Um buda escolhe a sua herdeira

by Ayan Ithildin

O rapaz sacudiu os cabelos louros aborrecido. O moreno que estava ao seu lado notou-o e sorriu-lhe. Mas a face do outro continuava séria. Não, não séria. A palavra correcta seria impassível. Aioria saiu da loja em que entrara e olhou os dois companheiros, fazendo-lhes sinal que o seguissem. Compras com os dois maiores vaidosos do templo, que os deuses tivessem piedade dele, coitado. Miro e Aioria faziam um enorme espalhafato com as contas enquanto desciam a rua direita de Atenas. E depois ele é que era loiro. Se tivesse ficado a meditar ganhava mais. Mas não, tinha que ser simpático. Buda! Aioria puxou-o por um braço na direcção da porta que Miro abrira. Oh, não! Era a quarta "bebida para refrescar" da última hora.

            O local era abafado, cheirava a mofo. Wow, outra vez problemas com o seu nariz sensível. Sentaram-se a uma mesa, onde foram servidos por um homem gordo, dando ares de musculosa gordura e de cheiro desagradável. Impassível, o loiro torceu o nariz para dentro. É que nem se dera ao trabalho de abrir os olhos… Aioria e Miro mandaram vir um jarro de vinho fresco, mas ele não pediu nada. Sinceramente, era espantoso como ambos estavam numa óptima forma física com os litros de álcool que tinham no sangue. Já mentalmente era outra história, pensou maliciosamente. De modos bruscos, o homem deixou o jarro e dois copos em cima da mesa.

            Seis essências entraram na taberna. Na realidade eram quatro homens e uma mulher grávida. Sentaram-se numa mesa próxima e pediram vinho barato, que só o cheiro fazia o rapaz ficar maldisposto, mesmo àquela distância. Aborrecido, perguntou aos amigos se não se podiam despachar, já que o próximo turno era dele. Um dos homens da outra mesa deu um toque no que estava ao seu lado e os outros também prestaram atenção. Ele sentiu os seus espíritos tornarem-se agressivos. Athena! Mas todas as saídas com aqueles dois acabavam no mesmo? Um dos homens pigarreou para chamar a atenção

 E troçou:

            - Então os cavaleiros da treta resolveram aparecer… - nenhum dos três respondeu -  Vocês já deviam saber que não gostamos que desçam cá abaixo…

            - Não gostas tu – troçou Miro – não sei se a tua mulher concorda. – Aioria volveu-se em gargalhadas, pois deviam ter tocado no ponto, a avaliar pela cara dos homens. O loiro disse-lhes novamente para se virem embora.

            - Ah, com medinho? Agora também trazem crianças convosco, será que os respeitáveis cavaleiros deram em ensinar os vícios da vida aos aprendizes?

            Shaka permitiu-se a um sorriso. Claro, com 25 anos ele ainda parecia uma criança ao lado dos outros dois a quem a idade parecia transpor ao nível das hormonas. Ele sempre fora magro, não muito musculado, e a realidade é que a dieta e a vida rigorosa a que se predispunha dava-lhe aqueles ares de jovem adulto. O mesmo pensamento correu pelas mentes dos companheiros que se riam. O indiano abanou a cabeça, levantou-se e pediu para se virem embora, desta vez num tom de comando amigável.

            - E ainda por cima cego! De facto, ser-se cavaleiro deve ser maravilhoso, já que um inválido passa por herói…

            Shaka voltou-se para ele, os olhos fechados, o rosto de novo impassível. Não seria preciso grande espalhafato. O rosto do enorme homem começou a ficar sério, passou a uma expressão de medo, terror e, por fim, agonia, começado a gritar, agarrado à cabeça. Os outros levantaram-se assustados, olharam para Shaka, agarraram o outro por debaixo dos braços e arrastaram-no para fora dali. O loiro voltou-se para os companheiros que se riam. O riso morreu com a cara séria dele. Levantaram-se, pagaram e saíram.

            - Porra, Shaka! – protestou Miro – Não se pode brincar um bocado?

            - Eu não brinco com estas coisas.

