"A cruel fortuna do guerreiro: «Silêncio e escuridão - e nada mais!»"
(O Palácio da Ventura, 14º verso, Antero de Quental)
By Ayan Ithildin
- Escória do Olimpo, eu? – perguntou Dâmaris numa voz harmoniosa. – Por favor, não me confundas com a minha adorável tia Athena! Eu sou do sangue mais puro que há… - disse num tom jocoso – descendo do próprio sangue de Caos. Athena é que… quer dizer… Afinal, nasceu da mente de um velho jarreta pervertido… - disse descontraidamente, como se falar de Zeus assim fosse a coisa mais normal do mundo.
- Aphrodite! Como te pudeste aliar… aliar a ela? Ela é um monstro, pelas chamas das forjas de Hefesto! – protestou Saori. – Perdeste o pouco juízo que te resta?
- Deixa as forjas do meu marido em paz, doçura. A menos que pretendas ser cremada… Acho que se arranja o efeito…
- Também a podemos queimar viva, não se perdia nada… hoje vai haver lua nova, o céu está estrelado…. Excelente para se assistir às chamas Olímpicas embebidas em sangue divino… Sei lá, sempre era uma variante. Dantes sacrificavam-se homens, qual é o problema de sacrificar uma deusa? Pelo menos, nunca mais reencarnava, o problema era resolvido. A tortura também se arranjava… – objectivou calmamente Dâmaris, observando as unhas enquanto erguia as sobrancelhas, aparentemente divertida com alguma memória ou ideia. Olharam-na chocados e Aphrodite abanou a cabeça.
- Querida, já te disse que vais ter a tua parte de divertimentos. Athena é minha…
- Tortura e mata Athena à vontade, mas pelo menos faz o trabalho bem feito desta vez, só para fugir ao hábito… – disse a deusa guerreira sem se alterar. Aphrodite fez cara de quem não gostou do que ouviu mas manteve-se calada.
- Porque é que estás do lado dela, Dâmaris? Athena… - principiou Saga furioso.
- Ela é filha de Aphrodite. – disse Shaka friamente. – e de Ares. E foi adoptada por Hades… contudo, até este perdeu o pouco controlo que tinha sobre ela… - Dâmaris torceu o nariz, fungando divertida.
- A tua cultura sempre me impressionou, Shaka. Mas nunca pensei que te dedicasses a livros de ocultismo e magia negra… - olharam-na sem perceber.
- Ela é filha de Aphrodite e Ares. Foi expulsa do Olimpo pela sua desmesurada crueldade e o único deus que a acolheu foi Hades, no Submundo. É por isso que lhe chamamos "a afilhada do diabo". – explicou Saori tremendo de raiva.
- Está bem, Saori, mas quem é ela? Não tem um nome ou assim? – perguntou Seiya impaciente.
- Nós não sabemos o nome dela… - disse Saori desviando os olhos. – Ninguém se lembra. Actualmente é recordada como a Lua Negra ou então a divindade feminina a que ainda se prestam cultos secretos… - Dâmaris estalou numa gargalhada cristalina.
- Não me digam que ainda têm medo de dizer o meu nome? – Dâmaris estava cruelmente divertida com o medo de Saori. – Vá lá, Athena, confessa… Vocês sabem muito bem o meu nome no Olimpo… apenas têm-me tanto terror que até temem em pronunciá-lo. E foi essa a lenda que ficou? Que eu fui expulsa do Olimpo por ser cruel? – Dâmaris olhou para Aphrodite, que assentiu. – Athena, por favor, tu és a deusa da justiça, da verdade, da sabedoria… não tens vergonha de contar mentiras às criancinhas? – perguntou abrangendo os cavaleiros. – Eu fui expulsa do Olimpo pela inveja que tinhas de mim, pelos ciúmes e pelas tuas mentiras e invenções perversas… Mas claro que aquele velho tarado apenas iria acreditar na sua filhinha querida…
- Porque teria Athena inveja de alguém tão obscuro como tu? – perguntou Hyoga furioso.
