Capítulo 20 - Renascimento
Dava voltas pelo quarto, como um tigre furioso, as mãos no peito oprimido e os olhos cheios de confusão. Queria sair dali o mais rápido possível. Não agüentava mais aquele lugar, onde se sentia tão presa e sufocada. A razão para tal desconforto não tinha nada a ver com o chão molhado, as paredes úmidas e rachadas ou a visível decadência daquela velha pensão. Após meses de chuva, já tinha se acostumado a ter sempre as roupas encharcadas, grudando-se no corpo, e ao pequeno resfriado que não parecia querer abandoná-la de jeito nenhum.
Na verdade, havia poucas coisas que podiam incomodá-la. E uma dessas poucas coisas era a presença dele.
Achava que tinha, senão esquecido, pelo menos superado. Mas bastavam alguns minutos perto dele, agüentando suas palavras arrogantes e seu sarcasmo cruel, para que toda a sua segurança e esperança desaparecessem por completo. A raiva que sentia por ele era ainda mais forte que a raiva que sentia de si mesma, por deixar que o garoto a perturbasse tanto.
Queria destruí-lo, matá-lo. Queria arrancar aquele sorriso debochado de seus lábios e fazer com que ele nunca mais machucasse alguém com suas palavras ou ações.
Mas havia uma outra parte dela, uma parte pequena e tímida, que gostava de tê-lo por perto. Essa parte queria consolá-lo, ajudá-lo, beijá-lo e fazer com que ele se arrependesse de todos os seus pecados e simplesmente vivesse uma vida alegre e despreocupada.
Sentia repulsa e desprezo por aquela parte de si mesma, aquela parte tão tola e ingênua. Ele nunca ia mudar. E ela...Bem, ela tinha coisas mais importantes para fazer do que tentar salvar alguém tão distante da salvação.
Parou no meio do quarto e deixou o corpo cair no chão, cansado. Não agüentava mais. Queria dormir e nunca mais acordar. Queria que tudo simplesmente acabasse e ela pudesse ficar em paz. Queria fugir. Sim, queria fugir. Tinha vindo até tão longe para acabar com o seu sofrimento, mas só tinha encontrado mais dor, entre uns poucos intervalos de calma e alegria.
Talvez a paz não estivesse ali, junto a ele, ou junto à sua morte. Talvez, em todo aquele tempo, a alegria e a paz estivessem muito mais perto do que ela imaginava.
Em casa.
Pouco a pouco a chuva diminuiu, até se extinguir por completo, e as nuvens escuras e opressoras no céu começaram a se desfazer.
O mundo estava renascendo.
---
Abriu os olhos vagarosamente, e piscou várias vezes enquanto se acostumava à luz. Luz estranha, que ela não tinha visto por muito tempo. Luz morna e amarelada.
Sentou-se bem ereta no colchão, apesar da dor que sentia por todo o seu corpo. Podia sentir ao seu redor um ar de mudança e renascimento, presente nos tímidos raios de sol que entravam pela janela do quarto, presente no quarto em que ela estava, presente nela mesma.
Respirou fundo, sentindo o ar seco e novo enchendo seus pulmões. Ar de um mundo lavado e purificado depois de meses de chuva interrupta. Por quanto tempo tinha dormido? Em que parte de seu sono profundo ocorreram tais mudanças, que geralmente a despertariam totalmente?
Ainda sob o poder do sono, olhou melhor para o aposento ao seu redor. Um quarto que não era o seu, nem aquele onde ela tinha vivido na casa de Hao. Mas, ainda assim, um quarto conhecido. Lembrou-se vagamente de suas paredes decadentes e de suas goteiras insistentes, uma lembrança que, apesar de parecer distante, vinha de um Natal próximo.
Nem tão próximo assim. Mais uma vez a pergunta veio à sua mente. Por quanto tempo tinha dormido? Não gostava de dormir muito. Dormir, para ela, era perder o controle da realidade ao seu redor e se tornar vulnerável. E Anna Kyôyama era conhecida por controlar tudo ao seu redor. Sempre. Só havia uma pessoa no mundo que podia fazê-la perder o controle.