            - Tu não brincas com nada… - resmungou Aioria entre dentes.

            - Isso não é verdade! Eu… - Shaka parou, virou-se  para trás e os seus olhos fechados pareceram fixar-se numa rua secundária.

            - O que foi? Shaka? Shaka! – os companheiros seguiram-no pela rua e foram desembocar a uma praça de comércio local. Mas ele dirigiu-se às traseiras dos estabelecimentos, onde uma rapariga nova transportava caixotes de madeira com restos de verduras, plásticos e outros detritos provenientes de um pequeno mercado. Sentado num dos caixotes, observando o seu trabalho, estava um pequeno de 5 ou 6 anos. Ela voltou lá dentro, e nesse espaço uns quantos rapazes surgiram pelo outro lado da rua e começaram-se a meter com a criança. Aioria, que adorava crianças, moveu-se, mas Shaka fez-lhe menção que ficasse quieto. Atraída pelo choro do miúdo, a rapariguinha voltou com um novo caixote e deparou-se com o grupo. Olhou-os demoradamente, e, com a mesma demora, depositou o caixote no chão, fazendo em seguida sinal à criança para que fosse para dentro. Mal o miúdo se começou a mover, um dos rapazes maiores segurou-o por um braço e disse qualquer coisa à rapariga que fez os outros rirem-se. Impassível, ela pediu-lhes que soltassem o miúdo e se fossem embora. Eles limitaram-se a rir, e o rapaz apertou com força o ombro do rapazinho que começou a chorar. Os olhos dela moveram-se lentamente para a mão dele, que se contorceu num ângulo esquisito. Ele gritou de dores e gritou ainda mais quando os olhos dela encontraram os dele, caindo de joelhos no chão, agarrando a cabeça com as mãos. O miúdo correu lá para dentro e os outros cercaram a rapariga, que, com um esforço aparente, fê-los cair todos de joelhos, agarrados à cabeça. Então eles sentiram um tímido erguer de um pequeno cosmos. Gritos vieram de dentro da porta, assustando-a e fazendo-a perder o controlo; os rapazes correram dali para fora, um homem seco, seguido de uma quantidade de pessoas, começou a discutir em grego cerrado com a rapariga, que suava cansada. Ela começou a andar na direcção dos três amigos, sempre seguida pelas outras pessoas, que agora se lançavam em ditos contra ela. Ela olhou o homem uma última vez, suspirou e foi-se embora.

            À insistência telepática de Shaka, Miro perguntou ao homem quem era a rapariga.

            - Uma esquisita que assusta as crianças e as pessoas com umas coisas que consegue fazer, enfim, não sei, mas pensar que lhe dei trabalho! – ao que uma velha lhe respondeu que ele era generosos demais, fazendo-o quase rebentar de orgulho. Sim, Miro entendia, de certo, mas de onde era a rapariga?

            - Ah, isso! Enfim, não sei, mas ela veio lá do norte interior do país, entende? Onde houve aqueles fogos terríveis! Entende onde é? Enfim, eu não sei, mas a família dela morreu toda queimadinha e, não sei se entende, ela enfiou-se por aí abaixo, enfim, em direcção à capital à procura de trabalho. Olhe que eu não sei, mas isto hoje em dia vem tudo para a capital à procura de trabalho que, enfim, nós já nem sabemos onde pôr os pés sem pisar ninguém, entende?

            Os três "entendiam" muito bem e, "enfim", já fartos da caipirice do homem, iam andando adiante, embora dois deles "não soubessem" para onde…Shaka, no entanto, movia-se rapidamente, sentindo um cosmos fugir do seu e tendo a noção que ela sabia que a estavam a perseguir, por entre as ruelas que desciam para o porto. Até que, ao virar duma esquina, praticamente embateram contra ela.

            - O que querem de mim? – perguntou em voz baixa. – Vão-se embora!

            - Nós… nós só queremos… - confuso, Miro olhou Aioria que respondeu com um encolher de ombros. Pois claro, eles não queriam nada, quem queria era o Shaka. Mas este não abriu a boca. Nem os olhos.

            - Não querem nada? – ela pareceu exasperada – Então parem de me seguir!