- Porque eu sou muito mais poderosa que ela, - na voz dela não havia a mínima nota de vaidade ou arrogância, apenas a simples constatação de um facto - e porque, quando o meu avozinho decidiu quem ficava com o controlo da Terra, quem ficou com ele fui eu e não Athena. Controlo sim, ou ainda acreditam nessa conversa de protecção? Ela não vos protege… ela protege o território dela, tal como Poseídon defende os mares e Hades o Submundo… Vocês falam mal de Saori… Eu disse-vos que os deuses gregos eram cruéis e egoístas e a história de Athena não abona em nada a seu favor… - riu-se perante as caras estupefactas. – virgem, ela, hahaha… Realmente, os atenienses conseguiram fazer as suas lendas suplantarem todas as outras… mas procurem as lendas de Athena no resto da bacia mediterrânica… apenas para obter favores… e porquê?... porque, por exemplo, Páris não a considerou a deusa mais bonita… - Dâmaris encostou-se a uma pedra alta, cruzando os braços e olhando-os trocista. – Diz-me lá, Athena, a justiça não é cega? A sabedoria não é imune ao físico? O que te interessa a beleza? – riu-se – Aliás, a nossa querida deusa da sabedoria é burra como tudo.. cada esparrela que Eris arma, estende-se ao comprido como uma pata… - olhou trocista para Hyoga e fez um gesto dramático, esganiçando a voz para imitar a deusa da guerra – Oh, papá… apareceu um pomo dourado (de onde terá vindo?) na mesa com a inscrição "à mais bela"… e nós provocámos uma guerra porque Páris não me achou nem a Hera as mais bonitas… Foi uma carnificina de troianos e gregos e crianças inocentes mas o pedantezinho foi castigado… Claro que as mulheres violadas e as crianças brutalmente esventradas e despedaçadas não interessam… humanos reproduzem-se como coelhos, não é papá? Mais um milhão menos um milhão…
- Cala-te! – gritou Athena, verdadeiramente Athena, furiosa. Os cavaleiros olhavam-nas confusos. Dâmaris riu-se e Aphrodite estava deliciada com o oceano de vergonha em que Athena se afogava.
- A Lua Negra, a minha primeira filha, sempre foi uma deusa poderosa, agraciada pela beleza, pela destreza das armas e pela inteligência, sagacidade e sabedoria. Mas houve uma coisa que nasceu com ela: um poder enorme e um sentido de justiça forte e dominante. Tanto que foi capacitada por Zeus para ficar com o controlo e protecção deste planeta, uma vez que a sua justiça era global e apenas com um peso e uma medida. Ela era boa para quem era bom… e de uma crueldade sem limites para quem era mau… no entanto a sua justiça era justa. Athena ficou invejosa e conseguiu convencer o nosso pai que ela planeava tomar o controlo do Olimpo nas suas mãos. A Lua Negra tinha ido para a Pérsia terminar uma carnificina popular e quando voltou a armadilha estava preparada. Ela nunca demonstrou muito respeito por Zeus, este tomou-a como culpada e expulsou-a do Olimpo. Hades recolheu-a e pôs o Submundo e Elísios à sua disposição… O nome dela foi apagado da memória dos homens, os templos destruídos, as inscrições desgastadas, os papiros rasgados, as estátuas pulverizadas… E Athena sucedeu-a… Contudo… - disse Aphrodite, alisando a saia. – Houveram homens que não a esqueceram totalmente… E o culto continuou às escondidas… Athena perseguiu-os e puniu-os com torturas e morte… mas o culto alastrou-se. Os cristãos ouviram histórias dispersas e aquela imagem engraçada que eles têm de que o diabo aparece sob a forma de uma deslumbrante menina virgem e inocente, amável e doce, com uns intensos e luminosos olhos verdes… de onde pensam que vem? – Dâmaris sorriu-lhes doce e inocentemente e as medulas dos cavaleiros arrepiaram-se. – Contudo o verdadeiro culto ainda hoje sobrevive, se bem que muitos lhe chamam a "Inominável".
- Serão recompensados… - disse Dâmaris suavemente. Aphrodite acedeu.