Olhou para o lado esquerdo, e depois para o direito. De ambos os lados havia dois garotos conhecidos, com os mesmos traços bonitos, os mesmos cabelos castanhos, a mesma respiração calma. Admirada, ficou observando um deles, o de cabelos longos. Mesmo quando dormia tinha um ar mais imponente, rebelde e amargurado. O ar de um rei. O Rei Xamã.
Não queria que ele fosse o rei. Queria se casar com o Rei Xamã mas, acima de tudo, queria viver o resto de seus dias com o outro garoto, com jeito de criança e sorriso doce. Ele sim merecia governar o destino de todos no mundo. Somente ele era bom o suficiente, forte o suficiente, para suportar um fardo tão grande.
Como que incomodado pelo olhar fixo da bruxa, Hao mexeu-se em seu sono e, depois de alguns instantes, acordou.
Ao se deparar com o rosto sério da Anna, o garoto deixou escapar o seu sorriso arrogante de sempre e disse:
- Bom dia, minha queria Anna. É um prazer vê-la finalmente desperta. Fiquei te esperando por muito tempo, sabe? Não foi nada agradável. Por algum motivo, todos aqui parecem não gostar de mim.
- Você devia ir embora. Não tem vergonha de ficar cara a cara com as pessoas cuja vida destruiu?
- Ah! Vejo que voltou ao seu jeito habitual. Tão séria...Gostaria de vê-la sorrindo.
- Meu sorriso pertence a apenas uma pessoa. E você não é ela, Hao.
Os dois ficaram em silêncio por um tempo incalculável, observando o sol entrar languidamente pela janela aberta, as partículas de poeira flutuando em meio ao ar ainda fresco da chuva, as tábuas de madeira do chão rangendo aqui e ali, num retrato de calma e decadência.
- Então você vai desistir de ser a esposa do Rei Xamã? Porque se acha que ele vai conseguir...
- Tenho certeza de que ele pode. Não há ninguém que possa impedi-lo, nem mesmo você.
- Eu sou muito mais forte do que ele.
- Força não é tudo. De que importa a incrível força do seu espírito guardião, se você não tem a coragem necessária para suportar o fardo do Rei Xamã? Você é a pessoa mais covarde que eu já vi e...
- Covarde, eu? – disse Hao, com o orgulho ferido.
- Você mesmo. Tem tanto medo daqueles que são diferentes de você que quer matá-los. Não vê que isso está errado? Eles podem fazer coisas terríveis. Podem estar destruindo a Terra. Mas, ainda assim, o trabalho do Rei Xamã não é eliminar os parasitas do mundo, e sim tentar manter a harmonia, mesmo com a existência deles! Mas o que você poderia saber disso? Tudo o que faz é destruir. Destrói os humanos, destrói as vidas de todos ao seu redor, humilha e machuca qualquer um que tenha o azar de passar pelo seu caminho.
Anna fez uma longa pausa, recuperando o fôlego, olhando para Hao ainda séria, mas com paixão e emoção nos olhos. Pareceu se dar conta da sua aparência, abaixando a cabeça e escondendo o rosto entre o cabelo dourado e desalinhado, envergonhada.
- Então acha que Yoh é a pessoa adequada para isso? Você acha que a pessoa corajosa que vai cuidar desse mundo é a mesma que quer simplesmente viver a vida em paz, sem maiores medos ou preocupações?
- Acredito que sim – disse Anna, levantando a cabeça e recuperando a calma – Ele quer viver em paz sim, mas também quer transformar o mundo num lugar melhor. Basta ver como ele se interessa pelos desejos e sonhos de todos, pelo motivo que traz todos esses xamãs a essa vila pequena e distante para lutar e arriscar sua vida. Somente o Yoh é bom e puro o suficiente para ter esse poder sem ser corrompido. Se o Rei Xamã for outra pessoa...Creio que não haverá esperança para o mundo. Yoh será o Rei Xamã e, se precisar de ajuda, eu estarei lá, sustentando-o e dando-lhe forças para ser como sempre foi.
Hao olhou curioso para Anna. Ela não era a mesma garota que tinha vivido com ele nos últimos tempos. Aquela garota – que mais parecia uma mulher – apaixonada, séria e poderosa em nada se parecia com a quieta e distante menina que ele aprendera a amar e respeitar. Aquela Anna era ainda mais fantástica, mais atraente, mais majestosa.
