"Treinando o corpo, abrindo o coração"

by Ayan Ithildin

            Dâmaris correu pelas escadas, abriu a porta do templo e entrou a correr até à cozinha.

            - Cinco para as oito. – disse o mestre. Depois fez um pequeno sorriso. – Excelente.

            - Está a ficar mais difícil, Shaka. O mês de Maio está a acabar e o calor começa a ser insuportável, mesmo às sete da manhã. Quando chegar Julho não aguento! – Dâmaris sentou-se num dos bancos altos da cozinha. Estava mais alta, o corpo bem trabalhado. Não se modificaria mais. E, segundo Shaka, ainda bem. A aprendiza já chamava atenção demais da maneira que estava. – Mestre? – Dâmaris olhava-o por cima da torrada.

            - Eu vou pensar numa solução. Vais para o ginásio até há hora de almoço, ok? Tenho assuntos para tratar. – as relações com Saori haviam melhorado bastante. Pelo que Dâmaris havia observado, Athena andava mais "ao de cima". Logo, teoricamente, não era Saori.

            - Como quiseres, mestre. – Dâmaris levantou-se e encaminhou-se para o ginásio. Shaka abriu os olhos e observou a aprendiza. Voltou a fechá-los. Decididamente, precisava de manter os lobos esfomeados longe da carne fresca.

            Dâmaris estava a treinar luta corpo-a-corpo com um inimigo imaginário quando Shaka voltou. Com o cosmos desenvolvido e um à-vontade tremendo no próprio Cosmos, os movimentos eram mais rápidos e precisos. Dâmaris aprendera bem depressa. Talvez nunca tivesse tido os professores certos, mas falta de aptidão para o desporto era algo que ela não tinha, de certeza absoluta. Fora apenas preciso treino.

            Shaka baixou o cosmos ao mínimo e aproximou-se, esticando a mão para um dos seus ombros. Dâmaris levou as duas mãos atrás e atirou o surpreendido mestre ao chão, por cima do seu ombro.

            -Ai! – Shaka sentou-se no chão ainda surpreso. Dâmaris sorria com ar de troça. – Ok, como soubeste?

            - Vi-te. – Dâmaris apontou com um dedo a cabeça. Tinha-o visto no Cosmos. Shaka riu-se.

            - Aprendeste a estar nos dois mundos ao mesmo tempo… Desde quando, diz lá.

            - Uma semana, mais ou menos. – Shaka não respondeu. Sabia que a aprendiza gostava de lhe pregar peças do género, conseguir fazer as coisas e não dizer. – Mas só quis que soubesses quando conseguisse controlar bem. Além disso, provas são melhores que palavras, certo? – Shaka estendeu-lhe a mão.

            - Ajuda o teu velho mestre a levantar-se. – Dâmaris agarrou-lhe a mão e puxou-o.

            - Não sejas lamechas. Sabes bem que não és velho nenhum. Tens 25 anos, o corpo bem trabalhado e cara de um tipo de 18. E estás longe de ser senil.

            - Eu sei. Estava-me só a armar. – e atirou-a ao chão da mesma maneira que ela lhe fizera. Dâmaris bateu com as costas no chão e soltou um gemido surdo. A seguir olhou-o, os orbes verdes muito brilhantes. – Nunca te esqueças de estar atenta. O inimigo não avisa quando ataca. 

            Dâmaris levantou-se de um pulo e pôs-se em posição. Shaka ergueu as sobrancelhas.

            - Queres lutar comigo? – Shaka estava extremamente sério. Pareceu ponderar. – Vamos esperar duas semanas.

            Dâmaris abriu a boca num protesto mudo, revirou os olhos e deixou-se cair sentada no chão, na perfeita imagem do abatimento.

            - Tu não acreditas no que eu sou capaz. – Shaka agachou-se à sua frente.

            - Acredito mais que tu. Não era eu que há cinco meses dizia que nunca ia conseguir fazer nada. – Dâmaris olhou o rosto do mestre. – Duas semanas, Dâmaris. Na segunda semana de Junho temos o nosso primeiro combate. Combinado? – ergueu-se e estendeu-lhe a mão. Dâmaris pareceu considerar a situação e apertou-a, deixando-o puxá-la para cima.

No final da semana, Dâmaris entrou distraída na sala de estar antes de jantar, ainda a espirrar da espuma que lhe entrara no nariz durante o banho.

Descalçou as sandálias e sentou-se em cima das pernas num sofá.

            - Assim fazes varizes. – disse o mestre na posição de meditação no sofá em frente. Dâmaris sentou-se de pernas cruzadas, como o mestre. – Assim está melhor.

            - Pensava que não te importavas que eu tivesse as pernas feias, cheias de varizes. Era da maneira que ninguém olhava para elas.