- Athena será afastada deste mundo e eu terei sempre um braço direito presente, uma vez que à Lua Negra foi concedida uma das maiores dádivas dos deuses: o caminhar voluntário entre este mundo e o Submundo não obedecendo nem às regras divinas nem às mortais. E a Humanidade conhecerá a época áurea dos prazeres do corpo, da beleza e da felicidade mundana! – disse Aphrodite abrindo os braços. – Não mais se temerá a morte, pois o prazer desta vida será suficiente para apagar toda a dor futura! Os homens estarão sobre o domínio das mulheres e estas sob o meu comando… Deuses e homens jamais conseguirão opor-se a mim e a ela… E tudo o que me resta a fazer… - disse, baixando os braços. – É ceifar as vossas vidas e cortar a cabeça de Athena…
- Tu és louca… - afirmou Aldebaraan. – Como podes crer um mundo rendido ao físico e à luxúria? O amor é bem mais que isso, a vida é bem mais que isso! Inferno e Elísios existem exactamente para atemorizar os homens e mostrar-lhes os seus destinos previamente consoante as suas acções! Sem medo da morte e da punição… Como pensas controlar os homens? Mesmo os que se negam a acreditar… bem no intimo sabem que serão punidos.
- O amor… o amor é atracção e crueldade. Os homens amar-me-ão e as mulheres temer-me-ão ou… morrerão. Tão simples quanto isso.
- Onde está a tua justiça, Lua Negra? Alias-te a ela desta maneira, sabendo os seus objectivos… - acusou Shiriyo.
- Eu trato de manter a justiça, não te preocupes… Claro que, não atenderei a sangue, nem posições sociais, nem quaisquer outros atributos… Sim, bem sei que a justiça verdadeiramente justiça atemoriza os homens… e os deuses. - concluiu com um aspecto pensativo, levando um dedo ao queixo, muito séria, verdadeiramente séria. Shaka achou aquilo muito curioso. Talvez fosse a diferença entre Aphrodite e a filha. Segundo a lenda, A Lua Negra nunca amara mas era uma companheira na cama invejável – isso Shaka podia confirmar – e letal, o seu poder e crueldade assustava qualquer um, os jogos de inteligência era astutos. Contudo, a beleza não era como a da mãe… Aphrodite era deslumbrantemente bonita contudo parecia oferecer-se aos homens em cada gesto e palavra… como se eles fossem brinquedos ou ela um brinquedo temporário deles… Dâmaris… A Lua Negra era totalmente diferente. Era tão ou mais bonita do que a mãe, mas era sóbria e distante e mesmo as roupas, por muito provocantes que fossem, não eram um convite ao um homem, pareciam mais uma proibição. Ela não se oferecia, tinham que lutar por ela. Talvez fosse aquilo que Shura queria dizer na sua comparação entre mulheres oferecidas e a sensualidade sóbria de uma mulher séria e inteligente.
- E tu, seu tradittore figlio de una puttana? – perguntou Carlo ultrajado só de olhar para Miro. – Non parla niente?
- Cavaleiro, atenção para como falas com os meus filhos… - disse Aphrodite, resplandecente. No entanto… no entanto, o olhar lascivo de Aphrodite e as suas palavras anteriores haviam causado repugnância nos cavaleiros, mesmo naqueles que caminhavam por vezes "em maus caminhos". "Filhos?", foi a exclamação quase geral. Miro e Eversor sorriram superiormente. Por momentos pareceu a Shaka que Dâmaris o estava a avisar de qualquer coisa com os olhos, mas quando a olhou com atenção a bonita deusa estava com o mesmo sorriso ligeiramente trocista e os olhos impávidos. - … ou quase. Ares…
- Não interessa. – impôs-se Dâmaris, aparentemente farta de tanta conversa. Descruzou os braços. – Não vim até aqui para conversar e… Olha os cavaleiros da senilidade… - observou com um adorável e inocente sorriso de troça, vendo Shion e Dohko surgirem chamando por Athena, se bem que na sua forma de juventude.
- Mestre! – exclamou Shiriyo.
- Como é que Shion não previu isto em Star Hill? – questionou Kanon de repente. Shion olhou-o e olhou para Athena que baixou os olhos. O cavaleiro estava verdadeiramente confuso.
