Faíscas no roçar de personalidades
by Ayan Ithildin
Olhou de esguelha o rapaz de cabelos arroxeados que a acompanhava. Irradiava a mesma calma e paciência de Shaka, mas era muito menos frio e, até mesmo, simpático. Lembrou-se do seu sorriso espantado quando a encontrara preparada à porta de casa meia hora depois do nascer do sol. Provavelmente o seu mestre dissera-lhe que ela era uma menina de colégio mediterrâneo. Mas, longe disso, ela frequentara desde pequena um colégio interno friamente inglês, com levantares e banhos de água fria às seis da manhã. Mas este rapaz até era bem simpático. Tinha uns olhos muito doces.
- É aqui. – ela olhou para o estabelecimento que lhe era apresentado. Um cabeleireiro unissexo. Os olhos arderam-lhe com a vontade de chorar e Mu empurrou-a suavemente para dentro da casa. Um homem já de alguma idade veio atende-los.
- Bom dia, senhor Mu. Ouvi o recado que me deixou ontem. Então… – olhou a rapariga – … é esta a menina que veio cortar o cabelo? Sente-se aqui, jovem. – apontou-lhe uma cadeira junto ao lavatório. O olhar dela cruzou-se implorativo com o de Mu, mas ele limitou-se a sorrir-lhe. Sentou-se e deixou o homem lavar-lhe a cabeça enquanto conversava animadamente com Mu acerca do tempo. Depois conduziu-a a uma cadeira em frente de um espelho largo, sufocou-a com capas e toalhas, esfregou-lhe animadamente a cabeça com outra e penteou-lhe o cabelo todo.
- Que cabelo lindo! Muito saudável… vejo que o tem tratado bem… é raro, numa jovem como a menina… que pena cortá-lo. É mesmo uma pena… – vendo os olhos da aprendiza encherem-se de lágrimas, Mu resolveu interceder.
- Sim, é pena, mas o cabelo volta a crescer depressa. E o mestre dela assim o quer. – o homem suspirou.
- Então, uma aprendiza… enfim, vai o cabelo todo, não é? – pegou na tesoura e a rapariga abriu os olhos aterrorizada.
- Não, todo não! – exclamou Mu. O cabeleireiro olhou-o. – Talvez pelos ombros.
- Escadeado, então. A parte de trás logo abaixo do nível dos ombros e a parte da frente abaixo do queixo? - enquanto isso ia-lhe fazendo experiências que a desesperavam – é curto, é prático, bastante comum entre desportistas.
- Seja escadeado, então. – assentiu Mu, encostando-se à parede lateral, observando o trabalho do homem. Ao primeiro bocado de cabelo cortado, Dâmaris rompeu em soluços. O cabeleireiro olhou-a contristado e olhou para Mu que lhe fez sinal para continuar. E ele assim fez. Ver os bocados de cabelo a cair no chão era uma tortura para a rapariga, isso era óbvio. Shaka tivera razão quando lhe dissera que ela adorava o cabelo com uma paixão e vaidade humana. Sentiu-se um pouco incomodado com as lágrimas e soluços dela e baixou os olhos. Tinha pena, ela parecia tão nova, muito mais nova do que era. E tivera uma vida tão difícil nos últimos tempos. Pedir-lhe aquilo talvez fosse um teste demasiado pesado. Não deu pelo barulho do secador. Mas pouco depois deu pela falta do choro dela. Olhou e abriu a boca de espanto. A criança tinha desaparecido. Do cabelo espesso e liso nada restava. Agora nasciam-lhe uma camada de caracóis revoltos e largos que lhe descaíam até aos ombros. Os olhos fitavam-no vermelhos e sérios, numa face bem mais adulta.
- Pronto, ficou linda. – o homem sorriu-lhe, mas ela mantinha a cabeça baixa. Mu pagou e saíram para a rua. Olhou-a.
- Agora, podemos ir comer, não é? – guiou-a até uma pastelaria. – o que queres comer?