Um homem poderoso não podia existir sem uma mulher poderosa. E o Rei Xamã não poderia existir sem uma esposa como aquela.
Ele não poderia ser o Rei Xamã sem Anna Kyôyama.
Então, o arrogante e cruel Hao Asakura engoliu seu orgulho, e segurou a mão da jovem à sua frente com delicadeza, fazendo o possível para parecer convincente.
- Anna. Por favor, seja a minha esposa. Eu vou ser o Rei Xamã. Disso você pode ter certeza. Nós fomos feitos um para o outro. Somos tão parecidos...Por favor, Anna Kyôyama. Eu quero você. Eu preciso de você. Por que você não aceitaria minha proposta?
Anna olhou atentamente para o xamã diante dela. Era, sem sombra de dúvida, majestoso, poderoso e imponente. A perfeita imagem do Rei Xamã. Mas havia algo que faltava nele. Só poder não era suficiente. Era necessário também o amor, a serenidade. Fixou seus olhos nos dele, ficando o mais gélida e austera possível, falando calmamente, sabendo que cada uma de suas palavras seria um golpe na alma daquele que ela tanto desprezava.
- Sinto muito, Hao. Não posso me casar com você por um motivo muito simples. O Rei Xamã será Yoh Asakura, e eu o amo.
---
Terminou de guardar seus poucos pertences e olhou pela janela calmamente. Fachos da luz morna e suave do sol passavam por entre as nuvens escuras que, apesar de ainda estarem ali, pareciam já calmas e satisfeitas. O ar estava fresco e delicioso, e o mundo parecia ter acabado de nascer. Das ruas lá embaixo não vinha barulho nenhum, a não ser o do vento, misterioso, mágico, com jeito de que guardava surpresas deliciosas.
Bem, ela não estaria ali para ver aquelas surpresas, pensou, enquanto erguia a sacola e saía do quarto silenciosamente, sem querer fazer alarde com a sua partida. Ou chegada. Não sabia muito bem o que estava fazendo ou em que ponto de sua vida se encontrava, mas estava resolvida a partir. Ansiava pela calma e doçura do lar, mesmo que vazio e repleto de más lembranças. Afinal, havia também as boas. Lembranças de tardes preguiçosas olhando o céu azul e suave, do perfume de pétalas de flores de cerejeira, de brincadeiras sem fim pelas ruas calmas da pacata cidade de interior. Lá tudo parecia doce, acolhedor e deliciosamente irreal, como num filme antigo. Um filme em que ela queria viver, do qual ela queria voltar a fazer parte.
Saiu da pensão, sentindo com prazer os raios de sol em sua pele. No entanto, em sua casa, até o sol parecia mais gentil.
Sentiu alguém passar por ela na saída da pensão. Não precisou nem erguer o olhar para saber quem era. Ela conhecia cada pedaço dele como se fosse dela. Naquele momento, no entanto, não parecia ele mesmo.
Em todas as suas lembranças, Hao era o garoto maduro e indulgente, que a mimava e divertia com histórias, doces e brincadeiras.
Agora ele era uma sombra, perturbada, triste e solitária. Quase sentiu pena dele.
Assim como apareceu, ele sumiu – muito rápido, quase sem ser percebido, e Liberté se viu mais uma vez sozinha no meio da rua. Pôs-se a andar na direção oposta à tomada por Hao, quando viu alguém olhando para ela atentamente da porta da pensão.
- Para onde você vai? – perguntou Lyserg, de um jeito desafiador, quase zangado.
- Para casa. – disse Liberté, o sorriso suave em seu rosto contrastando com expressão irritada do garoto diante dela.
- Que casa? Você me disse que desde que...Desde que seus pais morreram, você ficou vagando por aí sozinha, sem destino certo. A não ser quando ficou um tempo na casa daquela menina...É para lá que você vai?
- Eu tive uma casa antes disso, sabia? Onde eu vivia com os meus pais e um garoto de quem eles cuidavam.
- Mas...
- Pode parecer estranho. Talvez seja coisa da minha cabeça. Mas quando penso na minha casa, sinto que lá tudo era mais suave, gentil, acolhedor. Sinto que lá posso ser feliz de novo.
- E vai simplesmente abandonar tudo que construiu aqui? Você sabe...Os seus amigos...o Ren...
