Génova, Itália, 1911
Receio e dúvida assolavam todo o cais de forma exorbitante. As centenas de pessoas que esperavam pela entrada no navio agachavam-se a um canto afligidas, ou para espantar o nervosismo, cantavam e dançavam, assim distraindo-se. O sol que arruinara as colheitas de muitos, contribuía para um calor imenso e mostrava-se agora mais impiedoso do que nunca.
O Brasil era um país melhor, dizia-se. Uma terra abençoada por Deus, onde não faltavam oportunidades. Oportunidades para aqueles a quem a sorte não sorrira e obrigava a procurar algo melhor. Pelo menos o mínimo para sobreviver...
Os porões já estavam prontos para os receber, gritou alguém num italiano muito artificial e não muito correcto. No entanto, toda a gente entendera, quer pelas palavras, quer pelos gestos que alguns indivíduos faziam.
Como se era de esperar, todos foram-se levantando e formando uma fila muito lentamente, como se lhes estivesse a custar sair da sua terra natal, mesmo quando esta não lhes trouxera nada, a não ser desgostos.
Quando já quase todas as famílias já haviam entrado, surgiu uma última, visivelmente atrapalhada.
"Andiamo, ragazza! Siamo in ritardo!" disse quem parecia ser o chefe da família. Mario era o seu nome. Atrás dele seguia uma mulher, mais ou menos da mesma idade, que trazia pela mão um pequeno rapaz muito magro, com o cabelo pelos ombros, com cerca de dez anos.
No fim vinha uma jovem rapariga magra e alta, que não deveria ter muito mais do que 20 anos. Tinha cabelos negros que lhe chegavam até à cintura e uns grandes olhos castanhos. O seu nome era Silvia.
"Sto venendo, padre!" disse a rapariga tentando acompanhá-los.
O cansaço dos seus rostos mostrava que haviam caminhado muito até chegarem à costa, especialmente as mulheres.
"E recordisi di, parli in inglese tutto il tempo!" recomendou o homem.
"Si, padre" respondeu Silvia
"E Giuseppe," disse o pai de ambos "sia silenzioso!"
"Si, papa."
O silêncio era, pois, aconselhável, a uma criança que não soubesse uma única palavra em inglês. Os responsáveis do navio podiam pensar que os emigrantes falavam em italiano para que eles não entendessem. Mario ouvira histórias dessas que haviam terminado muito mal...
"Estão atrasados!" resmungou o último homem que esperava os emigrantes
"Viemos de Milão." Explicou Mario calmamente "É bastante longe..."
"Eu sei onde fica Milão!" voltou o homem visivelmente chateado
"Perdão, Sr..." pediu desta vez a mulher humildemente
"Vá entrem."
Mario deu a mão à sua esposa e puxou-a "Vamos, Loredana." murmurou
Depois da entrada desta família, o navio permaneceu atracado durante algumas dezenas de minutos até finalmente começar a sua longa viagem que atravessaria o mar Mediterrâneo e o oceano Atlântico até chegar ao continente Americano.
As condições dentro dos porões eram piores do que o mais pobre camponês podia imaginar. Higiene era inexistente, comida, muito pouca e o ar quase irrespirável. Não havia espaço suficiente para toda a gente dormir portanto todos os dias algumas dezenas de pessoal pernoitavam no convés ao relento, rezando para que não chovesse, pois a propagação de doenças era fácil e rápida.
Durante a sua noite no convés, Silvia observou, para a sua aflição, o modo rápido como várias nuvens se agrupavam mesmo por cima de si e o vento a começar a soprar mais forte.
Embrulhada no seu xaile, viu de relance algo no céu que quase a fez levantar de curiosidade. No princípio parecia um morcego, mas observando melhor, concluiu que não passava de mais uma nuvem com uma forma esquisita.
Exausta e sonolenta, Silvia deixou-se levar pelo cansaço e adormeceu.
No dia seguinte, a rapariga acordou ouvindo o seu nome.