- Nada. - Mu encomendou uma quantidade de bolos e dois galões escuros. Shaka tinha-lhe dito que ia impor um regime à rapariga, mas isso não lhe importava. Ela agora precisava de coisas doces. E, secretamente, Mu achava que o indiano era duro demais. Ele não fora assim com Kiki e ele era um excelente aprendiz. Mas depois lembrou-se que criara Kiki desde pequeno e longe da sociedade. Talvez Shaka não fosse assim tão duro, afinal. A empregada trouxe os bolos e os galões. Dâmaris permaneceu com o queixo apoiado nos braços cruzados olhando tristemente para Mu enquanto este atacava um enorme bolo cheio de creme. – Porquê? – ele parou de comer e olhou-a. – Porque é que ele me fez isto?
- Ele não te disse nada antes de te mandar cortar o cabelo?
- Bem, perguntou-me se eu me achava bonita e se gostava de alguma coisa em mim.
- E tu, que lhe respondeste?
- Que não…
- E, na realidade – ele olhou-a meigamente – isso não era verdade, pois não? Tu gostavas muito do teu cabelo. – os olhos dela começaram a encherem-se de lágrimas. – Devias-lhe ter dito a verdade.
- Isso alterava alguma coisa?
- Hum… não. Irias cortar o cabelo à mesma. Mas não deves mentir ao teu mestre.
- Ele é frio e bruto!
- Ele é sábio e firme. – ela olhou-o furiosa. – Todos os aprendizes usam o cabelo curto. Mas não te preocupes, o teu cabelo vai crescer depressa. Escuta – esticou uma mão e tocou-lhe no cotovelo – a vida de aprendiz não é fácil. Não acredites numa vida de aprendiz fácil. Não aprendes nada, numa vida dessas. A facilidade não ensina nada; os obstáculos e os desafios sim. – os olhos dela pareceram aceitar aquela explicação – então, agora vamos comer.
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Dâmaris saiu pela milionésima vez de dentro do camarim com um novo conjunto vestido. Olhou interrogativamente para Mu.
- Fica-te muito bem. – viu-a começar a escolher outra roupa e abanou a cabeça. – Não é isso que irás usar. – Ela olhou-o e Mu dirigiu-se a um expositor com roupa de tons brancos. Tirou um vestido branco comprido com manga à boca-de-sino.
- É isso que eu vou vestir?
- Dentro deste género.
- Eu não sou uma princesa helénica, sabes?
- És grega. Este género de roupa fica-te bem. – o olhar dela era de dúvida. – Olha, foi Shaka que mandou. Agora escolhe os vestidos compridos que mais gostares e vai experimentá-los, que eu tenho que ir à secção de homem. - furiosa, a aprendiza arrebatou uma quantidade de vestidos e enfiou-se dentro do camarim. Saiu vinte minutos depois com alguns escolhidos, já Mu estava do lado de fora com um monte de sacos selados. Ele acenou com a cabeça e mostrou-lhe algumas roupas brancas para ela experimentar. – Muito bem. Experimenta estas agora. – Ela mexeu-lhes.
- Saias… calças… e blusas… tudo branco… Por amor… - viu o olhar de Mu, expirou furiosa e enfiou-se de novo dentro do camarim. Saiu algum tempo depois com novas roupas escolhidas. – E agora?
- Sapatos. – e foi uma nova carga de trabalhos convencê-la a deixar de lado as bonitas botas de pele castanha de "primeiro andar" que, sim senhora lhe ficavam deliciosamente bem, mas não eram de modo nenhum o mais adequado ao treinos, tais como as sandálias de salto ou os sapatos de veludo negros de tacão. No entanto comprou-lhe um bom casaco de pele castanha clarinha e dois outros brancos compridos e quentes. Impediu-a de comprar bonitos enfeites, nem sequer elásticos ou fitas para o cabelo, embora a deixasse escolher um bom perfume, escovas, gel de banho e sabonete e o demais necessário.
- E… agora? – perguntou Dâmaris, encostada a um muro, exausta de 4 horas de compras. Ainda mais exausto que ela, sobretudo porque nunca fora ás compras com uma mulher e ainda tivera que se restringir à lista de nãos de Shaka, Mu respondeu tranquilamente.
- Agora podes comprar coisas para ti. Quer dizer, a nível mais pessoal. Como por exemplo…
- Livros. – concluiu ela, olhando um alfarrabista em frente.