- Eu vou voltar para casa, não morrer, Lyserg. Tenho certeza de que vamos nos ver de novo. Se quiser se sentir mais seguro quanto à minha partida, posso te dar o meu endereço.
- Está bem. – disse ele, mais aliviado e seguro.
Liberté sorriu. Ela estava alegre e confiante, e tinha amigos. Tudo estava voltando a ser como era antes.
Olhou para a pensão, onde estavam seus amigos, machucados, mas ainda dispostos a lutar pelos seus sonhos. Pensou em suas roupas gastas e nos sapatos apertados, em seu ar de criança sem pais. Pensou em Hao e em sua casa vazia, abandonada.
Bem, nem tudo.
---
Olá!
Nossa! Esse capítulo realmente demorou MUITO. Mas tenho lá os meus motivos. Na primeira versão que escrevi, bem rapidinho, a Liberté matava o Hao. Assim, a sangue frio, sem espíritos nem nada do tipo envolvido.
Mas aí achei que a história ia ficar meio estranha e sem sentido. Apesar de ser meio deprimida às vezes, a verdade é que sou romântica, sonhadora e otimista, e quero mesmo é que todos os personagens fiquem felizes no fim. Não quero que Liberté seja uma assassina. Quero dizer, ela matou toda aquela gente nas lutas, mas aquilo foi diferente. Eu quero mesmo é que ela esqueça, ou supere, essa história toda do Hao, e viva feliz e contente.
Assim, eu apaguei tudo, e fiquei meio sem saber o que fazer.
Depois de um tempão MESMO sem idéias boas, ouvi My Immortal pela primeira vez e, apesar de não ser uma grande fã de Evanescence, me emocionei um pouquinho ouvindo essa música, e resolvi que ia voltar a me dedicar à fanfic.
Noites de insônia depois, consegui finalmente terminar, em meio à loucura que anda a escola, e meus compromissos obscuros. Agradeço muuuuuito mesmo a todos aqueles que mandaram reviews (li todas elas várias vezes para me animar, mesmo
achando que boa parte dos elogios são por pena da minha história terrível).
Continuem mandando reviews, eu imploro!
Lady Macbeth
Dava voltas pelo quarto, como um tigre furioso, as mãos no peito oprimido e os olhos cheios de confusão. Queria sair dali o mais rápido possível. Não agüentava mais aquele lugar, onde se sentia tão presa e sufocada. A razão para tal desconforto não tinha nada a ver com o chão molhado, as paredes úmidas e rachadas ou a visível decadência daquela velha pensão. Após meses de chuva, já tinha se acostumado a ter sempre as roupas encharcadas, grudando-se no corpo, e ao pequeno resfriado que não parecia querer abandoná-la de jeito nenhum.
Na verdade, havia poucas coisas que podiam incomodá-la. E uma dessas poucas coisas era a presença dele.
Achava que tinha, senão esquecido, pelo menos superado. Mas bastavam alguns minutos perto dele, agüentando suas palavras arrogantes e seu sarcasmo cruel, para que toda a sua segurança e esperança desaparecessem por completo. A raiva que sentia por ele era ainda mais forte que a raiva que sentia de si mesma, por deixar que o garoto a perturbasse tanto.
Queria destruí-lo, matá-lo. Queria arrancar aquele sorriso debochado de seus lábios e fazer com que ele nunca mais machucasse alguém com suas palavras ou ações.
Mas havia uma outra parte dela, uma parte pequena e tímida, que gostava de tê-lo por perto. Essa parte queria consolá-lo, ajudá-lo, beijá-lo e fazer com que ele se arrependesse de todos os seus pecados e simplesmente vivesse uma vida alegre e despreocupada.
Sentia repulsa e desprezo por aquela parte de si mesma, aquela parte tão tola e ingênua. Ele nunca ia mudar. E ela...Bem, ela tinha coisas mais importantes para fazer do que tentar salvar alguém tão distante da salvação.
Parou no meio do quarto e deixou o corpo cair no chão, cansado. Não agüentava mais. Queria dormir e nunca mais acordar. Queria que tudo simplesmente acabasse e ela pudesse ficar em paz. Queria fugir. Sim, queria fugir. Tinha vindo até tão longe para acabar com o seu sofrimento, mas só tinha encontrado mais dor, entre uns poucos intervalos de calma e alegria.