            - Espere! – Aioria resolveu agir – Diga-me como consegue fazer aquilo?

            Ela olhou-o interrogativamente, até que se pareceu lembrar de que eles tinham assistido à discussão. Então, aterrorizada, deu meia volta e desatou a correr. Mas Shaka estendeu uma mão e, como um torno, não a deixou ir em frente. Ela começou a estrebuchar.

            - Solta-me, desgraçado! Larga-me! – tentou-se soltar, mas era impossível. Tentou então usar a mente para se soltar, mas bateu de encontro a uma muralha psíquica. Desesperada, ergueu instintivamente o pequeno cosmos. Os outros olhavam para ela estupefactos – Filho da puta, larga-me! – gritava, cheia de medo.

            - Filho da quê? Olha lá, mocinha, mas tu sabes quem ele é? Quem nós somos? – perguntou Miro, ultrajado. Ela esforçou-se para se soltar.

            - Não me interessa! Soltem-me! – Shaka apertou mais a mão e disse-lhe asperamente.

            - Se ficares quieta e ouvires, eu solto-te, miúda idiota!

            - E quem te disse que eu te quero ouvir, meu grande anim… - a voz morreu-lhe quando Shaka abriu os olhos, jorrando o cosmos por eles. Ele largou-a e ela acabou por se sentar no chão a tremer. – Quem são vocês…?

            - Não te queremos fazer mal. Apenas tenho uma proposta para te fazer. Se aceitares, eu digo-te quem sou. Ouves-me agora? – ela acenou com a cabeça – Muito bem. Reparei que tu tens um potencial bastante aceitável de poder psíquico. Por outro lado, não estás nem desenvolvida, nem treinada. Eu proponho-me a treinar-te. – os três, sim, Miro e Aioria também, olharam Shaka com espanto. Ela fixou pensativamente os seus olhos fechados e perguntou-lhe o que queria em troca. – Apenas obediência ao meu mestre. Rapariga, não tens família, nem ninguém. Não tens nada a perder. – Ela considerou aquilo e, após um encolher de ombros, acabou por concordar. O indiano estendeu-lhe a mão para firmarem o acordo e ergueu-a do chão. – Vamos buscar as tuas coisas. Onde moras?

            - Por aí. E não vale a pena ir buscar nada, porque eu nada tenho… E já agora, para onde vou viver?

            - Para o templo. De Athena. – Sintetizou Shaka. Encolhendo de novo os ombros, a rapariga começou-se a mover na direcção do templo. Aioria e Miro ladearam Shaka, perguntando-lhe que ideia doida era aquela, se ele não tinha juízo, e, afinal, quem era aquela rapariga. Ao que Shaka respondeu que, possivelmente, tinha mais juízo que todo o Santuário junto, que a ideia não era doida e que, em relação à rapariga, não fazia a mínima ideia de quem ela era.

                                               *******************                                                                   

            Shaka fechou a pesada porta da Casa de Virgem. "Olhou" a rapariga que permanecia sentada no exacto sítio onde a tinha deixado.

            - Já está tudo tratado. A Senhora permitiu que eu te treinasse e que, como aprendiza, ficasses aqui a viver. Como já reparaste, esta é a casa de Virgem, e eu sou responsável por defendê-la e defender a deusa Athena, como qualquer cavaleiro de ouro. Mas isto hás-de aprender com o tempo, não preciso de to explicar agora. – Shaka suspirou, fazendo um movimento para ela segui-lo em direcção à cozinha. Serviu dois copos de leite frescos e sentou-se à mesa com ela. – Não sei como são os teus hábitos alimentares, mas enquanto estiveres a ser treinada por mim, serás vegetariana, se bem que te é permitido comer ovos e, por vezes, algum peixe magro. Ainda deves estar em crescimento… Por falar nisso, que idade tens?

            - Dezoito…

            - Tu, dezoito? – perguntou com ar de dúvida.

- Sim…

- Certo. Já tens a idade para teres alguns vícios implantados, estou a ver que teremos que trabalhar nisso. Para te dizer a verdade, não tens idade para seres aprendiza, mas penso que o teu potencial psíquico deveria ser explorado. Outra coisa, a…, como te chamas?