- Livros aqui? Para ti? – abismado, Mu seguiu-a para dentro da casa velha, a abarrotar de livros também eles velhos, cheirando a humidade e mofo. Foram duas horas perdidas em frente àquelas estantes velhas e prateleiras vergadas e empenadas pelo peso dos calhamaços amarelados que se amontoavam pela loja escura. Baixou a voz – Hum, Dâmaris… o que esperas encontrar aqui, exactamente?
- Livros. – olhou-o divertida – Livros bons, raros, alguns já inexistentes no mercado, bem anotados, a baixo preço… Como este! – retirou, triunfante a primeira edição de "A história desconhecida dos homens" de Robert Charroux.
- Tu lês Robert Charroux? – gaguejou Mu. – Não achas isso… assim, meio desapropriado para ti e para a tua idade?
- Que queres dizer? É delicioso! Pelo menos não se trata desses romances patetas que por aí andam em que todos aceitam tudo e dão graças a deus… - Dâmaris continuou num resmungo baixo que Mu não entendeu – enfim… olha… quantos posso levar?
- Bem, dados os temas… - Mu sorriu – acho que Shaka me matava se não te deixasse levares todos os que quisesses.
Dâmaris tirou, numa embriaguez esfomeada, um sem número de livros, alguns já com as capas a cair e folhas cortada à mão, de filosofia, ciência, religião, astronomia, procura, análises, alguns romances que ela considerava "a única coisa prestável dessa verborreia oca actual", uns quantos dicionários e, pasmos dos pasmos, um ou dois volumes em grego e latim. O velhote gasto a quem ela pagou apertou-lhe solene e silenciosamente as mãos, com os olhos brilhantes, quando percebeu que os livros eram para ela.
Argumentando que a música era arte e conhecimento, convenceu Mu a comprar-lhe uma pequena aparelhagem e alguns cd's.
De resto, apenas comprou três enormes bichos de pelúcia que achou adoráveis, lápis e blocos de papel, e, noutra loja do passado que descobriu num bairro decrépito, um enorme e completo mapa do céu. Mu, no meio da sua confusão, só tinha certeza de uma dúvida: ou aquela rapariga era louca, ou Shaka tinha descoberto alguém extraordinário.
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Tiveram que apanhar um táxi para o Santuário onde vieram apertados e só não ouviram as queixas do homem do exagero de volumes porque Mu, apesar de afável, fisicamente metia respeito, mas não se escaparam de subir a enorme escadaria que conduzia à casa de Virgem, se bem que tenham tido a ajuda do aprendiz de Mu e de um outro homem enorme, muito forte e simpático, que sozinho levava metade das compras, exactamente as mais pesadas (mais tarde Dâmaris viria a descobrir que era o cavaleiro de Touro) e que lhe deixaram as compras dentro de casa. Mu sorriu-lhe e disse que arranjasse tudo e se vestisse enquanto ele falava com Shaka.
Aborrecida com o mestre que nem sequer a viera esperar, Dâmaris arrumou tudo num instante (o que demorou mais foram as roupas), agradecendo aos deuses a casa de Mu ser a primeira e ele ter deixado lá todas as suas compras, que também não eram poucas. Tomou outro banho, penteou-se desesperadamente, tentando esticar o cabelo que insistia em encaracolar-se. Nunca soubera que o seu cabelo era encaracolado, pois sempre o usara abaixo da cintura e, com o peso, ele esticava-se. Agora odiava os caracóis volumosos que disparavam da sua cabeça. Chorou de novo, cheia de raiva.
Não tocou nos vestidos compridos. Escolheu antes umas calças e uma camisola de mangas compridas, que se alargavam junto das mãos, e decote em bico. Odiava branco. Já era branca o suficiente (malditos genes celtas maternos), com o branco da roupa assemelhava-se a um fantasma. Calçou uns sapatos e foi ter com o mestre.
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Shaka estava a meditar. Dâmaris duvidou que ele tivesse tomado o pequeno-almoço, sequer. Sentou-se à sua frente de pernas cruzadas e esperou que ele lhe falasse. Ainda bem que estava sentada, pois a espera foi muito longa. Já se começava a irritar, invadida pela sonolência cansada que sentia, quando a voz de Shaka se fez ouvir.
- Endireita as costas.
- O quê? – Dâmaris achava inacreditável que tudo o que ele tivesse para lhe dizer fosse para endireitar as costas.