- Oh não, cavaleiro, não te preocupes, as tuas qualidades não diminuíram… - disse Dâmaris sorrindo-lhe quase com amizade. – Athena também não te contou acerca dos oráculos? Vives à mais de 200 anos na cegueira? Palas, Palas… - disse, olhando para Athena como se a repreendesse.
- O que estás a queres dizer? – perguntou Aioria irritado.
- O oráculo de Athena não funciona na fase negra da lua, a lua nova. – disse Dâmaris calmamente. – Aliás, nenhum oráculo funciona na lua nova, apenas Delfos e só em condições especiais. Uma pequena atenção minha, claro. Porque pensas que demorámos mais de um mês para vir até aqui? Programámos tudo em fase de lua nova, limpámos as nossas mentes e cosmos nas outras fases e atacamo-vos hoje, quando às quatro e meia da manhã a lua entrou na fase negra. Lembrem-se bem… nunca esteve lua nova em nenhum ataque de outros deuses, pois não…? Bem, chega de conversa…
- Eu dou-te a conversa, minha cabra… - gritou Hyoga, lançando-se na sua direcção.
- Pára Hyoga! – gritou Shun.
- Pára, Cisne! – gritou Shaka em conjunto. Dâmaris nem piscou e Hyoga foi lançado contra um dos muros da arena, ficando encaixado entre dois espigões de ferro que lhe feriram ambos os lados da barriga.
- Desgraçada! Vais pagar! – gritou Seiya. – Pegasus Ryo Sei Ken! – Mas os meteoros embatiam em Dâmaris sem lhe fazer mal nenhum e, quando Seiya passou por ela, ela segurou-o por um braço, torcendo-lhe atrás das costas.
- Só isso, potro? Pensava mais do concubino de Athena… - disse sorrindo cruelmente, pondo-lhe uma mão na cintura e empurrando uma pequena bola de energia concentrada contra o corpo do cavaleiro que saiu disparado em direcção aos pés de Athena. Shun segurou nas correntes e Shiriyo endureceu os músculos. Dâmaris sorriu-lhe. – Próximo… - disse com casualidade. Shiriyo perdeu o controle e atacou também, apesar de Dohko e Shun tentarem impedi-lo. Dâmaris jogou-o contra Hyoga que conseguira libertar-se e encaixou os dois cavaleiros entre os espigões novamente. – Vocês são uma desgraça… - afirmou tristemente. Virou-se para os cavaleiros de Aphrodite. – Poupem-lhes a vergonha de serem tão fracos e matem-nos… - passou a língua pelos lábios. – … devagar…
Graciosos como bonitas e rápidas borboletas, o grupo de cavaleiros e amazonas saltou por detrás de ambas as deusas, dirigindo-se a alvos específicos. Dâmaris voltou-se de novo sorrindo.
- Só um aviso… não menosprezem as amazonas… são tão ou mais fortes do que os cavaleiros… - Camus abriu a boca mas fechou-a imediatamente quando um murro rápido e certeiro de uma amazona lhe bateu no queixo e o jogou para trás. Um cavaleiro com uns espantosos olhos castanhos mel pôs-se à frente de Shaka.
- Vais morrer, Virgem… - rosnou, pondo-se em posição. Depois fez um esgar de dor quando Dâmaris lhe segurou o pulso e torceu-o.
- O loiro é meu… - disse calma e friamente. Ele abriu a boca para protestar. Dâmaris riu-se com desprezo. – Estarias morto antes de abrir a boca… não és adversário que chegue para Shaka…
- Sou tanto como tu… - afirmou, desembaraçando-se da mão dela. Dâmaris olhou-o com crueldade e pôs o dedo de um lado da testa do colega e um raio saiu-lhe pelo outro lado, acompanhado de miolos e sangue. O corpo caiu entre os pés revestidos por botas de ouro do cavaleiro e os pés revestidos pela armadura negra da deusa guerreira. Aphrodite protestou em alto e bom som. Dâmaris nem se virou para ela.
- Ninguém me desobedece. Ninguém. – reiterou com enfâse quando Aphrodite abriu a boca para reclamar de novo. – Além disso, no trato ficou combinado que Shaka é meu. - Shaka olhou-a de cima a abaixo.