            - Estava a ver que nunca mais! – resmungou ela – chamo-me Dâmaris.

            - A desejada…

            - Como? – ergueu um sobrolho.

            - Dâmaris, em grego antigo, significa a desejada.

            - E depois? O que é que isso me interessa, Shaka? – disse com brusquidão

-Na realidade, Dâmaris, era disto que estava a falar acerca de vícios. Entende-me: és minha aprendiza, discípula e eu sou teu mestre. É assim que me chamarás.

            - Sim, mestre…

            - Espírito rebelde, estou a ver… Com o tempo aprenderás a controlá-lo, não há grandes problemas. Na realidade, é melhor seres rebelde que passiva, haverá menos probabilidades de alguém controlar a tua mente.

            - Fico a viver aqui?

            - Deuses! Claro que não! Vais viver numa casa de aprendiz aqui por detrás.

            - Porque ficaste tão escandalizado?

            - São proibidas ligações entre mestre/discípulo. Viver contigo na mesma casa daria azo a muitas histórias no estábulo do Santuário. – ele franziu as pálpebras – Outra coisa, quero que vás comprar umas roupas novas, e alguma coisa que queiras pôr no teu quarto. Não te precisas de preocupar com a cozinha. Podes ter as tuas refeições aqui em casa; não cozinho tão mal quanto isso.

            - Não tenho…

            - Não precisas de te preocupar quanto a isso também. A Senhora já me deu dinheiro para ti. Amanhã irás com Mu, logo bem cedo, é o dia livre de Áries e ele todas as manhãs vai à cidade.

            - Quem é Mu?

            - Um cavaleiro de ouro. Deves gostar dele, é bastante simpático. Ele tem um aprendiz alguns anos mais novo que tu. Mas tu também já não tens idade para brincar. Nem terás tempo. Há uns rapazes mais ou menos da tua idade por aqui. O Dragão acabou por ficar a melhorar as suas técnicas com Shura de Capricórnio, Saga de Gémeos tomou a seu cargo Andrómeda; aquele rapaz de cabelos claros que estava comigo, Aioria de Leão, ficou com Pégasus… Ah, sim, Camus de Aquário voltou a ter sob sua guarda Cisne, e Fénix acabou por ficar com Máscara da Morte de Câncer…

            - Máscara da Morte?

            - Carlo, mas aconselho-te a não andares pelo Santuário enquanto eu não te apresentar a todos eles. Por outro lado, mesmo que conheças algum, é melhor afastares-te. Não quero histórias de fantasias a distraírem-te do treino.

            - O que queres dizer? – ela estava bastante irritada.

            - Quero dizer, Dâmaris, que o Amor é somente mais uma das fraquezas de um homem às quais tu te deves sobrepor.

            - Julgava que Athena era a Deusa do Amor.

            - E é, mas eu estou a falar de Amor físico, não de compaixão pelo teu semelhante. Compreendes?

            - Compreendo.

            - De que signo és? Suponho que sejas de gémeos.

            - Exactamente.

            - "bvio que sim. Diz-me, quem és tu e de onde vens.

            - Tenho mesmo que falar disso?

            - Eu preferia. – Extremamente subtil. Um pedido, mas a sua voz formulava uma ordem. A rapariga suspirou.

            - Vivi no norte interior, onde houveram aqueles fogos horríveis. Eu estava na cidade, no colégio interno e no fim-de-semana, quando cheguei a casa, estava tudo ardido, o fogo tinha vindo pelo bosque. Os meus pais morreram… e eu fiquei sem nada, e resolvi vir para a capital tentar a minha sorte. Já que a cidade também ardeu parcialmente e não havia trabalho para ninguém.

            - Lamento. E quanto aos teus poderes?

            - Oh pá …  - a expressão dele advertiu-a que não devia dizer aquelas coisas – manifestaram-se quando eu era pequena. Consigo controlar parcialmente, desde que não esteja zangada. Mas é muito cansativo, por isso só uso para me defender. 

            - Manifestação por instinto defensivo… exacto…

            - Eu CONTROLO, não é instintivo!