- Endireita as costas. Por um lado ficas com a coluna torta, por outro quero-te sempre com uma postura direita. Os braços devem descansar no meio das pernas, palmas para cima, uma mão por cima da outra, os polegares devem tocar-se.
- Eu – Dâmaris endireitou-se – não estava a meditar. – A resposta foi nula, o mestre remeteu-se de novo ao silêncio. Dâmaris ficou estática, naquela mesma posição de meditação, sentindo o sono invadi-la. Ficou horas e horas naquela posição, em silêncio, até que a sua mente ficou em branco, as cãibras tornaram-se indolores e o mundo físico pareceu diluir-se, se bem que tinha consciência que estava acordada. Mas a sua consciência não estava dentro do seu corpo e a sua mente não passava de um vácuo branco luminoso. E a única coisa que via naquela cegueira mental era uma pequena flutuação há sua frente. Esforçou-se para ver mais adiante, mas o sono era tanto… Teimosa, esforçou-se um pouco mais, e a flutuação começou a tingir-se de tons dourados. Cansada, forçou os sentidos e, instintivamente, ergueu o pequeno cosmos.
Pela primeira vez sentiu o cosmos vivo de alguém. A experiência deixou-a em estado de choque, a desconcentração atingiu-a e, sugada violentamente do cosmos, o sono invadiu-a e Dâmaris tombou para a frente.
Tombou para o peito de Shaka que se aproximara silenciosamente dela e se sentara à sua frente. Impassível, o indiano pôs desta vez cada mão apoiada num joelho, palmas erguidas aos céus, dedos médios e polegares unidos e uniu o seu espírito ao cosmos, ignorando a jovem exausta que estremecia de frio encostada a ele, adormecida num sono anestésico, profundo e sem sonhos.
Sem imagens, sem sons, sem cheiros.
Sem negro.
Só branco.
E luz.
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Dâmaris acordou dorida, sentindo cãibras e dores em cada músculo e articulação do seu corpo. Abriu os olhos com esforço, mas abriu-os rapidamente quando, há sua frente, apenas encontrou o peito forte e musculado de um homem, mal coberto pela camisa branca meio desabotoada. Afastou-se rapidamente e encontrou-se sentada, olhando para Shaka que meditava à sua frente. Tentou-se levantar, mas sentia-se tonta e a boca grossa. Fez um esforço, ergueu-se um pouco para voltar a cair, vendo tudo andar à roda.
- É normal que na primeira vez fiques um pouco tonta. – Shaka saíra do transe e erguia-se calmamente. – Mas passa com o hábito. – desapareceu pela porta. Dâmaris precisou de mais cinco tentativas falhadas para se conseguir levantar e cambaleou até à cozinha. O mestre enchia um copo com leite e punha bolachas de sésamo num prato, que pôs no lugar dela antes de a mandar sentar. A rapariga esfregou os olhos.
- Que horas são?
- 3 da manhã. – ela suspirou e devorou as bolachas e o leite. Quando acabou, Shaka, que só bebera chá, mandou-a ir-se deitar.
- Quero-te pronta às oito ali, naquela sala. Não precisas bater, porque possivelmente não te abriria a porta. Não vale a pena interromper a meditação para abrir portas…
- Às oito? – chocada, ergueu os olhos para ele – mas vou-me deitar tarde!
- Às oito, sim. – ela abriu a boca para responder – É uma ordem, Dâmaris. – ergueu-se para se ir embora.
- Mas não tenho sono agora! – ele olhou-a com um sorriso misterioso e sarcástico. Dâmaris sentiu os olhos fecharem-se e , maquinalmente, dirigiu-se para casa e deitou-se.
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Acordou faltava um quarto para as sete. Cheia de sono, enfiou a cabeça debaixo de uma almofada. Um barulho no vidro da janela acabou por acordá-la por completo e, irritada, levantou-se, para logo estacar sorrindo como o casal de passarinhos que namorava no peitoril. Tomou um banho rápido, vestiu uma saia e uma blusa, fez a cama e saiu de casa. No caminho para a casa de Virgem encontrou Mu, que subia para o santuário. O rapaz sorriu-lhe.
- Então, primeiro dia de treino?
- Formalmente sim, embora já deva ter sofrido uns quatro colapsos cerebrais durante o dia de ontem.
- Anima-te, rapariga!
- Oh, estou tão animada que nem imaginas… - ela fez uma careta e ele riu-se.