- Vais conseguir lutar contra mim? – perguntou com ironia. Ela sorriu.
- O problema não é conseguir eu lutar contra ti… o problema é se me consegues matar… - Pararam de andar um à volta do outro, medindo-se.
- Então não há problema nenhum… Eu mato-te… Lua Negra. - disse Virgem friamente. A arena estremeceu e os combatentes desequilibraram-se com a força libertada com o embate dos joelhos dos dois em conjunto com os seus cosmos se deu. Pararam os combates, observando-os na dança elegante que eram os dois estilos de luta em confronto e no espectáculo que ofereciam, até que se lembraram e recomeçaram as próprias lutas.
Shaka e Dâmaris separaram-se e pararam aquele combate infrutífero, medindo-se novamente.
- Isto não leva a nada, Lua Negra. Vamos parar com jogos de criança…
- Muito bem. – Dâmaris esticou as mãos para baixo e formou duas pequenas manchas de cosmos energia em volta das duas mãos. Dos seus pulsos pareceram nascer dois punhais, de lâminas afiadas e punhos trabalhados com símbolos selénicos… sobretudo um que se destacava no meio das luas prateadas… uma lua negra… os punhais das visões de Shaka, só que as lâminas eram negras. Dâmaris trouxe-os para cima, num gesto elegante, cruzando-os em frente ao rosto e baixando-os numa posição de ataque e defesa. – Vamos comparar os poderes do detentor do Rosário de Buda… e da detentora dos Punhais do Silêncio… - Shaka uniu as mãos, criando também ele cosmos energia e retirou o rosário de dentro da mão direita. O rosto dela ficou sério. – Até à morte de um de nós…
- Até à morte de um de nós… - confirmou ele. Ficaram em silêncio, olhando-se penetrantemente. – Ten Bu Hou Rin!
- Silent Daggers… - o choque de ambos os golpes abalou as estruturas da arena, amigos e inimigos pularam nas mais diversas direcções procurando evitar as pedras que rolavam e caíam nos locais onde haviam estado segundos antes. Pararam com os golpes e recomeçaram uma luta em que o corpo era apenas o fio condutor dos cosmos poderosos dos dois, os embates sucedendo-se com explosões de cosmos energia avassaladoras. Ikki surgiu a meio da batalha, possivelmente para salvar algum dos de bronze, mas nenhum dos dois ligou importância. Shaka pulou para trás, afastando-se de Dâmaris.
- TEN MA KOU HUKO! – gritou, lançando o seu mais poderoso golpe contra ela.
- ECLIPSE OF LIFE! – Shaka foi surpreendentemente lançado contra o muro, a pressão do ataque quebrando-lhe e rachando partes da armadura. O Rosário desapareceu da sua mão. A luz dos ataques cegou-o. Fechou os olhos, sentindo o corpo esmagado pela pressão do embate, pela pressão do seu próprio golpe, mais poderoso do que qualquer outro que já havia lançado na sua vida, pela pressão do golpe dela, mais poderoso do que qualquer outro que já tivesse enfrentado. Ouvia gritos, coisas despedaçarem-se, talvez corpos… e percebeu que o ataque não fora apenas para eles os dois, mas crescera a pontos de englobar todos os que ali lutavam… os que ainda lutavam. Só espero que ela também tenha sido atingida… E as crianças… onde estão as crianças… pensou sem se dar conta que ele, sempre insensível, estava preocupado com as crianças que treinavam na arena. A pressão parou e o peito pareceu querer rebentar contra a armadura quando finalmente conseguiu respirar. Abriu vagarosamente os olhos, deparando-se com uma enorme cratera que ocupava toda a arena, vários corpos jogados sobre e entre as pedras, mortos ou moribundos. Athena estava jogada contra uma pedra no alto das bancadas. Não viu Aphrodite. Levantou-se cambaleante, procurando Dâmaris com os olhos. Era impossível ter escapado ao Tesouro do Céu… quando se contra-atacava essa técnica, o poder do ataque aumentava automaticamente. Percorreu a cratera e deparou-se com a deusa, tão ferida quanto ele, com um dos punhais abandonado a seu lado e o outro apertado firmemente na mão enquanto ela tentava respirar, ajoelhada no chão. Shaka parou à sua frente, erguendo a mão e parando-a, aberta, em frente ao seu rosto. Olhou-o nos olhos.
