"O amadurecer de uma mulher"

by Ayan Ithildin

                        Dâmaris dormia tranquilamente. Após mais duas semanas de treino, não havia sonho que perturbasse o seu sono.

«Dâmaris…»

- Mestre… - Dâmaris sentou-se na cama e perscrutou o quarto. Estava vazio. Devo estar a ouvir coisas. Deitou-se novamente para trás.

«Dâmaris…»

Outra vez? Ah, não, mais sonhos não. Era melhor tentar dormir, já que aquilo não era o chamamento telepático do mestre. Aliás, este não a chamaria às duas da manhã.

«Dâmaris…!»

Mas era a voz do mestre. Dâmaris perscrutou o Cosmos e deu por falta da presença do mestre que normalmente, mesmo a dormir, andava por ali, perto de si, como a guardar os seus sonhos. A voz estava assustada, pensou a rapariga. O que se passa? Não conseguia falar com Shaka, e isso era muito preocupante. Shaka nunca encerrava a mente aos chamamentos dela. Entrou novamente no Cosmos e procurou-o. A essência dele está diferente… Dâmaris levantou-se de um pulo, vestiu uns calções e uma blusa de alças e dirigiu-se para a casa de Virgem. Se alguém me apanha, estou feita, de certeza.

Entrou no quarto de Shaka, com passos leves. A respiração deste estava pesada, os olhos contraídos e suava, a franja colada à testa.

- Dâmaris…

A jovem aproximou-se e pousou-lhe a mão na testa. Febre. Foi buscar a caixa de médico do cavaleiro, e tirou-lhe a temperatura. 39,5º?Está a arder em febre. Bonito serviço! Dâmaris suspirou e foi buscar um copo de água. Levantou a cabeça do cavaleiro a custo. Ele é mais pesado do que parece. Empurrou-lhe o antipirético pela garganta abaixo. Shaka engasgou-se no final e espirrou água para todo o sítio. Dâmaris deitou-o novamente. Foi até à casa de banho, limpou as mãos e os braços, encheu uma bacia com água gelada, pegou em duas toalhas e voltou para junto do cavaleiro.

Sentou-se ao lado dele e pôs-lhe uma toalha húmida na testa. Foi como um choque. Shaka começou a debater-se. Dizia um monte de coisas, de entre as quais a única coisa que Dâmaris compreendia era o seu nome.

- Shhh, estou aqui. Estou aqui, Shaka. – evitando os braços dele puxou o resto do lençol até à cintura. – Estás a escaldar. – Pegou na outra toalha, humedeceu-a e começou a passá-la pelo rosto e tronco do cavaleiro enquanto lhe mudava a toalha da testa de vez em quando. Às três e meia a febre deu uma trégua. Dâmaris secou-lhe o rosto e o tronco. Depois olhou-o levemente perdida no bonito rosto que estava muito mais tranquilo. Tocou-lhe levemente, com a ponta dos dedos, na face, com medo do acordar. Mas Shaka nem se mexeu; Dâmaris engoliu em seco. Deixou os dedos correrem pelo tronco, sentindo as saliências dos músculos do rapaz moverem-se com a respiração pesada. Deixou os dedos viajarem na direcção inversa, passando-os pelos lábios levemente gretados pela febre. Sentia-os a ferver por debaixo dos dedos frios. Tirou-lhe a franja, já seca, para o lado. Os olhos da rapariga pareciam hipnotizados enquanto os seus dedos corriam uma e outra e outra vez o corpo e o rosto do rapaz. Depois pareceu acordar com um suspiro.

- Amanhã venho logo de manhã. – disse baixinho, mais para si do que para ele. Ainda sentada, curvou-se e beijou-lhe a testa. Os braços de Shaka rodearam-na e puxaram-na para o corpo dele. O que é que se está a passar? Pensou aturdida. Deixou-se ficar quieta e depois tentou-se soltar. Shaka resmungou qualquer coisa e puxou-a com mais força. Porra! Mesmo a dormir tem força para burros. Dâmaris bem que se tentou soltar, não o queria acordar nem agitar, senão a febre voltava. Por isso acabou deitada ao lado dele. Shaka pareceu sossegar quando teve as costas dela esmagadas contra o seu peito. Envolveu-a com os braços e ficou quieto.