            - Sim, claro, como tu queiras… - concluiu Shaka, nem ligando para o que ela estava a dizer, completamente absorto nos seus pensamentos. Irritada com aquele rapaz que nem sequer abria os olhos, que parecia saber de tudo e ser superior a tudo, Dâmaris amuou em frente ao copo. Dever-se-ia ir embora. Melhor, nunca deveria ter vindo. Mas lá que ele tinha um poder espantoso tinha. Devia ter sido isso que a levou a segui-lo. Claro que sim! O que haveria ter sido? Os seus cabelos dourados ou a cara de anjo? Dâmaris escorraçou a pontapés esta última imagem da sua mente. Espreitou-o por cima do copo. De volta dos tachos, ele parecia ter-se esquecido dela. Pensou novamente que se deveria ir embora. Mas ele parecia ter bastante a ensinar, não obstante de ter vontade de o fazer, uma vez que fora ele a propor a iniciativa. Por outro lado, não tinha nada a perder. Bem, talvez ficasse. Talvez.

            - Vou ter que andar de olhos fechados como tu? – ele não lhe respondeu. Ela teve medo de ter dito um disparate. – Tu… não és… cego, és? – Shaka voltou por segundos os seus olhos fechados para ela e voltou a concentrar-se no que estava a fazer. Picar bocadinhos de cogumelos, cenoura, pimento, milho, rebentos de soja, alho francês…Passado alguns momentos falou.

            - Ser-se cego significa ser inferior?

            - Não!

            - Achas que se um cego tiver algo a ensinar, não o poderá fazer, ou o seu conhecimento não terá validade apenas por ser cego a este mundo? – perguntou enquanto cortava ao meio algumas beringelas e lhe retirava o conteúdo para dentro de uma frigideira.

            - Não.

            - Muito bem… - Shaka remeteu-se de novo ao silêncio, deitando os vegetais picados para junto do conteúdo das beringelas, fazendo um refogado juntamente com cebola picada, alho e azeite. Um cheiro bom invadiu a cozinha. – Estás acostumada a comer estas coisas? - Dâmaris olhou o seu corpo que, apesar de ter emagrecido bastante nas últimas três semanas, continuava com as linhas redondas. E corou.

            - Ás vezes. – resposta neutra e, portanto, aceitável. O rapaz despejou o conteúdo da frigideira dentro das metades das beringelas, pegou em queijo ralado, espalhou por cima e pôs tudo no forno. O cheiro do queijo a ser fundido e gratinado atingiu o estômago da rapariga que se fez ouvir. – Na realidade, não tenho comido muito nos últimos dias… 

            - Nota-se. – o rapaz deu um meio sorriso fugidio, que sempre era melhor do que nada, enquanto que se encostava à bancada de braços cruzados. – Vamos ter que tratar da tua identificação… - ela levantou a cabeça – a menos que tenhas alguma… - resposta negativa. Shaka suspirou – então, se não tens prova nenhuma de que família és, terás que ser dada como de filiação incógnita… - a rapariga abriu a boca como que para protestar, mas voltou a baixar a cabeça – se fosses menor, ficavas a minha guarda, mas assim…

            - Não quero dar trabalho.

            - Não dás. Mas a Senhora quer-te legalizada. Nas mãos dela não será problema… A sua família dirige desde há tempos um orfanato, de certo arranjará maneira. – O forno deu sinal e Shaka tirou o tabuleiro das beringelas e outro com cuscuz que já deixara preparado do almoço. Mostrou-lhe onde estava tudo, enquanto punha a mesa e lhe dizia que a partir de agora era função dele cozinhar e dela por a mesa e tirar.

            - E quem lava a loiça? – perguntou a rapariga trocista. Shaka segurou-lhe subitamente as mãos e largou-as no segundo a seguir com um novo meio sorriso fugaz.

            - Certo… Dividimos. Um dia tu, um dia eu. – Enquanto comiam foram falando acerca do treinamento, noções básicas, alguns planos para os próximos dias, mas Shaka não se alargou muito em explicações. Acabaram de jantar, ela levantou a mesa e ele lavou rapidamente a loiça. Sentou-se de novo ao pé dela, em silêncio. Pouco depois quebrou-o. – Achas-te bonita?