- Espero que não tenhas discutido com ele por causa do cabelo.
- Não houve tempo. Aliás, falar com ele é a mesma coisa que falar com uma porta, a maior parte das vezes… - olhou para o relógio – tenho que ir ou chego tarde. Se bem que, se ele me vai mandar meditar, vou dormir a manhã toda. – fez uma cara de criança – Estou cheia de sono.
- Vai lá, então. – Mu sorriu-lhe e, beijando-a na testa, continuou a subir a escadaria. Não viu a ruborizada rapariga que tinha ficado para trás, estática e confusa e que se lançara a correr na direcção da casa do mestre.
Dâmaris empurrou a pesada porta e fechou-a novamente. Correu até há porta da sala, contou até 10 para se acalmar e entrou, deparando-se com Shaka a meditar de costas voltadas para o sol que entrava pela janela, os raios de Apolo batendo-lhe nas costas desnudas, desenhando-lhe o corpo branco e bem constituído num traço doirado, iluminando-lhe o cabelo a pontos de criar a ilusão de um auréola, as calças brancas e o rosto sereno tornando-o parecido com um anjo. A rapariga susteve o fôlego e ficou hirta, de olhos muito abertos.
- Não me digas que estás a dormir de pé… - a voz sarcástica de Shaka ecoou passado momentos, despertando-a da doce visão. Tinha que estragar tudo, pensou, mas tinha mesmo…
- Bom dia também para ti, mestre – disse ironicamente.
- Ah, bom dia… estou a ver… e diz-me minha bem-educada aluna, como sabes que vai ser um bom dia? – Dâmaris olhou-o confusa – Acabaram as guerras? Acabou fome? Terminou a miséria? Pararam as violações? Houve um não geral à violência doméstica? Os pedófilos foram fulminados pelo raio de Zeus? – a rapariga estava estupefacta – Vê lá se te sentas e começas a trabalhar em vez de mandares estúpidos ditos goradamente irónicos.
- Ditos estúpidos?! – Dâmaris pôs uma mão na cintura – Ai eu é que digo coisas estúpidas? Calculo que o meu sapientíssimo mestre não se conceda a dizer, a ordenar uma estupidez!
- Pára com o arraial e tira-me a mão da cintura que não és nenhuma peixeira. E diz-me lá, quando é que eu disse alguma estupidez?
- Não tens consciência das tuas acções?
- Já te mandei tirar a mão da cintura e baixar a voz. Tenho consciência das minhas acções, por isso te afirmo que nunca te disse uma única estupidez. – Dâmaris tirou a mão da cintura, irritada.
- Irra, mas tu és mesmo convencido!
- Não estou convicto do que afirmo, tenho a certeza. E tem-me tento nessa língua, Dâmaris, já começas a abusar. Só quero que me digas quando se deu o memorável acontecimento de eu ter dito uma estupidez.
- Não disseste. – Dâmaris cruzou os braços mal-humorada.
- Ah, não disse.
- Não disseste, ordenaste!
- E qual foi a ordem que eu dei que foi estúpida?
- Queres saber que mais? Porque não vai meditar no teu comportamento? – virou-lhe as costas para sair dali, mas Shaka era demasiado rápido. Levantou-se de um pulo e torceu-lhe um pulso, puxando-a para si.
- Qual foi a ordem estúpida que eu dei? – Dâmaris era teimosa. Cerrou os maxilares, deixando apenas escapar-se-lhe um gemido quando os dedos dele a começaram a magoar. Shaka não era delicado e apertava-lhe o pulso com mão de ferro. – Diz-me qual foi a ordem estúpida, Dâmaris. – A rapariga limitou-se a soltar mais um gemido quando ele quase lhe esmagou o pulso. – Estou a começar a perder a paciência, miúda! Diz-me agora qual foi a ordem estúpida! - Ela gritou com o puxão que ele deu fazendo-a bater com as costas no seu peito duro. – Dâmaris…
- Mandaste-me cortar o cabelo!
- E foi essa a ordem estúpida? Tu disseste que odiavas tudo em ti! Qual foi o problema?
- Tu sabias que eu gostava do meu cabelo! Tu sabias! – ela começou a chorar – Tu sabias que era a única coisa que eu gostava em mim! – Shaka baixou a cabeça e, apoiando o queixo no ombro da rapariga, murmurou-lhe baixinho ao ouvido.