Talvez a paz não estivesse ali, junto a ele, ou junto à sua morte. Talvez, em todo aquele tempo, a alegria e a paz estivessem muito mais perto do que ela imaginava.
Em casa.
Pouco a pouco a chuva diminuiu, até se extinguir por completo, e as nuvens escuras e opressoras no céu começaram a se desfazer.
O mundo estava renascendo.
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Abriu os olhos vagarosamente, e piscou várias vezes enquanto se acostumava à luz. Luz estranha, que ela não tinha visto por muito tempo. Luz morna e amarelada.
Sentou-se bem ereta no colchão, apesar da dor que sentia por todo o seu corpo. Podia sentir ao seu redor um ar de mudança e renascimento, presente nos tímidos raios de sol que entravam pela janela do quarto, presente no quarto em que ela estava, presente nela mesma.
Respirou fundo, sentindo o ar seco e novo enchendo seus pulmões. Ar de um mundo lavado e purificado depois de meses de chuva interrupta. Por quanto tempo tinha dormido? Em que parte de seu sono profundo ocorreram tais mudanças, que geralmente a despertariam totalmente?
Ainda sob o poder do sono, olhou melhor para o aposento ao seu redor. Um quarto que não era o seu, nem aquele onde ela tinha vivido na casa de Hao. Mas, ainda assim, um quarto conhecido. Lembrou-se vagamente de suas paredes decadentes e de suas goteiras insistentes, uma lembrança que, apesar de parecer distante, vinha de um Natal próximo.
Nem tão próximo assim. Mais uma vez a pergunta veio à sua mente. Por quanto tempo tinha dormido? Não gostava de dormir muito. Dormir, para ela, era perder o controle da realidade ao seu redor e se tornar vulnerável. E Anna Kyôyama era conhecida por controlar tudo ao seu redor. Sempre. Só havia uma pessoa no mundo que podia fazê-la perder o controle.
Olhou para o lado esquerdo, e depois para o direito. De ambos os lados havia dois garotos conhecidos, com os mesmos traços bonitos, os mesmos cabelos castanhos, a mesma respiração calma. Admirada, ficou observando um deles, o de cabelos longos. Mesmo quando dormia tinha um ar mais imponente, rebelde e amargurado. O ar de um rei. O Rei Xamã.
Não queria que ele fosse o rei. Queria se casar com o Rei Xamã mas, acima de tudo, queria viver o resto de seus dias com o outro garoto, com jeito de criança e sorriso doce. Ele sim merecia governar o destino de todos no mundo. Somente ele era bom o suficiente, forte o suficiente, para suportar um fardo tão grande.
Como que incomodado pelo olhar fixo da bruxa, Hao mexeu-se em seu sono e, depois de alguns instantes, acordou.
Ao se deparar com o rosto sério da Anna, o garoto deixou escapar o seu sorriso arrogante de sempre e disse:
- Bom dia, minha queria Anna. É um prazer vê-la finalmente desperta. Fiquei te esperando por muito tempo, sabe? Não foi nada agradável. Por algum motivo, todos aqui parecem não gostar de mim.
- Você devia ir embora. Não tem vergonha de ficar cara a cara com as pessoas cuja vida destruiu?
- Ah! Vejo que voltou ao seu jeito habitual. Tão séria...Gostaria de vê-la sorrindo.
- Meu sorriso pertence a apenas uma pessoa. E você não é ela, Hao.
Os dois ficaram em silêncio por um tempo incalculável, observando o sol entrar languidamente pela janela aberta, as partículas de poeira flutuando em meio ao ar ainda fresco da chuva, as tábuas de madeira do chão rangendo aqui e ali, num retrato de calma e decadência.
- Então você vai desistir de ser a esposa do Rei Xamã? Porque se acha que ele vai conseguir...
- Tenho certeza de que ele pode. Não há ninguém que possa impedi-lo, nem mesmo você.
- Eu sou muito mais forte do que ele.
- Força não é tudo. De que importa a incrível força do seu espírito guardião, se você não tem a coragem necessária para suportar o fardo do Rei Xamã? Você é a pessoa mais covarde que eu já vi e...
- Covarde, eu? – disse Hao, com o orgulho ferido.