Ai, no que é que eu me vim meter. E agora, como raios saio daqui? Uma vozinha veio à tona perguntando-lhe se ela realmente queria sair dali. Claro que quero! Não quero? Porque é que ele está a sorrir? Dâmaris pensou em aproveitar o bom humor para se soltar, mas Shaka ficou sério novamente e abraçou-a mais. Não tenho a mínima hipótese de sair daqui. Olhou o relógio, eram quatro da manhã. Não pensou no que fazia ali um relógio se, teoricamente, o mestre era cego. Vou ficar aqui até amanhecer. Ele aí deve ficar mais sossegado e eu saio daqui. Quando ele acordar não se vai lembrar de nada e eu finjo que nada aconteceu. Decidiu isto e enrolou-se, preparando-se para dormir uma horinha ou duas. Mal ele não me vai fazer. Mas bem que se podia chegar mais para l Shaka enrolou-se no corpo dela, seguindo-lhe a posição. E suspirou ao mesmo tempo que ela.

Acordou com um raio de sol a bater-lhe nos olhos. Shaka permanecia encostado a ela, mas já não a segurava com tanta força. Olhou o relógio. 06:50. Vou a casa tomar um banho e volto antes dele acordar. Isto é, se ele me deixar sair daqui. Deslizou habilmente por entre os braços lassos. Shaka tentou segurá-la no último instante, mas Dâmaris esquivou-se rapidamente. Ele voltou a cair num sono pesado; a rapariga pousou-lhe a mão na testa e franziu as sobrancelhas. Não falta muito para a febre voltar em força. Quando voltar tenho que lhe dar logo outro comprimido. E alguma coisa para comer. O melhor é despachar-me.

Quando voltou, ainda com o cabelo molhado, não precisou de entrar no quarto para ouvir um barulho horrível.

- Shaka! – entrou pelo quarto a dentro, entrando na casa de banho e segurou na testa do mestre enquanto este vomitava. Depois deixou-se cair sem forças, apoiado em Dâmaris que lhe fazia festinhas no cabelo. Dâmaris pegou numa toalha e ajudou-o a lavar a cara, e a lavar os dentes, o que originou uma segunda dose de vómitos. Cheia de paciência, repetiu tudo outra vez e, com muito custo, carregou-o para a cama. – Deita-te. Deita-te. O que raios comeste ontem, em casa do Shura? Isso é do estômago. – Mas Shaka mal conseguia falar. – Vou-te fazer um chá fraco e trazer-te umas bolachas integrais. Depois chamo o Mu. Ele deve conhecer um médico neste fim de mundo...

Enquanto fazia o chá chamou o cavaleiro, que apareceu, acompanhado por Carlo, quando ela voltava para o quarto.

- Bom dia, Dâmaris.

- Buon Giorno. O que é que se passa?

- Bom dia. Um de vocês podia-me abrir a porta? – pediu, apontando com a cabeça para a porta do quarto. Mu abriu-lhe a porta e entraram, Dâmaris dirigindo-se ao mestre, levantando-o de modo a que ele ficasse sentado, encostado a si.

- Credo, Virgem, que te aconteceu?! – perguntou Carlo assustado, vendo a cara pálida e as olheiras do cavaleiro. Mu abriu a boca olhando Dâmaris, que fez um gesto impaciente.

- É o estômago. O que é que ele comeu ontem em casa do Shura? – perguntou, concentrando-se em fazê-lo beber o chá fraquinho de limão.

- Não sei, não fui. – disse Mu. Depois pareceu concentrar-se.

-Bem, ontem comeu-se muita coisa, ragazza, mas ninguém ficou mal. Isso é o Virgem que é ainda bebé, não aguenta comida de homem. – e riu-se apelando ao costume de se meterem com Shaka por ser o mais novo, calando-se depressa quando Dâmaris o fulminou com o olhar.