- Morre, Lua Negra… - disse ele friamente. – Ten Bu… - parou, olhando-a. Dâmaris olhava-o tristemente, de novo Dâmaris, de novo aquele anjo perdido e inocente que tinha recolhido e treinado, de novo aquela mulher doce e irresistível por quem se tinha apaixonado. Ergueu o rosto, endireitando as costas e esticando o corpo sobre os joelhos à sua frente, e fechou os olhos, pedindo-lhe mudamente que a matasse com dignidade. Shaka olhou-a perdido. – Dâmaris… - Caiu de joelhos à frente dela, esticando as mãos para o seu rosto. – Porquê… - perguntou desnorteado. Reparou que o seu corpo não lhe obedecia. Tentou-se mexer mas não aconteceu nada. Olhou-a. O rosto triste de Dâmaris deu lugar a um sorriso cruel. A deusa levantou-se e olhou-o trocista. Shaka olhou-a derrotado, prostrado de joelhos à sua frente, as posições invertidas, preparando-se para morrer. Porque mereço morrer… fui eu quem falhei, fui eu que falhei no treino dela… Desculpa-me, mestre… Pensou. Aphrodite riu-se e Shaka olhou-a, vendo a deusa apontando o báculo à garganta de Athena que estava ajoelha à sua frente, enquanto lhe segurava um braço. Seiya estava estendido debaixo de duas pedras enormes. Saga e Afrodite eram duas poças de sangue, Mu e Carlo tinham as armaduras despedaçadas e o corpo quase no mesmo estado. Shura tinha ambos os braços e pernas partidos, a armadura quebrada com pedaços incrustados no próprio corpo e Aioria o corpo dilacerado em milhares de cortes profundos. Shion e Dohko, deitados lado a lado, morriam lentamente, enquanto a vida saía com o sangue que se misturava de duas enormes feridas similares. Aldebaraan estava imóvel, debaixo de enormes pedregulhos, o sangue esvaindo-se aos poucos e Kanon estava morto aos joelhos de Athena ao lado dos corpos sem vida de Hyoga e Shiriyo. Camus eram um monte de ossos, sangue e carne perto dos irmãos Amamiya, moribundos, Shun tentando ainda mover as correntes na direcção de Aphrodite, mas demasiado fraco, as lágrimas correndo, não devido ao corpo que aos poucos perdia a vida do irmão, mas devido ao facto de não conseguir salvar Saori. Os inimigos, mortos ou quase, exceptuando as duas deusas, espalhavam-se, juntando-se ao desolador espectáculo da brutal carnificina. Lembrou-se dos cavaleiros de prata mortos à entrada do Santuário, lembrou-se das crianças que ali viviam, dos guardas e mulheres assassinados. Perdemos…
- Eu tentei convencê-la a deixar-te vivo, Shaka… - disse Aphrodite numa voz lânguida. – Afinal, um homem que a consegue satisfazer sozinho durante tantos meses, mesmo estando ela adormecida, é alguém que merece louvor e distinção… Mas ela nunca quis partilhar nada com a mãe… - disse, abanando, com uma tristeza fingida, a cabeça. – Não vale a pena tentares conversar telepaticamente com ela, Virgem – continuou na sua voz doce – Eu posso ouvir todas as conversas que se desenrolam telepaticamente com ela…
- Pára com a conversa. – disse Dâmaris bruscamente, com o punhal apontado à garganta de Shaka. Olhou a deusa com superioridade. – Faz alguma coisa para variar. Disseste que não descansavas até teres Athena nas tuas mãos.
- Pois eu já tenho Athena nas minhas mãos! – proferiu Aphrodite irritada pelo desprezo da jovem deusa.
- Ai já…? – disse Dâmaris olhando novamente para Shaka, desta feita com um sorriso doce. Os seus olhos ficaram subitamente sérios.