- Você mesmo. Tem tanto medo daqueles que são diferentes de você que quer matá-los. Não vê que isso está errado? Eles podem fazer coisas terríveis. Podem estar destruindo a Terra. Mas, ainda assim, o trabalho do Rei Xamã não é eliminar os parasitas do mundo, e sim tentar manter a harmonia, mesmo com a existência deles! Mas o que você poderia saber disso? Tudo o que faz é destruir. Destrói os humanos, destrói as vidas de todos ao seu redor, humilha e machuca qualquer um que tenha o azar de passar pelo seu caminho.
Anna fez uma longa pausa, recuperando o fôlego, olhando para Hao ainda séria, mas com paixão e emoção nos olhos. Pareceu se dar conta da sua aparência, abaixando a cabeça e escondendo o rosto entre o cabelo dourado e desalinhado, envergonhada.
- Então acha que Yoh é a pessoa adequada para isso? Você acha que a pessoa corajosa que vai cuidar desse mundo é a mesma que quer simplesmente viver a vida em paz, sem maiores medos ou preocupações?
- Acredito que sim – disse Anna, levantando a cabeça e recuperando a calma – Ele quer viver em paz sim, mas também quer transformar o mundo num lugar melhor. Basta ver como ele se interessa pelos desejos e sonhos de todos, pelo motivo que traz todos esses xamãs a essa vila pequena e distante para lutar e arriscar sua vida. Somente o Yoh é bom e puro o suficiente para ter esse poder sem ser corrompido. Se o Rei Xamã for outra pessoa...Creio que não haverá esperança para o mundo. Yoh será o Rei Xamã e, se precisar de ajuda, eu estarei lá, sustentando-o e dando-lhe forças para ser como sempre foi.
Hao olhou curioso para Anna. Ela não era a mesma garota que tinha vivido com ele nos últimos tempos. Aquela garota – que mais parecia uma mulher – apaixonada, séria e poderosa em nada se parecia com a quieta e distante menina que ele aprendera a amar e respeitar. Aquela Anna era ainda mais fantástica, mais atraente, mais majestosa.
Um homem poderoso não podia existir sem uma mulher poderosa. E o Rei Xamã não poderia existir sem uma esposa como aquela.
Ele não poderia ser o Rei Xamã sem Anna Kyôyama.
Então, o arrogante e cruel Hao Asakura engoliu seu orgulho, e segurou a mão da jovem à sua frente com delicadeza, fazendo o possível para parecer convincente.
- Anna. Por favor, seja a minha esposa. Eu vou ser o Rei Xamã. Disso você pode ter certeza. Nós fomos feitos um para o outro. Somos tão parecidos...Por favor, Anna Kyôyama. Eu quero você. Eu preciso de você. Por que você não aceitaria minha proposta?
Anna olhou atentamente para o xamã diante dela. Era, sem sombra de dúvida, majestoso, poderoso e imponente. A perfeita imagem do Rei Xamã. Mas havia algo que faltava nele. Só poder não era suficiente. Era necessário também o amor, a serenidade. Fixou seus olhos nos dele, ficando o mais gélida e austera possível, falando calmamente, sabendo que cada uma de suas palavras seria um golpe na alma daquele que ela tanto desprezava.
- Sinto muito, Hao. Não posso me casar com você por um motivo muito simples. O Rei Xamã será Yoh Asakura, e eu o amo.
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Terminou de guardar seus poucos pertences e olhou pela janela calmamente. Fachos da luz morna e suave do sol passavam por entre as nuvens escuras que, apesar de ainda estarem ali, pareciam já calmas e satisfeitas. O ar estava fresco e delicioso, e o mundo parecia ter acabado de nascer. Das ruas lá embaixo não vinha barulho nenhum, a não ser o do vento, misterioso, mágico, com jeito de que guardava surpresas deliciosas.
Bem, ela não estaria ali para ver aquelas surpresas, pensou, enquanto erguia a sacola e saía do quarto silenciosamente, sem querer fazer alarde com a sua partida. Ou chegada. Não sabia muito bem o que estava fazendo ou em que ponto de sua vida se encontrava, mas estava resolvida a partir. Ansiava pela calma e doçura do lar, mesmo que vazio e repleto de más lembranças. Afinal, havia também as boas. Lembranças de tardes preguiçosas olhando o céu azul e suave, do perfume de pétalas de flores de cerejeira, de brincadeiras sem fim pelas ruas calmas da pacata cidade de interior. Lá tudo parecia doce, acolhedor e deliciosamente irreal, como num filme antigo. Um filme em que ela queria viver, do qual ela queria voltar a fazer parte.