- Problemas. – disse Mu parecendo despertar. – O Aioria está cheio de febre e aos vómitos. A Marin encontrou-o esta manhã. Carlo, quem mais estava lá?

- O Shura, eu, Shaka, Aioria, Afrodite e o Kanon. – disse Carlo. – Não consegues ver se eles estão mal? – nesse momento Shaka vomitou o chá e bilis, desta vez em cima dos braços de Dâmaris. Carlo fez um ar enojado, mas Dâmaris não se alterou. Indiferente, pegou numa das tolhas da noite anterior, limpou os braços e cara de Shaka, que recomeçara a suar.   

- Vá lá, mestre. Tens que comer, senão não te posso dar os comprimidos para a febre. – Mas Shaka parecia horrorizado em ter que comer alguma coisa. – Vá, bebe o chá. Bebe. Tens que o conseguir manter no estômago até começar a fazer a digestão. – Shaka vomitou o chá de novo.

- Ele está mesmo mal… - observou Mu enquanto Carlo fazia de novo cara de enojado. Dâmaris repetiu a operação anterior, como se nada tivesse acontecido. Shaka agitou-se fracamente.

- Pronto, está bem, não te dou mais chá. Come as bolachas. – Partiu uma bolacha aos bocados e foi-lha dando pacientemente. – Vá lá, Mu, vê se está mais alguém doente.

- Não te faz impressão ele vomitar em cima de ti? – Carlo não conseguiu resistir à pergunta. Mu estava de novo ausente. Dâmaris nem olhou para Carlo.

- Passei seis meses a cuidar de uma mulher com cancro nos intestinos e no fígado. Garanto-te que é bem pior. – olhou sarcasticamente para Câncer. – Vomitam o fígado em cima de ti e agonizam até morrer. – e, voltando a olhar para o mestre, respondeu à pergunta que Carlo não chegou a formular. – Foi a minha mãe.

Carlo olhou-a condoído. Gostava demais da sua mãe, apesar de não a ver há tantos anos, para não conseguir deixar de sentir tristeza ao ouvir aquilo.

- Aioria, Shaka e Afrodite. – disse Mu. – Estão os três doentes. Eu vou chamar o médico.

- Eu vou ver o Afrodite antes de ir falar com Saga. – disse Carlo. Olhou Dâmaris. – Consegues tomar conta dele sozinha?

- Claro que sim.

- Volto num instante. – prometeu Mu antes de saírem os dois. Dâmaris suspirou e olhou Shaka que voltava a tremer de frio.

- Agora vais beber o chá. – E empurrou aos golinhos o resto do chá. Depois deu-lhe o comprimido e ficou sentada, fazendo-lhe festas na cabeça até ele adormecer, perdida nos seus pensamentos.

- Por aqui, doutor. – Mu entrou com o médico no quarto. – Doutor, esta é Dâmaris, a aprendiza de Shaka. Foi ela que cuidou dele. Dâmaris, este é o doutor Galeno.

- Boa tarde. – o médico apertou a mão de Dâmaris e depois voltou-se para Shaka.

- Ele está a dormir. Dei-lhe um antipirético há pouco tempo.

- E os sintomas? – perguntou, pousando uma mão na testa de Shaka.

- Febre, muita febre. Esta madrugada teve 39,5º. Agora já estava a fazer outra vez. Vómitos, não segura nada no estômago. E mal tem forças para falar.

- Foram as natas da lasanha verde. – disse Kanon chegado, entretanto com o gémeo.

- Não sabia que Aioria é vegetariano. – disse Mu, erguendo o sobrolho.

- Ele é tão guloso que come tudo o que lhe aparece à frente. – disse Saga olhando perscrutadoramente para Dâmaris. – Deve ser o que se chama fome de leão. – encolheu os ombros.