Ten Ma Kou Huku… quando eu disser três… disse a voz dela dentro da sua cabeça, mas a sua mente e o seu corpo permaneciam-lhe vedados. Olhou-a sem compreender. Confia em mim, Shaka… confia em mim, meu amor… Os olhos dela ficaram subitamente tristes. Pelo menos só mais esta vez…
- Mata-lo ou não? – perguntou Aphrodite irritada.
- Tens três segundos de vida, Virgem. Faz as tuas orações… - Shaka viu os seus olhos sérios. – Um… - o punhal saiu da mão de Dâmaris e ficou a pairar no ar enquanto raios luminosos de energia os envolviam, virado na direcção de Aphrodite que estava atrás de Dâmaris, no cimo das bancadas junto de Athena. – Dois… - Shaka sentiu o corpo livre do controlo que Dâmaris exercera sobre o centro da sua essência. A lâmina do punhal deixou de ser de um negro brilhante e luminoso e ficou prateada e clara. – TRÊS! DAGGER OF JUSTICE!
- TEN MA KOU HUKU! – os dois ataques uniram-se numa espiral em torno do punhal, Dâmaris jogou-se para o lado e a arma, envolta nos ataques, rumou à velocidade da luz na direcção de Aphrodite.
- O QUÊ? – gritou a deusa, levantando atabalhoadamente uma barreira com o seu cosmos. Mas barreira alguma, por muito forte que fosse, conseguiria alguma vez suster aquele ataque e o estômago de Aphrodite foi trespassado de um lado ao outro. O punhal e a energia saíram pelas costas da deusa, parando no chão, a arma coberta de sangue. Athena olhou Dâmaris entre a surpresa e o agradecimento e a raiva. Aphrodite caiu de joelhos, as mãos cruzadas sobre o ferimento causado com a intenção de causar uma morte um pouco lenta, mas muito dolorosa. O sangue começou a cair-lhe pelos cantos da boca enquanto ela virou os seus olhos enlouquecidamente vidrados na direcção de Dâmaris. – Traidora…
- Nunca te traí. – assegurou a deusa, levantando-se. – Jurei-te obediência até teres Athena nas tuas mãos. No momento em que disseste que já a tinhas, o contrato acabou. – o rosto de Dâmaris endureceu. – Eu posso ter ressentimentos com Palas Athena, até mesmo odiá-la pelo inferno de que fez a minha vida, amargurada por esta maldição de beleza que me cobre o corpo e destrói os homens… Mas nunca ficaria do lado de uma deusa tão lasciva e desprezível como tu, Aphrodite Citereia… e nunca trairia o homem que amo…
- Tu não amas ninguém, nunca amaste… és um monstro como eu, como Hades… - disse Aphrodite fracamente.
- Oh, eu amei… - Shaka recordou-se da música que Dâmaris cantara um dia durante a ilusão. Seria possível? – E Hades também ama… O único monstro aqui, Aphrodite, és tu… - o corpo da deusa começou a ter espasmos. Dâmaris olhou para Shaka. – Já não temos muito tempo. Já não tenho… - Shaka olhou-a sem entender. – Athena pode ressuscitá-los. Perséfone não se irá opor, está tudo combinado. – disse, abrangendo os corpos dos outros. Olhou com um sorriso triste. - Nunca deixei de te amar… Perdoa-me…
- Dâmaris… - o punhal dela voou para a sua mão.
- É preciso destruir a safira do diadema antes dela morrer, é o que lhe permite ressuscitar quando quer, sem obedecer às leis divinas. Shaka… perdoa-me… mas tu disseste que os sacrifícios eram necessários para salvar o mundo… desculpa se o preço é demasiado alto… mas eu amo esta terra, amo os seus habitantes, e amo-te… – levantou o punhal e, numa voz doce, proferiu as palavras mais estranhas e musicais que Shaka alguma vez ouvira.