Saiu da pensão, sentindo com prazer os raios de sol em sua pele. No entanto, em sua casa, até o sol parecia mais gentil.
Sentiu alguém passar por ela na saída da pensão. Não precisou nem erguer o olhar para saber quem era. Ela conhecia cada pedaço dele como se fosse dela. Naquele momento, no entanto, não parecia ele mesmo.
Em todas as suas lembranças, Hao era o garoto maduro e indulgente, que a mimava e divertia com histórias, doces e brincadeiras.
Agora ele era uma sombra, perturbada, triste e solitária. Quase sentiu pena dele.
Assim como apareceu, ele sumiu – muito rápido, quase sem ser percebido, e Liberté se viu mais uma vez sozinha no meio da rua. Pôs-se a andar na direção oposta à tomada por Hao, quando viu alguém olhando para ela atentamente da porta da pensão.
- Para onde você vai? – perguntou Lyserg, de um jeito desafiador, quase zangado.
- Para casa. – disse Liberté, o sorriso suave em seu rosto contrastando com expressão irritada do garoto diante dela.
- Que casa? Você me disse que desde que...Desde que seus pais morreram, você ficou vagando por aí sozinha, sem destino certo. A não ser quando ficou um tempo na casa daquela menina...É para lá que você vai?
- Eu tive uma casa antes disso, sabia? Onde eu vivia com os meus pais e um garoto de quem eles cuidavam.
- Mas...
- Pode parecer estranho. Talvez seja coisa da minha cabeça. Mas quando penso na minha casa, sinto que lá tudo era mais suave, gentil, acolhedor. Sinto que lá posso ser feliz de novo.
- E vai simplesmente abandonar tudo que construiu aqui? Você sabe...Os seus amigos...o Ren...
- Eu vou voltar para casa, não morrer, Lyserg. Tenho certeza de que vamos nos ver de novo. Se quiser se sentir mais seguro quanto à minha partida, posso te dar o meu endereço.
- Está bem. – disse ele, mais aliviado e seguro.
Liberté sorriu. Ela estava alegre e confiante, e tinha amigos. Tudo estava voltando a ser como era antes.
Olhou para a pensão, onde estavam seus amigos, machucados, mas ainda dispostos a lutar pelos seus sonhos. Pensou em suas roupas gastas e nos sapatos apertados, em seu ar de criança sem pais. Pensou em Hao e em sua casa vazia, abandonada.
Bem, nem tudo.
---
Olá!
Nossa! Esse capítulo realmente demorou MUITO. Mas tenho lá os meus motivos. Na primeira versão que escrevi, bem rapidinho, a Liberté matava o Hao. Assim, a sangue frio, sem espíritos nem nada do tipo envolvido.
Mas aí achei que a história ia ficar meio estranha e sem sentido. Apesar de ser meio deprimida às vezes, a verdade é que sou romântica, sonhadora e otimista, e quero mesmo é que todos os personagens fiquem felizes no fim. Não quero que Liberté seja uma assassina. Quero dizer, ela matou toda aquela gente nas lutas, mas aquilo foi diferente. Eu quero mesmo é que ela esqueça, ou supere, essa história toda do Hao, e viva feliz e contente.
Assim, eu apaguei tudo, e fiquei meio sem saber o que fazer.
Depois de um tempão MESMO sem idéias boas, ouvi My Immortal pela primeira vez e, apesar de não ser uma grande fã de Evanescence, me emocionei um pouquinho ouvindo essa música, e resolvi que ia voltar a me dedicar à fanfic.
Noites de insônia depois, consegui finalmente terminar, em meio à loucura que anda a escola, e meus compromissos obscuros. Agradeço muuuuuito mesmo a todos aqueles que mandaram reviews (li todas elas várias vezes para me animar, mesmo
achando que boa parte dos elogios são por pena da minha história terrível).
Continuem mandando reviews, eu imploro!
Lady Macbeth