- Natas, então? Isso é do piorio. – disse o médico enquanto dava a volta à mala. – Gostava de lhe poder ver os olhos, mas Virgem é o tal caso especial. – Dâmaris não percebeu. Mesmo os cegos têm inflamações oculares, porque raios não podia o médico ver os olhos de Shaka? – O estômago está a travar uma bela batalha… -comentou enquanto lhe auscultava a barriga. Depois tirou uma caixinha de medicamentos da mala enquanto abanava a cabeça. – Bem, mas vocês, cavaleiros de ouro, têm o bom hábito de se recuperarem em dias daquilo que em nós se arrasta por meses… - olhou Dâmaris. - Dois comprimidos quatro vezes por dia à hora das refeições. Se lhe começar a dar já ao almoço, ao jantar ele já poderá comer uma sopa de legumes bem leve. Nada de comidas pesadas durante uma semana, uma semana e meia. Ah, e o caso difícil… - O médico coçou a cabeça e Dâmaris ergueu as sobrancelhas, sem perceber porque os gémeos se tinham começado a rir. - Shaka é um doente dificílimo. Tem que o aguentar de cama uns três dias, no caso dele chega. E também se irá dar o caso de ele se negar a tomar os comprimidos. Infelizmente, se ele não os tomar, a congestão irá evoluir para uma inflamação, seja cavaleiro de ouro ou deus… o corpo é humano à mesma, se bem que mais resistente. Ele tem que os tomar…

- Eu faço-o tomá-los. E a febre? – disse Dâmaris energicamente.

- Pode continuar a dar-lhe os antipiréticos quando ele começar a fazer. – o médico fechou a mala com um estalido. – Bem, vou ver Afrodite.

- Deixa estar, Mu. Eu acompanho o doutor daqui para cima. – disse Kanon, saindo com o médico.

- Então…

- Bom dia, Saga. Desculpa não te ter cumprimentado. – disse Dâmaris, sorrindo-lhe. Apesar da sombra que aquele gémeo impunha não conseguia deixar de gostar dele.

- Já nos distingues?

- É fácil. Os teus olhos são esverdeados e os de Kanon são mais azuis. – disse ela com um sorriso.

- Muito bem… Então, diz-me lá… como é que sabes que o Shaka teve febre esta madrugada? – Disse Saga, cruzando os braços.

- Ora que coisa, fui eu que cuidei dele, tinha que saber não? – respondeu desatenta, enquanto apanhava a chávena e o prato vazio da mesinha de cabeceira.

- Ah… e o que estavas tu a fazer aqui de madrugada? Julguei que a casa de Virgem também tinha uma casa de aprendiz… - Dâmaris endireitou rigidamente as costas percebendo finalmente o alcance da questão. Os olhos estreitaram-se com frieza. Mu estava a observá-los em silêncio.

- E tem uma casa de aprendiz. É lá que eu durmo. Todas as noites. – equilibrou o prato e a chávena numa mão. – E, já que queres saber, eu estava lá a dormir quando senti a alteração no cosmos do Shaka. E vim ver o que se passava. Encontrei-o cheio de febre e tratei de a fazer passar. – encaminhou-se para a porta.

- Tu sentiste a alteração do cosmos do Shaka só com a doença e a esta distância? – perguntou Saga estupefacto.

- É evidente que sim. Acabaram as perguntas idiotas? – Dâmaris acabou por perder a paciência. – Olha, não me culpes daquilo que não consegues ensinar ou… - olhou-o argutamente. - …fazer. – e saiu do quarto de nariz empinado. Saga olhou Mu de boca aberta, que encolheu os ombros.

Quando Dâmaris voltou da cozinha, de balde e esfregona e um novo conjunto de lençóis debaixo do braço, os cavaleiros ainda lá estavam. Dâmaris ignorou-os magoada. O Shaka doente e eles com perguntas estúpidas. Mas seria possível que aquele Santuário só tivesse gente doida lá dentro? A pseudo-deusa era o que era, os cavaleiros iam pelo mesmo caminho… Não admira que o mundo ande como ande…

- Dâmaris… - disse Mu seguindo-a até à casa de banho, onde ela já estava a lavar o chão. – O Saga não disse aquilo por mal…

- Não, disse por bem… - resmungou a rapariga, torcendo tão violentamente a esfregona que por pouco não partiu o cabo.

