Um enorme estrondo atrás deles fez Haggis largá-la. Uma terrível criatura aterrara no convés, fazendo o casco partir-se. Silvia tapou os olhos horrorizada, mas ainda teve tempo de ver as suas enormes asas e membros e dentes afiados.

O morcego do dia anterior, pensou.
Quando teve coragem e voltou a olhar, não estava perante monstro algum, mas sim um homem. Um homem de vestes escuras, alto e cujo rosto era imperceptível. As nuvens cinzentas carregadas de água pareciam ter coberto todo o céu impedindo qualquer raio de sol penetrar.
Por isso, quando o homem pegou em Jack pelo pescoço e o elevou no ar, Silvia não conseguiu ver os seus baços olhos vermelhos e dentes afiados como agulhas aparecerem. Ouvindo apenas o seu coração, que batia nos seus ouvidos como um tambor, Silvia também não conseguiu perceber o que o homem de negro dizia ao outro.

"Tentavas sufocá-la?" perguntava ele calmamente com um pesado sotaque de Leste.
Não esperou resposta e continuou com um tom baixo e perigoso "Que faço contigo agora? Já sei. Que tal fazer-te o que tencionavas fazer-lhe a ela?"
O medo de Jack atingiu um novo patamar ao ouvir esta sugestão, mas pela sua garganta já não havia espaço para deixar escapar qualquer som, quanto mais um pedido de misericórdia.
Propositadamente de costas viradas para Silvia, o homem fez crescer as suas unhas, transformando-as em pontiagudas garras e enterrou-as no pescoço de Jack lentamente. Este, já sem ar, sucumbiu ao sufoco e dor.
Ia já morto quando o homem de negro o atirou borda fora.

Silvia deu um pequeno grito e enterrou a cabeça no regaço. Não queria ver mais nada. Por momentos pensou que o seu coração fosse parar com tanto medo e agonia.

Cego de ódio e sede de vingança, o homem aproximou-se de Haggis (que havia paralisado completamente com medo), pegou-o pelos colarinhos e encostou-o ao mastro central do navio "Atreveste-te a tocá-la... as tuas mãos não tocarão em mais nada." assegurou.

"Não..." chorava Silvia ainda com o rosto escondido "Vai embora..." O misterioso homem tirou os olhos da sua vítima e olhou Silvia pela primeira vez.
Ela estava com medo, medo dele...

Depois de atirar com Haggis para uma parte mais alta do convés (Haggis voou alguns metros foi embater numa porta, entrando por uma cabine a dentro), o homem de negro ajoelhou-se ao lado de Silvia e colocou uma mão no seu ombro. Esta levantou a cabeça e fitou-o. Era um belo homem com certeza. O seu cabelo era negro como o dela, dava-lhe pelos ombros e estava apanhado atrás. As suas feições eram deveras suaves, mas sofridas. Os seus olhos irradiavam carinho e ao mesmo tempo ódio, sabedoria, maldade...
Silvia sentiu-se segura, mas não soube explicar porquê. O rosto dele era- lhe familiar, o que era difícil de compreender, quanto mais explicar...

A rapariga deu com ela a tocar a face do homem com a ponta dos dedos e recuou imediatamente quando ele lhe falou pela primeira vez:
"Verona..." disse com uma voz abafada Ao contrário do que se podia esperar, Silvia não estranhou aquele nome, muito pelo contrário, sentiu uma familiaridade com ele, que nem que aquele fosse o dia mais feliz da sua vida, ia conseguir perceber porquê.
O homem pareceu sorrir e a chuva começou a cessar gradualmente. Estranhamente, a Natureza parecia estar de acordo com o seu humor.
Quando ele colocou ambas as mãos no seu rosto e lhe sorriu, enxugando- lhe as lágrimas, Silvia esqueceu tudo: a morte dos seus pais, o seu pobre irmão agora órfão, os dois homens, o vento gelado no seu corpo...

"Vem comigo," pediu o homem.
Porque o fazia não tinha bem a certeza. Ele podia facilmente levá-la quando bem quisesse ou então fazê-la querer, mas por alguma razão, ele desejava que ela fosse por vontade própria.

Iria Silvia algum dia descobrir por que se sentia tão protegida perto de um homem que nem sequer conhecia? Ou será que conhecia?

Ainda tremendo, a jovem assentiu. Ao contrário dele, o homem sorriu calorosamente e puxou-a para cima, ajudando-a a levantar-se.
Como para compensar a baixa temperatura do seu corpo, o homem olhou de relance para o horizonte e uma suave e morna brisa soprou envolvendo Silvia. Era o único modo que ele possuía para aquecê-la. Ela estava quase tão gélida quanto ele.
A única diferença era que ele era um morto-vivo com uma experiência de mais de 400 anos e ela uma simples humana (pelo menos por enquanto) que naquele particular momento se encontrava no limite das suas forças.