            - Eu prezo que a minha aprendiza seja bonita e saudável. De qualquer modo é melhor que olhem para as tuas pernas que para outros sítios… - respondeu o mestre casualmente. Dâmaris atirou-lhe uma almofada. – Sobretudo quando usas essas saias. – até porque em boa verdade, as saias tinham-lhe ficado bem mais curtas.

            - Pareces um pai super protector ou um marido prepotente ou eu sei lá, Shaka!

- Gostei dessa do marido prepotente. Acho que combina mais comigo. – respondeu Shaka trocista, sem sair da posição de meditação e atirando-lhe a almofada de volta.

Dâmaris riu-se e olhou para o outro lado da sala. Os seus olhos caíram no enorme presente que estava em cima da mesa. Ficou curiosa.

- O que é?

- Porque não vais ver? E não vale apelar ao cosmos. – Dâmaris levantou-se a aproximou-se da caixa. Quando lhe ia tocar a caixa deu um estremeção que a assustou. Olhou para o mestre, convencida de que aquilo era uma partida, mas ele permanecia impávido e sereno. Desfez o enorme laço vermelho e abriu a tampa.

- Oh! – meteu as mãos dentro da caixa e tirou um gatinho com olhos curiosos. Apertou-o contra o peito. – Oh, tão querido!

- Achas que eu me ia esquecer? – perguntou o Shaka atrás dela. Pôs o gatinho de novo dentro da caixa e voltou-se para o cavaleiro. – Feliz aniversário, Dâmaris. – a rapariga abraçou-o. Abraçou-a durante uns momentos até que percebeu que ela estava a chorar. Afastou-a e segurando-lhe o queixo, fê-la olhar para ele. – O que foi? – Dâmaris continuou a chorar baixinho. – O que se passa? Não gostaste da prenda?

- Não é isso. É só que… -Dâmaris recomeçou a chorar. Confuso, Shaka abraçou-a outra vez, fazendo-lhe festas no cabelo.

- Anda cá. Senta-te. – disse, sentando Dâmaris num sofá e sentando-se ao lado dela. - O que foi? – não recebendo resposta nenhuma deixou-a encostar-se a ele, fazendo-lhe festas no cabelo. Shaka começou a ficar preocupado. Pouco a pouco o choro foi diminuindo até que parou de vez. A rapariga endireitou-se, esfregando os olhos para limpar as lágrimas. – O que foi Dâmaris?

- É só que… lembrei-me do Gawain… - Shaka pareceu não entender. – O meu outro gatinho. Ele… foi a última prenda que a minha mãe me deu antes de … de…

- O que aconteceu ao… Gawain? Morreu no incêndio? – Dâmaris limpou uma última lágrima e abanou a cabeça.

- Morreu à quatro anos. Envenenado. – Shaka ergueu as sobrancelhas – Foi um castigo que o meu pai me deu. – levantou-se e foi até à caixa onde o gatinho miava. Shaka pode fazer a cara mais estupefacta da sua vida sem ser incomodado, pensando que espécie de pai mata o gatinho da filha como castigo. Dâmaris voltou-se com o gatinho ao colo e Shaka compôs uma expressão neutra.

            - É um gato ocidental… - disse a jovem enquanto observava o gato desde a ponta da cauda até ás unhas minúsculas. Sentou-o no colo. O gatinho, de um pelo cinzento lustroso que parecia brilhar com as diferentes incidências da luz e uns olhos incrivelmente azuis, tentou pular para o chão. Ela puxou-o para cima outra vez.

            - Que nome lhe vais dar? – perguntou Shaka enquanto o gatinho trepava pelos ombros de Dâmaris.

            - Hum… já que ao outro dei o nome do braço esquerdo do rei Arthur… A este vou-lhe chamar… - a rapariga levantou o gato e olhou-o fixamente – Mordred…­ -concluiu. O gatinhou miou.

            - Mordred!? – exclamou Shaka estupefacto. – Não o deverias chamar de Lancelot?

            - Não é Lancelot, é Lancelet que se diz. É saxónio e significa "flecha-d'elfos". – corrigiu a jovem – E é claro que não lhe vou chamar Lancelet!

            - É claro porquê? – quis saber Shaka.

            - Porque o Lancelet e o Arthur eram uns estúpidos imbecis que a única coisa que faziam eram correr atrás das saias daquela rainha imprestável, fútil e idiota, quando podiam perfeitamente ter mantido Avalon no poder. Mas não! Tinham que destruir tudo por causa daquela palerma que depois de meter os cornos num e ter tornado o outro um traidor perjuro se foi encafuar num convento a chorar as mágoas da sua vida…

            - Visto por esse ponto, o gato jamais se poderá chamar Lancelo… Lancelet.  – concordou. – Mas MordredMordred significa "conselho superior da morte", Vais chamar isso ao animal?