"Colloca!" alguém gritava de não muito longe.
Levantou a cabeça de um saco de farinha e olhou em deu redor. Por momentos julgou-se ainda a dormir, pois achou-se novamente no porão, rodeada de pessoas. Não tinha dormido no convés? Ao seu lado encontrou Giuseppe, que dormia profundamente.
"Colloca!" voltou a ouvir.
Ao olhar para cima, viu um dos marinheiros no topo das escadas com uma cara pouco contente, preocupada até.
"Sou eu" informou-o levantando o braço.
"Vem cá acima" comandou "Agora."
Silvia levantou-se dorida e confusa e deu um pequeno grito sufocado ao ver pingas de sangue no seu vestido. Sangue. Como teria lá ido parar? Não estava ferida.
Ao subir a escada, Silvia tremia sem saber porquê. Ansiosa por chegar à superfície, falhou em reparar que também as escadas estavam salpicadas de sangue.
Chegando lá acima, a rapariga deu com um cenário inesperado: o convés encontrava-se todo molhado e uma das velas parcialmente rota. Parecia ter havido uma tempestade durante a noite e ela nem tinha dado por isso. Teria, se tivesse dormido ao relento...
Perto de um dos mastros um outro marinheiro levantava-se perante dois corpos, tapando a boca com a roupa. Antes de poder ver quem jazia no chão, Silvia foi agarrada pelo homem que a chamara "Porque não nos disseste que eles estavam doentes?"
"O quê? Quem?"
O homem abanou-a violentamente "Não te faças de desentendida! Agora estão mortos! Não resistiram à chuva e ao frio."
Silvia tremeu dos pés à cabeça imaginando o pior "Quem morreu?"
Mas a sua imaginação não fez justiça àquele cenário. Ao olhar para os corpos estendidos no chão, a rapariga reconheceu os seus pais. Silvia sentiu o seu coração ser arrancado. As suas pernas perderam instantaneamente a força e deixou-se cair de joelhos.
Sentindo-se completamente perdida e sozinha, arrastou-se até aos corpos dos pais. As suas lágrimas confundiam-se com a chuva que começara a cair e o vento forte que elevava os seus cabelos parecia chorar com ela.
Os rostos dos falecidos estavam pálidos e detinham uma expressão aterrorizada. Os seus corpos estavam gélidos como se a morte tivesse tomado conta deles há dias e não apresentavam quaisquer sinais de ferimento.
"Não te aproximes!" ordenou o homem que tapava a boca "Eles têm a peste!"
O choro, a chuva, a sua respiração acelerada, a dor, tudo a sufocava "Não! Eles estavam bem!" gritou
O outro homem rosnou de raiva e puxou Silvia para cima pelos cabelos "Não mintas, sua imunda! Agora outras pessoas poderão estar infectadas, incluindo tu, minha ignorante. Sabes que agora podemos todos morrer? Sabes?!"
Mesmo fazendo uma pergunta, o homem não lhe deu hipótese de responder pois apertava-lhe o pescoço, quase não a deixando respirar.
Vendo isto, o outro homem, o mais velho, fez notar a sua autoridade e disse "Larga-a, Jack. Queres matá-la?"
"Bem o merecia, Haggis..." retorquiu Jack empurrando-a para o chão "Por mim, atirava-a ao mar como a eles. Odeio emigrantes" acrescentou num murmúrio.
Silvia, depois de recuperar o ar, abraçou-se, sentindo pela primeira vez o vento frio na sua pele descoberta "Mar?" perguntou quando conseguiu reencontrar a voz.
Haggis ajudou a levantá-la do chão e puxou-a para ele "Tens frio, italiana?" perguntou ignorando completamente a pergunta da rapariga.
Silvia tentou em vão libertar-se. A força do homem era imensa em comparação com a dela e ele tinha as mãos bem presas à volta da sua cintura. Ela fechou os olhos, sentindo um ódio e nojo tremendos. Preferia morrer de vez, a suportar o que o homem certamente lhe iria fazer...