- Dâmaris, cometeste um deslize, miúda. Disseste que estavas aqui de madrugada. – disse Saga com impaciência. – Só te quis mostrar o que a maioria das pessoas iria pensar, perguntar ou até mesmo falar.

- Se a maioria das pessoas pensaria isso, - disse Dâmaris pondo a mão na cintura e ficando com os olhos muito brilhantes. – então, atrever-me-ia a dizer que este Santuário é feito de comadres e tarados. E nada mais têm no cérebro senão espaço ventoso para fazerem juízos sujos acerca de situações que nada têm de mal. Diz-me que este santuário não é uma estrumeira, Saga, ou então começo a duvidar da continuidade da defesa do mundo.

- Dúvidas que seja? – perguntou Saga, divertido, fazendo um gesto para Mu ficar calado. – Quantas pessoas pensas que se aproveitam daqui? Mu não iria pensar mal de ti, nem Afrodite, de certeza. Carlo acha que és uma miúda, também não iria. Eu, por mim, confio bastante em Shaka e em ti. O mesmo vai com o Kanon. O Camus não quer saber do que se passa desde que o deixem em paz. O mesmo vai com o Fénix, semelhante pensamento jamais passaria na mente do Andrómeda, o Hyoga e o Shiriyo são demasiado reservados para falar da vida das outras pessoas. Das raparigas, Marin ficaria sossegada, é demasiado madura para fazer juízos de valor e aquela loirinha… aquela que namora com Shun…, como é que ela se chama…

- É a June. – ajudou Mu, olhando descrente para o colega que nem ao menos o nome da namorada do pseudo-aprendiz sabia. Se soubesse do resto então… o não tão calmo como isso cavaleiro de Áries sufocou uma risada.

- Isso, a June, também não iria pensar mal. São – Saga contou pelos dedos – doze pessoas. Sabes as centenas de pessoas que moram no Santuário?

- Dâmaris, tens que ter cuidado, há aqui gente que faz de tudo um piorio. – disse Mu, conciliador.

- Como daquela vez que as duas irmãs de Carlo o vieram visitar e um guarda foi espalhar que o Câncer estava a fazer um menáge à trois às quatro da tarde na quarta casa. – disse Saga.

- Exceptuando que dessa vez Carlo matou três guardas e mandou vinte e cinco para o hospital. – lembrou Mu, franzindo a testa.

- Eu próprio daria cabo do animal que inventasse uma história que fosse acerca de ti e do Shaka. – disse Saga secamente. – Shaka é um amigo demasiado bom para que eu deixe que o caluniem. De qualquer modo, tens que ter cuidado com o que dizes. Quantas suspeitas pensas tu que não surgiram quando vieste ser treinada por Shaka? Realmente o facto de Shaka ser um sedutor cruel incorrigível não ajuda muito à festa, mas o tamanho das línguas das mulas do Santuário contentam-se com pouca coisa.

- "Sedutor cruel incorrigível"? Que queres dizer com isso? – perguntou Dâmaris de testa franzida. Saga começou a rir-se. Mu tossiu.

- Ele quer dizer que o Shaka não se apaixona pelas pessoas, simplesmente porque acha isso um sentimento próprio dos fracos e um entrave ao alcance da Sabedoria. Mas ele adora fazer jogos de sedução, embora que quando alcance o resultado desejado, dê com os pés nas pobres coitadas. – disse Mu, corando levemente. Dâmaris estava de boca aberta, agarrada ao cabo da esfregona para não cair.

- Enfim, um Virgem nada virgem. – disse Saga com um sorriso maldoso. – Mas percebes agora o que eu te digo? Shaka nunca faria nada contigo, mas o problema não é o que não faz, é o que as pessoas dizem.

Não sabes tu um décimo da história. – pensou Dâmaris, fazendo um ar inocentemente espantado. ­– Compreendo. Obrigado, Saga.

- Pronto, está tudo bem. – fez-lhe uma festa no alto da cabeça. – Vou-me embora, qualquer coisa, chama.

