmo tempo, odiá-la por causa disso. Ren sempre a ignorava, ou então era rude com ela. Mesmo a sua declaração – se é que aquilo podia ser considerado uma declaração – tinha sido brutal, com palavras secas e ações rudes. No entanto, quando pensava nele, Liberté só conseguia se lembrar da noite em que ele a abraçara e consolara de forma tão gentil.
O que ela sentia por ele? Confiança, admiração, medo...Era tudo isso e um pouco mais. Por algum motivo, a palavra amor não saía de sua cabeça. Mas será que ela realmente o amava?
Sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo. Hao continuava olhando para ela, Liberté tinha certeza. E ela não sabia o que pensar. Os sentimentos que nutria por ele eram tão antigos que a garota nem mesmo precisava se dar ao trabalho de analisá-los. Mas não tinha coragem de encarar que, no meio de todo o ódio, medo e desprezo que sentia pelo xamã, havia também pena, admiração, e restos de um amor que fora abandonado havia muito, muito tempo. Não que esse resto de amor fosse suficiente para ela perdoá-lo, ou simplesmente cogitar a idéia de ter algo a ver com ele. No entanto, não sabia o que fazer com Hao. Por mais que quisesse esquecê-lo e viver como se nunca tivesse conhecido-o, tinha que encarar que ele já estava envolvido demais em sua vida para que ela pudesse fazer isso.
Ren olhava de Liberté para Hao, sentindo o sangue ferver. Não conseguia entender o que aquele idiota estava fazendo ali, com eles, como se nunca tivesse feito nada de errado. E ainda se atrevia a olhar para Liberté daquele jeito, como se...
Ele não queria nem pensar no que aquele olhar poderia significar.
Entre aqueles dois, ele se sentia um intruso. Havia coisas mal resolvidas entre eles, coisas que tinham que ser explicadas, decisões a serem tomadas. Ele podia imaginar a confusão que a garota ao seu lado estava sentindo, tendo a pessoa que mais odiava tão próxima, depois de tantos anos de distância segura e confortável.
Soltou o pulso de Liberté, vendo com remorso as marcas arroxeadas que havia deixado. Silenciosamente, levantou-se, lançou um olhar de ódio a Hao e abandonou o quarto.
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O único som no quarto era o da chuva lá fora, chuva que depois de dias, semanas e meses, ainda não passara, e que ainda parecia estar longe de terminar.
Liberté encolheu-se, sentindo-se desprotegida. Não queria ficar ali, sozinha. Não com ele. Podia sentir as lágrimas se formando em seus olhos e suas pernas movendo-se para levantar o seu corpo. E então, um outro som, suave e morno, preencheu o quarto. Liberté parou de se levantar, horrorizada, enquanto Hao falava calmamente:
- Quanto tempo você acha que vai levar até que eles acordem?
Pela primeira vez em anos e anos de raiva e solidão, ela olhou para ele, de verdade. Olhou dentro de seus olhos, ainda com medo, ainda com raiva. Queria machucá-lo, queria que ele sofresse tanto quanto ela tinha sofrido.
- Por quê? Acha que quando ela – e apontou a garota loira com o indicador trêmulo – acordar, vai simplesmente se levantar e ir embora com você? Eu duvido. Duvido, porque entendo algo de escolhas, e sei que ela escolheu outra pessoa. E você vai ficar sozinho. Completamente. Não terá a mim, não terá Mei-ann, não terá Anna. Nenhuma de nós quer ficar com você. Você é desprezível, é nojento, um monstro. Você vai ficar sozinho, Hao. Para o resto da sua vida. E a culpa é sua.
- É verdade. – disse ele, muito calmo, olhando para ela com um toque de nostalgia no rosto.
- Você merece isso...Eu te odeio...Eu te odeio, Hao. – disse ela, com lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
- Por incrível que pareça, eu suspeitava disso. – disse ele, a voz fria e distante – E você, provavelmente, quer explicações. Por que eu fiz? Como eu fiz? Eu vou te contar. Tudo. – disse ele, com um sorriso cruel no rosto.
- Cale a boca Hao. Cale a boca. Você não podia ter feito isso. Meus pais te acolheram. Eles te trataram como se você fosse o filho deles. E você...Tudo o que você fez foi...
- Eu não pedi a eles que me tratassem assim. Fizeram porque queriam. Mas eram fracos, e mereciam morrer.
- Eu também era fraca, Hao. Eu ainda sou fraca. Mas não estou morta, e não acho que mereça morrer. Você...E suas idéias...Estão completamente errados.
- Você é diferente. Você é...
- Você é solitário. Terrivelmente solitário. É por isso que me queria ao seu lado, não era? Você usou a minha estupidez para realizar seus desejos egoístas e cruéis. Você não se cansa de ser assim? Você acabou com a minha vida, acabou com a vida de Mei-ann, e queria acabar com a vida da Anna. Por que você faz isso? Até quando vai fazer isso?
- Eu não sou solitário. E você não era estúpida. E um homem poderoso deve ter uma mulher poderosa atrás dele. Por isso eu não te matei. Por isso eu acolhi Mei-ann quando ela fugiu de casa. Por isso eu procurei Anna quando ela foi rejeitada. Eu serei o Rei Xamã e preciso de uma rainha para mim.
- Bem, agora não restou ninguém. O que você pensa em fazer? Ser acolhido por uma família que tenha uma filha da sua idade? Procurar uma garota de coração partido? Botar um anúncio no jornal?
- Não acho que botar um anúncio no jornal seja uma boa idéia.
Liberté já não chorava. Ela olhava para Hao, muito séria, com os olhos vermelhos e o nariz inchado.
- Você não vai ser Rei Xamã. Sabia disso? Yoh vai ser o Rei Xamã. Você não pode ser. Seria ruim demais.
- Quem vai me impedir?
- Não sei. Mas alguém vai. Eu tenho certeza.
Hao sorriu, e disse:
- Ah, Liberté. Ninguém pode me impedir. Não é sempre que os bonzinhos vencem.
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Oi! ^^
Outro dia, numa das minhas memoráveis insônias, eu me peguei pensando nessa história pela primeira vez em muito, muito tempo. Com o retorno das aulas, os meus eternos problemas e o carnaval, eu acabei deixando essa patética história em segundo plano. Afinal, eu não gosto mais dela. Não muito.
Primeiro, em pensei em abandoná-la. Já esqueci dos meus planos para o fim e, sinceramente, 19 capítulos é muita coisa. Mas aí, sei lá. Achei melhor terminar, mesmo que fosse rapidinho. Assim, pensei num final rápido (não é bom, mas assim pelo menos combina com o resto da história) e comecei a escrever. O nome do capítulo é tanto pela decisão da Anna de ficar com o Yoh quanto pela minha decisão de acabar logo com isso. Quanto ao resto do capítulo, não acho que precise de maiores explicações. É bem simples. Gostaria de ter desenvolvido mais as três bruxas, mas enfim...
Portanto, a história está mesmo no fim. Mais dois, talvez três capítulos, e eu vou estar livre disso. Vou sentir falta, é claro, mas também vou sentir alívio. Então é isso. Até o próximo capítulo.
Lady Macbeth