Receio e dúvida assolavam todo o cais de forma exorbitante. As centenas de pessoas que esperavam pela entrada no navio agachavam-se a um canto afligidas, ou para espantar o nervosismo, cantavam e dançavam, assim distraindo-se. O sol que arruinara as colheitas de muitos, contribuía para um calor imenso e mostrava-se agora mais impiedoso do que nunca.
O Brasil era um país melhor, dizia-se. Uma terra abençoada por Deus, onde não faltavam oportunidades. Oportunidades para aqueles a quem a sorte não sorrira e obrigava a procurar algo melhor. Pelo menos o mínimo para sobreviver...
Os porões já estavam prontos para os receber, gritou alguém num italiano muito artificial e não muito correcto. No entanto, toda a gente entendera, quer pelas palavras, quer pelos gestos que alguns indivíduos faziam.
Como se era de esperar, todos foram-se levantando e formando uma fila muito lentamente, como se lhes estivesse a custar sair da sua terra natal, mesmo quando esta não lhes trouxera nada, a não ser desgostos.
Quando já quase todas as famílias já haviam entrado, surgiu uma última, visivelmente atrapalhada.
"Andiamo, ragazza! Siamo in ritardo!" disse quem parecia ser o chefe da família. Mario era o seu nome. Atrás dele seguia uma mulher, mais ou menos da mesma idade, que trazia pela mão um pequeno rapaz muito magro, com o cabelo pelos ombros, com cerca de dez anos.
No fim vinha uma jovem rapariga magra e alta, que não deveria ter muito mais do que 20 anos. Tinha cabelos negros que lhe chegavam até à cintura e uns grandes olhos castanhos. O seu nome era Silvia.
"Sto venendo, padre!" disse a rapariga tentando acompanhá-los.
O cansaço dos seus rostos mostrava que haviam caminhado muito até chegarem à costa, especialmente as mulheres.
"E recordisi di, parli in inglese tutto il tempo!" recomendou o homem.
"Si, padre" respondeu Silvia
"E Giuseppe," disse o pai de ambos "sia silenzioso!"
"Si, papa."
O silêncio era, pois, aconselhável, a uma criança que não soubesse uma única palavra em inglês. Os responsáveis do navio podiam pensar que os emigrantes falavam em italiano para que eles não entendessem. Mario ouvira histórias dessas que haviam terminado muito mal...
"Estão atrasados!" resmungou o último homem que esperava os emigrantes
"Viemos de Milão." Explicou Mario calmamente "É bastante longe..."
"Eu sei onde fica Milão!" voltou o homem visivelmente chateado
"Perdão, Sr..." pediu desta vez a mulher humildemente
"Vá entrem."
Mario deu a mão à sua esposa e puxou-a "Vamos, Loredana." murmurou
Depois da entrada desta família, o navio permaneceu atracado durante algumas dezenas de minutos até finalmente começar a sua longa viagem que atravessaria o mar Mediterrâneo e o oceano Atlântico até chegar ao continente Americano.
As condições dentro dos porões eram piores do que o mais pobre camponês podia imaginar. Higiene era inexistente, comida, muito pouca e o ar quase irrespirável. Não havia espaço suficiente para toda a gente dormir portanto todos os dias algumas dezenas de pessoal pernoitavam no convés ao relento, rezando para que não chovesse, pois a propagação de doenças era fácil e rápida.
Durante a sua noite no convés, Silvia observou, para a sua aflição, o modo rápido como várias nuvens se agrupavam mesmo por cima de si e o vento a começar a soprar mais forte.
Embrulhada no seu xaile, viu de relance algo no céu que quase a fez levantar de curiosidade. No princípio parecia um morcego, mas observando melhor, concluiu que não passava de mais uma nuvem com uma forma esquisita.
Exausta e sonolenta, Silvia deixou-se levar pelo cansaço e adormeceu.
No dia seguinte, a rapariga acordou ouvindo o seu nome.
"Colloca!" alguém gritava de não muito longe.