- Sim, Dâmaris, se precisares, chama-me. Eu venho num instante. – assegurou Mu, seguindo Saga pela porta. Dâmaris acabou de limpar rapidamente a casa de banho, meteu as toalhas na máquina de lavar, lavou a bacia e encheu-a novamente com água.

Quando voltou ao quarto, Shaka começava a acordar. Sentou-se à frente dele e pôs-lhe a mão na testa.

- Nada de febre. Como te sentes?

- Cheio de dores. – a voz saiu fraca e rouca, mas o cavaleiro começava a dar mostras da rapidez de recuperação próprias do seu nível. – O que é que eu tenho?

- Uma congestão. Tens o estômago praticamente em carne viva, isso sim. Foi a lasanha verde que comeste ontem à noite, em casa do Shura. Tinhas que ser guloso? – censurou-o na brincadeira, tentando animá-lo. – O médico esteve cá. Deixou-te estes comprimidos para tomar – o rosto de Shaka transformou-se e ele ficou com aquele ar extremamente irritante, de quem se acha acima de todas as regras. – Tu vais tomá-los, meu anjo, garanto-te que vais. – disse Dâmaris ameaçadoramente.

- Está bem, minha diabinha. – disse ele com um sorriso irónico e de quem estava a armar alguma, se bem que fraco. – Mas só porque tenho um medo de morte de ti.    

- Acho bem que sim. Agora, vou-te ajudar a levantar e vais-te sentar no sofá enquanto eu mudo a roupa da cama. – disse ela, ajudando-o a levantar-se.

- Quero tomar banho. – exigiu ele, com um aspecto extremamente parecido ao de um miúdo que faz birra quando está doente.

- Estás com vontade de desmaiar na banheira?

- Vou tomar banho, sim. – Dâmaris suspirou e levou-o até à casa de banho.

- Se desmaiares na banheira, eu não te vou buscar. – avisou ela.

- Isso querias tu. – começou ele a provocar. As palavras de Mu vieram-lhe à mente. Um sedutor cruel incorrigível.

- Nem nos teus melhores sonhos…. – e fechou-lhe a porta na cara, calando o riso fraco de Shaka. Nem mesmo quando está doente… Fez a cama de lavado, deixou uns calções lavados em cima da coberta e foi pôr as roupas na máquina. Quando voltou, Shaka já estava a tirar umas calças de treino brancas do armário. – Que pensas tu que estás a fazer?

- A vestir-me. – A voz dele estava mais fraca de novo. Seu idiota, o banho cansou-te. Dâmaris tirou-lhe firmemente as calças das mãos, atirou-as para dentro do armário e fechou a porta com firmeza atrás de si. Shaka estava só de boxers, mas Dâmaris nem reparou. Afinal, boxers ou calções, tapa tudo a mesma coisa… Apontou para os calções.

- Veste os calções e cama. – ordenou. Shaka fez novamente aquela cara infantilmente obstinada.

- Quem é que me vai obrigar? – Dâmaris cruzou os braços.

- Eu. Alguma dúvida? – e antes que Shaka pudesse falar – Vai vestir os calções e deitar-te ou eu zango-me. - Shaka vestiu os calções sob o olhar ameaçador da jovem. Depois virou-se novamente com cara obstinada.

- Dói-me a cabeça.

- E daí?

- Daí que quando me dói a cabeça eu não me posso deitar. – Dâmaris olhou-o demoradamente. Depois sorriu malevolamente.

- Dói-te a cabeça? – andou até à mesinha de cabeceira e pegou numa palete de comprimidos. – Só tens que tomar um comprimidinho e isso passa. – Shaka fez cara feia, começou a enfiar-se dentro da cama enquanto resmungava qualquer coisa. – O que estás para aí a ruminar?

- És pior que o Saga…

- É o signo de gémeos a funcionar. – Dâmaris tirou uma mola do bolso dos calções e prendeu o cabelo no alto da cabeça. Tinha cortado novamente o cabelo e algumas mechas ficaram soltas. Tapou o cavaleiro. – Agora vais ficar aqui quieto. Eu vou buscar uma coisinha leve para almoçares. E ai de ti que te apanhe fora da cama.