            - Eu? – a rapariga olhou-o surpreendia, corou e baixou os olhos. Agarrou uma mecha dos compridos cabelos castanhos-escuros e começou a torce-la e alisá-la por entre os dedos. Tinha-o feito o tempo todo. – Não…

            - Não gostas de nada em ti…

- Bem… - a rapariga olhou para o cabelo sedoso que tinha entre as mãos. Mas quando respondeu, foi com voz firme. – Não, não gosto. – Shaka sorriu.

            - "ptimo, acho isso óptimo.

            - Porquê? – ela olhou-o abismada.

            - Por várias razões, mas por agora o que interessa é que quero que cortes o cabelo. – Dâmaris praticamente pulou do sofá.

            - Cortar… o cabelo? – ela olhou para as compridas madeixas que lhe descansavam no colo – Mas porquê?

            - Não há porquês. Amanhã irás cortar o cabelo.

            - PORQUÊ? – gritou ela. Shaka permaneceu impassível.

            - É esse o meu desejo. – o olhar dela foi desdenhoso.

            - E o teu cabelo? É tão comprido como o meu… Vai cortá-lo tu!

            - Tem atenção ao modo como falas, Dâmaris, lembra-te de quem é o mestre aqui. Eu já tenho o meu treino completo. Terminei-o há muito tempo. Tenho o direito de decidir a maneira como ando… Nada de mas! Se te ordeno que cortes o cabelo…

            - Vai dar ordens ao raio que…

            - Basta! – Shaka levantou-se sério – É uma ordem! E agora, minha muito infantil aprendiza, vai dormir.

            - Dormir às nove da noite? – ela olhou-o zangada, enquanto ele já desaparecia por uma porta. – Shaka! – ele desapareceu no escuro. Engoliu o orgulho – Mestre! – a voz dele chegou-lhe como um eco.

            - Se não tens sono, medita no teu comportamento…

                                                 *******************

            Dâmaris fechou a porta da casita de aprendiz. Uma sala com kitchnet, um quarto e uma casa de banho. A mobília era simples: uns sofás com mesinha de apoio, mesa e cadeiras e uma estante na sala; uma cama de solteiro, mesa-de-cabeceira, uma pequena cómoda e armário no quarto, tudo em mogno. Abriu o armário no quarto e encontrou lençóis frescos e alvos e alguns cobertores com que fez a cama, além de uma coberta e duas almofadas, de dia de enfeite, de noite para dormir, brancas com uns desenhos azuis. Entrou na casa de banho, também ela branca e azul e impecável. No armário por debaixo do lavatório encontrou fofas toalhas brancas, champô e sabonete, e, atrás da porta, estava um robe turco, também ele branco.

            Tomou um banho quente como há tanto tempo não fazia. Esfregou-se com uma esponja azul que encontrara numa gaveta e lavou o cabelo com todos os cuidados, enrolando-o numa toalha e vestiu o robe. Jogou as roupas dentro da banheira e começou a esfregá-las em água quente, as mãos começaram a ficar vermelhas e ela cerrava os dentes ao sentir a agressão dos tecidos e do forte calor da água na pele sensível e, agora, muito branca. Saiu por uma porta da cozinha e encontrou um estendal num pequeno pátio. Pelos vistos, pensou, os aprendizes têm que tratar de si próprios.

            Voltou para dentro, sentou-se em frente ao espelho da casa de banho e, na mesma gaveta, encontrou um pente com que começou a desembaraçar pacientemente o longo cabelo, tentando ignorar as lágrimas que se acumulavam nos cantos dos olhos ao pensar que o iria cortar.

            Deitou-se e apagou a luz do candeeiro. Sentia-se confortável e quente, uma coisa que há muitos dias não sentia. Uma torrente de lágrimas correu pelos seus olhos. Sentia tantas saudades de casa… Adormeceu tranquila num vale de salgadas lágrimas.

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Próximo capítulo:  "Faíscas no roçar de personalidades"