Levantou a cabeça de um saco de farinha e olhou em deu redor. Por momentos julgou-se ainda a dormir, pois achou-se novamente no porão, rodeada de pessoas. Não tinha dormido no convés? Ao seu lado encontrou Giuseppe, que dormia profundamente.
"Colloca!" voltou a ouvir.
Ao olhar para cima, viu um dos marinheiros no topo das escadas com uma cara pouco contente, preocupada até.
"Sou eu" informou-o levantando o braço.
"Vem cá acima" comandou "Agora."
Silvia levantou-se dorida e confusa e deu um pequeno grito sufocado ao ver pingas de sangue no seu vestido. Sangue. Como teria lá ido parar? Não estava ferida.
Ao subir a escada, Silvia tremia sem saber porquê. Ansiosa por chegar à superfície, falhou em reparar que também as escadas estavam salpicadas de sangue.
Chegando lá acima, a rapariga deu com um cenário inesperado: o convés encontrava-se todo molhado e uma das velas parcialmente rota. Parecia ter havido uma tempestade durante a noite e ela nem tinha dado por isso. Teria, se tivesse dormido ao relento...
Perto de um dos mastros um outro marinheiro levantava-se perante dois corpos, tapando a boca com a roupa. Antes de poder ver quem jazia no chão, Silvia foi agarrada pelo homem que a chamara "Porque não nos disseste que eles estavam doentes?"
"O quê? Quem?"
O homem abanou-a violentamente "Não te faças de desentendida! Agora estão mortos! Não resistiram à chuva e ao frio."
Silvia tremeu dos pés à cabeça imaginando o pior "Quem morreu?"
Mas a sua imaginação não fez justiça àquele cenário. Ao olhar para os corpos estendidos no chão, a rapariga reconheceu os seus pais. Silvia sentiu o seu coração ser arrancado. As suas pernas perderam instantaneamente a força e deixou-se cair de joelhos.
Sentindo-se completamente perdida e sozinha, arrastou-se até aos corpos dos pais. As suas lágrimas confundiam-se com a chuva que começara a cair e o vento forte que elevava os seus cabelos parecia chorar com ela.
Os rostos dos falecidos estavam pálidos e detinham uma expressão aterrorizada. Os seus corpos estavam gélidos como se a morte tivesse tomado conta deles há dias e não apresentavam quaisquer sinais de ferimento.
"Não te aproximes!" ordenou o homem que tapava a boca "Eles têm a peste!"
O choro, a chuva, a sua respiração acelerada, a dor, tudo a sufocava "Não! Eles estavam bem!" gritou
O outro homem rosnou de raiva e puxou Silvia para cima pelos cabelos "Não mintas, sua imunda! Agora outras pessoas poderão estar infectadas, incluindo tu, minha ignorante. Sabes que agora podemos todos morrer? Sabes?!"
Mesmo fazendo uma pergunta, o homem não lhe deu hipótese de responder pois apertava-lhe o pescoço, quase não a deixando respirar.
Vendo isto, o outro homem, o mais velho, fez notar a sua autoridade e disse "Larga-a, Jack. Queres matá-la?"
"Bem o merecia, Haggis..." retorquiu Jack empurrando-a para o chão "Por mim, atirava-a ao mar como a eles. Odeio emigrantes" acrescentou num murmúrio.
Silvia, depois de recuperar o ar, abraçou-se, sentindo pela primeira vez o vento frio na sua pele descoberta "Mar?" perguntou quando conseguiu reencontrar a voz.
Haggis ajudou a levantá-la do chão e puxou-a para ele "Tens frio, italiana?" perguntou ignorando completamente a pergunta da rapariga.
Silvia tentou em vão libertar-se. A força do homem era imensa em comparação com a dela e ele tinha as mãos bem presas à volta da sua cintura. Ela fechou os olhos, sentindo um ódio e nojo tremendos. Preferia morrer de vez, a suportar o que o homem certamente lhe iria fazer...