Quando Dâmaris voltou, com dois iogurtes e uma torrada com pouca manteiga, Shaka estava a dormir novamente. Abanou-o.

- O que foi? – a voz estava um pouco mais forte de novo.

- Almoço. – ajudou-o a recostar-se, já que os estômago lhe doía horrivelmente cada vez que se mexia. Sentou-se à frente dele e enfiou-lhe uma colherada de iogurte pela boca abaixo.

- Iogurte????? – perguntou chateado.

- Shaka, tu tens o estômago ferido! Queres comer o quê?

            - Não há nada mais substancial?

- Há uma injecção a soro de dois litros. Serve? – perguntou Dâmaris com cara de poucos amigos. Shaka fechou a cara.

- Posso-me alimentar sozinho.

- Eu não confio em ti. – enfiou-lhe nova colherada de iogurte na boca.

- Podias ser mais meiguinha… - protestou novamente.

- Olha, queres que faça o aviãozinho com a colher, queres? – perguntou Dâmaris enchendo-se de paciência.

- Não. Mas eu pensei que merecia mais mimo da tua parte… - disse com aquele aspecto inocente, parecendo realmente magoado. Dâmaris suspirou, sabendo que estava mais fria com ele desde a conversa com os outros dois cavaleiros.

- Desculpa, mereces, sim. – a nova colherada já foi com mais carinho e a outra com mais ainda.

- Hum, está melhor… - aprovou ele, fazendo-a sorrir. – Até o iogurte ficou mais doce. – quando o iogurte acabou, Dâmaris deu-lhe a torrada e depois pegou no outro iogurte. Shaka abanou a cabeça.

- Não quero. – ela ia começar a ameaçá-lo de novo. – Dói-me o estômago, ok?

- Ok, ok, ok. Ainda tens que tomar estes comprimidos. – Shaka fez cara teimosa e cerrou os lábios. – Ou tomas ou eu…

- Dás-me um beijo? – perguntou ele com um sorriso chantagista de quem sabe que ela não iria alinhar no jogo, se bem que extremamente fraco. Estava a ficar cansado novamente. Dâmaris trocou-lhe as voltas.

- Se tomares os comprimidos, dou-te, pivete mimado. – disse a rapariga.

- Então está bem. – Shaka engoliu os comprimidos a contra gosto. Depois Dâmaris deu-lhe um beijo suave na testa. – Espera. Foram dois comprimidos… - Dâmaris riu-se, abanou a cabeça e deu-lhe outro beijo, na face.

A tarde passou depressa. Shaka dormitou, tomou os dois comprimidos do lanche em troca de mais dois beijos, a ameaça de febre desapareceu assim que ele tomou o antipirético.

Às seis e meia Dâmaris sentou-se na mesa da cozinha a olhar o fogão. Tinha que fazer o jantar, mas havia um problema…

Não sei cozinhar… Ai, minha deusa, eu não sei cozinhar, como é que vou fazer uma sopa se nem sequer sei fazer um ovo estrelado??? Eu devia ter aprendido a cozinhar, eu devia… Ai, que vergonha! Até Shaka sabe cozinhar… Bem, é melhor tentar. Primeiro tenho que pôr uma panela com água. E sal… Quanto de sal? – pensou desalentada, olhando o saleiro bojudo cheio de sal grosso. – Sei lá, ponho um bocado e provo quando a água estiver diluída. Deve saber mal, mas paciência. Se no final ainda faltar sal, não, sei…Ah, sim, posso por sal fino, esse dilui-se com facilidade. Hehehe sou um génio…Que é que leva a sopa? Não sei… Cebola, alhos, batatas, cenouras, espinafres e nabiças. – decidiu olhando o cesto das hortaliças – Ai, que coisas chatas de tirar a casca. As batatas das cozinheiras ficavam sempre lisinhas e certas. Ai, porra! – Dâmaris olhou para o dedo cortado e pô-lo debaixo de água fria. Depois voltou à sopa. – Bem isto vai de que maneira for, no final fica tudo em puré, não interessa se ficam lisinhas ou não. As cenouras a mesma coisa…E os espinafres? Talos ou sem talos? Eu não gosto de talos, vão só as folhas… E o mesmo para as nabiças – pôs a água a aquecer e provou quando o sal se diluiu, fazendo uma careta – Blergh! Isto sabe a sal. Está quase a ferver… Ok, os vegetais, todos lá para dentro… Wow, tenho que tirar água senão vem tudo por fora… Já está… As batatas e as cenouras são mais duras, devem cozer mais devagar… Será que cortei em bocados muito grandes? Ah, não sei, assim como assim vai ficar tudo em puré! – Esperou que aquilo cozesse, provando um bocadinho de cenoura e espetando as batatas de vez em quando. – Pronto, acho que já está. Agora, varinha. – quando ficou tudo em puré provou. – De sal está bom…Mas falta qualquer coisa… havia uma coisa que Dierna punha sempre… O que era… Ah, azeite! Quanto de azeite? Duas colheres. – decidiu, como mediterrânica que era. – Ena, já são oito horas! - Pôs a sopa num prato e decidiu comer primeiro, não fosse aquilo envenenar alguém. – .Até está bom. Acho…