"Sofreste mais do que era necessário." Silvia ouviu-o dizer. A sua voz era suave mas ao mesmo tempo forte e envolvente "Deixa-me compensar-te."
Silvia deixou-se ser abraçada e, fechando os olhos, não viu o homem admirar o seu pescoço expressando subtilmente uma adoração antiga. Muito mais antiga do que Silvia ou qualquer outro mortal pudesse imaginar.
Capacidade de compreensão e de raciocínio era algo que Silvia já não possuía ou a detinha muito fraca. O que sabia era que estava sozinha no mundo, à excepção de... Quem é que ela tinha mais, mesmo? Não se lembrava bem...
Também não importava mais. A única pessoa que lhe importava agora era o homem à sua frente e tudo o que ele lhe tinha para oferecer.
Quase como por instinto, Silvia inclinou a cabeça para o lado oferecendo- lhe...

Lembrou-se que havia algo que lhe podia oferecer, algo que poucas pessoas fariam por vontade própria, pois abdicaria de algo que jamais poderia recuperar. Mas sabia que era a coisa certa a fazer. Sabia que dentro de momentos toda a infelicidade desvanecer-se-ia...

O homem sentiu uma quase alegria ao constatar a rendição da rapariga e ao afastar o seu longo cabelo para trás do ombro, beijou-lhe o rosto carinhosamente.
Silvia sentiu depois os lábios gelados do enigmático homem no seu pescoço, o que lhe provocou um arrepio que quase a fez perder a forças nas pernas. De qualquer modo ela sabia que ele a seguraria se caísse...

"Minha querida..." ele sussurrou ao seu ouvido "Terás uma breve sensação de dor... Mas depois..."
"Eu sei." assegurou Silvia ainda de olhos fechados e completamente perdida no seu cheiro, no seu toque, na sua voz...

O homem sorriu mais uma vez e fechando também os olhos, fez os seus dentes caninos crescerem. Depois roçou os lábios na pele suave do pescoço da rapariga e lá enterrou os seus afiados dentes até sentir sangue. Silvia deu um pequeno gemido de dor, sentindo o seu sangue ser sugado e abraçou-o ao sentir as forças abandonarem-na.

O vampiro largou o seu pescoço ao senti-la fraquejar "Verona..." chamou, vendo-a com os olhos semicerrados e com a respiração lenta e descoordenada.
Mesmo já com a visão um pouco turva, Silvia conseguiu reconhecer e cheirar o seu sangue que jorrava da boca do homem, por isso puxou-o para ela como se precisasse daquilo para sobreviver e lambeu os lábios dele sedenta de sangue.

Era a partir deste momento, ela lembrou-se. Com este gesto ela 'assinava' a sua maldição. A partir daqui mais nada a podia salvar. Mas quereria ela ser salva?

Depois disto e ainda insatisfeita, capturou os lábios dele com os dela e beijou-o. Não como sinal de afecto mas sim querendo provar o seu próprio sangue uma vez mais.
Mesmo sendo aquele gesto de seu agrado, o vampiro quebrou o beijo e olhou para a mulher nos seus braços. Os seus olhos tinham adquirido um azul claro brilhante e os seus caninos haviam crescido como os dele. Ela estava preparada.

"Mais..." implorou Silvia "Quero..."

"Shh, não te desgastes mais, minha querida. Terás mais. Terá tudo o que eu tenho" assegurou-lhe "Tudo."

Com isto o conde Vladislaus Drácula fez algo que nunca fizera em toda a sua longa existência: levou o seu pulso à boca e mordeu-se a si próprio. Ao ver o seu sangue escorrer pelo braço, ofereceu-o a Silvia que o aceitou sem hesitar.

"Não perfures a minha carne, Verona." avisou "apenas suga."
Silvia não respondeu, apenas bebeu. Agora sabia que nunca deveria morder o seu amo porque...
A rapariga largou o pulso de Drácula e olhou-o nos olhos. Compreensão e receio espelhados no seu rosto fez o vampiro sorrir como que para reconfortá-la e descansá-la.
Silvia sabia agora tantas coisas, tinha tantas lembranças.

"Confio em ti, minha querida. Por favor alimenta-te. Temos uma longa viagem à nossa frente. Precisarás de todas as tuas forças."
Silvia obedeceu sem pronunciar palavra e bebeu por mais alguns momentos até sentir uma enorme sonolência que a fez parar.

"Podes dormir, meu amor. Quando abrires os olhos novamente, sentir-te-às melhor. Prometo."

A última coisa que a, agora, vampira viu antes de adormecer foi o rosto do seu mestre. E que belo rosto tinha ele, pensou ao deixar o cansaço levar a melhor com ela.