- O que estás…
- Eu amo-te. O perdão… é o primeiro passo… para a paz… – Dâmaris fechou os olhos enquanto, a fogo, se desenhava um pentagrama à sua volta no chão, ficando ela no centro. As chamas ergueram-se numa cortina de fogo, as nuvens ficaram negras, formando uma espiral que puxava o fogo do pentagrama para cima. Uma voz grossa ressoou no céu cor de chumbo, ouviu-se uma explosão ensurdecedora e quando baixaram, o corpo de Dâmaris estava largado no chão. Uma forte cosmos energia chamou-lhe a atenção e Shaka viu, estupefacto, por entre o sangue que lhe corria do ferimento da testa por cima do olho esquerdo, o cavaleiro de Sagitário reviver, a armadura de Sagitário deixar o corpo de Seiya e colar-se ao seu e Aioros quebrar a safira do diadema de Aphrodite com uma flecha, a deusa caindo para a frente, sangrando profusamente, mas sem deitar um queixume.
- Aioros… Shaka! – gritou Saori, correndo como podia pelas escada até à arena. – Oh… SEIYA! Seiya, por favor… - soluçou. – Seiya…
Shaka ignorou-a e caiu de joelhos à frente do corpo de Dâmaris. Ouviu e sentiu o cosmos da deusa Athena curar e trazer de volta os seus cavaleiros enquanto os corpos dos inimigos se transformavam em poeira estelar. Todos menos o de Dâmaris. E o de Miro, que Aldebaraan, o segundo a regressar, tentava tirar debaixo de uma pedra, ouvindo os murmúrios moribundos do cavaleiro. Ainda cambaleantes, os cavaleiros correram na sua direcção.
Apático, sem ter noção do imenso tempo que já havia passado, Shaka aproximou-se, quase que gatinhando, do corpo já frio de Dâmaris e virou-a para si. Tirou-lhe cuidadosamente do rosto aquela madeixa de caracóis que insistia em fazer sempre o mesmo, como quando acordava com ela nos seus braços. Passou a língua pelos lábios ressequidos e feridos, sentindo as feridas arderem e engoliu em seco, sentindo o nó que tinha na garganta apertar-se. A armadura de Dâmaris passou do negro ao branco prateado da platina, as feições bonitas suavemente descansadas no sono de morte, quase que sorrindo docemente. Shaka puxou-a para o colo, encostando a cabeça dela ao seu ombro.
O Shaka de Virgem não chora.
- Shaka… - murmurou Saga, estendendo uma mão hesitante que nunca lhe chegou a tocar no ombro. Mu tentou amparar Afrodite que se curvou repentinamente mas Carlo apanhou-o primeiro, segurando o corpo trémulo do cavaleiro que soluçava em desespero. Mu apertou os olhos e virou a cara para o lado, evitando que vissem as suas lágrimas, mas não que soubessem que chorava. Athena ajoelhou-se ao lado de Shaka e pôs suavemente a mão sobre o seu ombro, a voz saindo-lhe a custo.
- Lamento, Shaka…
Apático a tudo, Shaka permanecia a olhar docemente o corpo que tinha entre os braços. Uma lágrima solitária rolou-lhe pela face. E outra. Até que se formou uma corrente ininterrupta de água salgada.
Eu não estou a chorar… eu não choro… eu…
Emitiu um ruído indistinto com a garganta, semelhante a um soluço engasgado e abafado.
- Dâmaris… - as mãos cerraram-se no corpo da jovem e ele apertou-a contra si. – Dâmaris… - soluçou, abraçando-a e curvando o pescoço, encostando a testa à dela.
Os cavaleiros olharam-no desesperados, as lágrimas formando-se nos olhos de todos, joelhos caindo no chão, pedras quebrando-se nos seus punhos.
O céu abriu-se numa chuva quente e perfumada de Maio. Mas até a chuva parecia lágrimas. Talvez porque a Natureza chorava.
A Natureza chorava.
Tal como todos choravam, tal como… tal como Shaka chorava…
Sim… porque um homem também chora… também tem esse direito… mesmo o mais próximo dos deuses.
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N.A.: Apenas para que conste, quem não conhece, o soneto, que eu acho lindíssimo, de Antero de Quental, que me inspirou o título:
O Palácio da Ventura:
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por deserto, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas de ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio, escuridão – e nada mais!
(Antero de Quental)
Ok, Ok, eu sei. Mas é um poema que sei de cor e penso que, de certa forma, vai de encontro a este capítulo, num quase resumo da fic até aqui.
Por hoje é tudo!
Bjokas!!!!!!!!!
Próximo capítulo: "Cegueira inabalável"