- Onde estiveste? – perguntou Shaka vendo-a entrar com o prato na mão. – Sopa! – alegrou-se. Afinal, sempre ia comer comida de gente naquele dia infernal. – Quem fez?

- Eu. – corou e sentou-se à frente dele, pondo-lhe uma pano no colo, um tabuleiro e o prato da sopa. – Olha que eu nunca cozinhei na minha vida. Não sei se está bom, mas matar não mata. Pelo menos eu não morri. – disse, estendendo-lhe a colher de sopa com a mão esquerda. Shaka pegou-lhe e sentiu os dedos com pelo menos três cortes. Sorriu docemente.

- Dás-ma? – ainda corada, Dâmaris deu-lhe uma colherada, preparando-se para ver Shaka cair envenenado.

- Hum, delícia. A melhor sopa que já comi na minha vida. – disse ele, fugindo um pouco à verdade. A sopa estava boa, mas não era a melhor do mundo. Mas parecia-lhe porque tinha sido feita de propósito para ele, parecia conter todo o cuidado e carinho que Dâmaris lhe tinha. Ele não sabia porquê, mas isso fazia-o sentir-se bem.

- Não faças pouco de mim. – pediu ela. Shaka sorriu novamente com doçura.

- Eu não minto. Dá mais. – Dâmaris terminou de lhe dar a sopa, houve outra corrida dois-beijos-dois-comprimidos e mais um extra porque também tomou um antipirético. Depois ficaram ali a conversar. Às dez da noite, Shaka parecia estar a adormecer. Ele está cansado. E eu também. Esta noite não deve haver problemas.

- Shaka, eu vou-me deitar. Tu também estás a morrer de sono. Volto amanhã, está bem? – curvou-se e deu-lhe um beijo na testa. Depois tocou-lhe no nariz com um dedo. – Bons sonhos. – Shaka estava invulgarmente quieto. Devia ter adormecido. Dâmaris sorriu afectuosamente e encaminhou-se para a porta, pousando a mão no manípulo. Então ouviu o pedido mais surpreendente da vida dela.

- Dâmaris… dorme comigo esta noite… - a jovem sentiu o ar faltar-lhe e virou-se para o cavaleiro que estava com um sorriso extremamente doce. Ficou totalmente corada e sem reacção.      

N.A.: Ok, se eu queria o Shaka doente, com qualquer coisa mas sem crónica ou perigosa, tinha que ser uma coisa destas. Conheço por experiência própria, levei um mês a ficar boa, só que tive de me tratar sozinha durante a primeira semana e nas outras três não tive o meu secretário/enfermeiro estilo Dorian etc etc etc…

Este idiota teve uma enfermeira muito bonita... Ai, mas porque é que eu sou tão boazinha com os meus personagens?????

Boazinha?????????????? Tu matas-me de dores e dizes-me que és boazinha?????

Sou sim, chato…

Próximo capítulo (que era para ser uno com este, mas ficava muito grande): "Dúvidas e conflitos"