            - Encara isto do ponto de vista socrático. O Conselho Final de Zeus, o tribunal das almas onde os três juízes, Minos, Éacos e Radamantis decidem para onde vai a alma do morto: céu ou inferno. Diz lá Shaka – a rapariga sorriu estranhamente – haverá Conselho mais justo e mais credível?

            - Eu digo, que tu, minha menina  – Shaka tocou-lhe com o dedo entre as sobrancelhas – és mais do que o que pareces. – Dâmaris riu-se. – Por acaso preocupaste-me quando estavas a chorar. – Dâmaris olhou-o. – Pensei que te estavas a ir abaixo com o treino.

            - Eu já te mostro quem se está a ir abaixo… - rosnou ela antes de pegar numa almofada e começar a acertar-lhe onde desse mais jeito. Shaka conseguiu escapar-lhe e levantou-se rindo.

            - Dâmaris, pára… Ai! – a jovem concentrara-se e conseguira com que todas as almofadas da sala se virassem contra o mestre. – Isto não vale!

            - Na guerra vale tudo! Aliás… - Shaka acertou-lhe com uma almofada no nariz. – Isto É guerra. – o feroz combate de almofadas que se seguiu só terminou quando um enorme jarrão chinês se ia espatifando no chão. Shaka segurou-o por pouco.

            - É melhor passarmos à guerra da comida. – disse o cavaleiro dirigindo-se para a cozinha.

            - Mordred... bsbsbs… anda gatinho lindo! Mordred - chamou Dâmaris fazendo o gatinho sair debaixo de uma pirâmide de almofadas. O bichinho deu um pulo para a frente, um para trás, deu uma corridinha e começou a brincar com as franjas de um dos atilhos dos cortinados da sala. – Mordred! – o gatinho parou de brincar e seguiu Dâmaris, esbarrando num ou noutro "obstáculo".

-  É melhor ir-me deitar. – disse Dâmaris fechando o livro e olhando a noite escura pela janela.

            - A propósito, acerca da corrida de manhã – Dâmaris olhou-o – Podes vir correr comigo. Estás aqui às cinco e meia da manhã.

            - Não, deixa, não te quero prejudicar o treino. – Shaka sorriu.

            - Não te preocupes, não prejudicas. – Dâmaris levantou-se.

            - Então, está bem. Ah, outra coisa: Obrigado. – curvou-se e beijou o cavaleiro com carinho na bochecha. – Pela prenda. Boa noite.

            - Boa noite, Dâmaris… - Shaka abriu os olhos e viu a aprendiza a sair da sala com o gato pendurado nos ombros. Pouco depois a porta da rua bateu. O perfume da jovem continuava na sala.

            Finalmente o jovem mestre tinha o que sempre queria: a aprendiza completamente desapegada do corpo, do rosto, da beleza humana, do mundano. Mas, quer quisesse quer não, a verdade era só uma: Dâmaris era uma mulher. Estava uma mulher. E a mais bela mulher que ele já havia visto. E isso Shaka era forçado a admitir.

            Mas ela era mais do que uma mulher deslumbrante. Shaka sentiu a conhecida sensação que tinha de vez em quando, quando treinava a jovem ou simplesmente pensava nela. O potencial da rapariga não era o que ele esperava. Quanto mais ele a treinava, mais potencial ela mostrava. Como se nunca acabasse, como se cada vez que o potencial era satisfeito um novo potencial surgia. Aquela sensação que raramente sentia, insegurança, invadiu-o de novo. Ele tinha que treiná-la bem. Custasse o que custasse. Ele não podia falhar em nada.

            «Com dúvidas de novo, pequeno Shaka?»

            «Mestre… Só tu me chamas "pequeno".»

            «Para mim serás sempre uma criança.»

            O rapaz sentiu-se entrar no Cosmos ao apelo do seu Mestre. Ele podia ser o Mestre agora, mas mesmos os mestres precisam sempre dos seus mestres. E Shaka precisava de lições. Porque o ser humano está sempre a aprender. Porque essa é a lei do Cosmos. Porque esse é o preço a pagar pela liberdade.  

N.A.: Para não dizerem que sou má (hahahaha) e para festejar os anos do meus irmãos Kanon e Saga e os meus (e o de todos nascidos a 30 de Maio ;) ) resolvi ter um ataque de bondade e, reparando que, de facto, estes dois capítulos saíram bem mais curtos, e publicar não um, mas DOIS capítulos com TRÊS dias de antecedência!!!!!

            Será que estou a ficar com uma veia de publicidade????

            Comentários no próximo capítulo (e as bjokas também :P) !!!!!!!

Próximo capítulo: "Conflitos: o passado negro de um anjo… humano e mortal"