- Então mentiste-me…
- Tu sabias que eu o adorava!
- Sabia sim, sabia, Dâmaris e mesmo assim mandei-to cortar, na tentativa de te tentar desapegar dessa estúpida paixão mundana pela beleza que os estúpidos dos humanos põe à frente de tudo e todos na vida e que é uma das maiores causas da sua perdição. Foi para teu bem, miúda estúpida! – Shaka empurrou-a para a frente e ela caiu de joelhos a chorar. – Mas eu devia ter percebido que tu não tinhas alcance para entenderes isto… - Dâmaris parou de chorar e, voltando-se num repente, olhou-o assustada.
- O que queres dizer? – Shaka começou a andar para fora da sala. Ela correu até ele e segurou-o por um braço. – O que queres dizer, Shaka?
- Vai-te embora, Dâmaris.
- Não…
- Vai-te embora, Dâmaris – repetiu com voz cansada – Tu nunca vais conseguir. Foste um sonho, Dâmaris, só isso. Alguém que podia ser especial. Mas passaste demasiado tempo "lá fora". Agora é tarde. Pára de chorar, rapariga, e vai-te embora.
- Não, não, não! – agarrou-se ao braço dele a chorar – Não me mandes embora, Shaka, eu não sou uma falhada.
- Dâmaris, é pura perda de tempo. Não vais conseguir. Não compreendes o que eu te digo, não obedeces ás minhas ordens, não entendes que tudo o que faço é para o teu bem! Não vais conseguir. – soltou-se com puxão e recomeçou a caminhar. Ela jogou-se contra as suas costas e abraçou-se a ele por trás.
- Vou conseguir sim, Shaka! Vou conseguir, juro que vou. Não sou uma falhada, não sou. Não sou… - começou a soluçar, arquejando palavras desconexas por entre as lágrimas. Soltou-se dos seus braços e voltou-se a tempo de a agarrar pelos braços antes dela cair no chão. Estupefacto, viu-a jogar-se contra ele, encaixar-se nos seus braços e aninhar a cabeça no seu peito. Ficou confuso com o turbilhão de emoções que agora o envolviam. Nunca se dera a emoções humanas, nem a tê-las, nem a acreditar nelas, nem a suportá-las. Mas Dâmaris parecia um anjo perdido. A pele do seu peito estava molhada pelas suas lágrimas e a pele das costas vermelhas pela força com que ela se agarrava a ele. – Não me mandes embora, Shaka. Eu consigo. Eu faço tudo o que tu me mandares, mas não me mandes embora, por favor. Por favor, Shaka…
- Shhhh – finalmente atingido pelas lágrimas da rapariga.
- Não quero ficar sozinha, por favor, outra vez não! - Shaka envolveu-a num abraço. Deixou-se cair no chão e puxou-a contra si.
– Vai ficar tudo bem, criança. Prometo que vai ficar tudo bem…
- Não me mandes embora…
- Não, vais ficar aqui comigo. Eu vou ensinar-te tudo o que sei. E vou cuidar de ti, pequena. – começou a fazer festas nos caracóis sedosos de Dâmaris – vou cuidar de ti, criança, prometo…
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N.A.: Bem, confesso que este Shaka é um bocado diferente. MAS não se fiem nas aparências. :P Esta fic vai ter aproximadamente três fases (ainda que curtas) e o Shaka vai estar diferente em todas elas. Well, people change como diria Afrodite, não é? ^. ~ Pessoalmente, acho mais divertido e romântico escrever com personagem modeladas, que se alteram ao longo das histórias, do que com personagens planas que são chatíssimas, sempre iguais, sempre previsíveis, duh!
Concordo, Pipe, o Shaka é mandão. Mas deixá-lo ser frio enquanto puder, porque não escapará dos meus dedos tecladores terríveis que o hão-de fazer agir totalmente contra a sua natureza. HAHAHAHAHAHAHA sou tão cruel! =P O nosso papel é fazer o mandões e machões caírem (lembra-te sempre do Carlo!)
Mari Marin, Pipe e Angel Vv: adorei as vossas reviews! ADOREI!
Bjokas! ;)
Próximo capítulo: "O brilho do quarto crescente"
