Capítulo 17
A CRISE DE KEITARÔ.
Era pouco mais de Seis Horas da manhã quando Keitarô subitamente desperta.
Embora ele estivesse acostumado a acordar mais cedo devido ao seu papel de "kanrinin" da Pensão Hinata, ele sentira que deixou a hora atrasar, talvez devido ao esgotamento físico.
Ainda atordoado e incapaz de distinguir nitidamente o sonho da realidade, ele abre os olhos e nota que somente ele está no quarto. E pior, está somente com a sua roupa de baixo. A calça e a camisa estavam colocadas ao lado da esteira de dormir.
- Yuri... Ele murmura, sentindo um vazio cortante que falava por mil palavras e descrições.
Em vão, ele tenta encontrar sinais da presença dela no quarto. A loira já havia saído, tendo recolhido seus pertences e armas.
Numa atitude emocional, Keitarô pega o cobertor e o cheira, sentindo o aroma do perfume que ela usava.
Em seguida, ele tenta descobrir se aquilo que ocorreu entre ambos tinha sido sonho ou foi real. Após um rápido exame, nota que o seu desejo havia sido aplacado, ao menos por enquanto.
Uma mancha discreta no cobertor era prova mais do que suficiente de que ALGO havia ocorrido entre os dois.
Keitarô estava simplesmente pasmo e estarrecido. Será que durante a madrugada eles fizeram amor?
Ele não se lembrava de mais nada do que aconteceu após Yuri ter abraçado e beijado ele, a não ser por uma estranha sensação vertiginosa, seguida pelo cansaço e pelo sono.
Quanto tempo teria transcorrido? Segundos? Minutos? Horas?
Antes que fique desesperado, o estudante da Toudai descobre um bilhete dobrado em cima da mesa.
Ele pensa em lê-lo, só que seu pensamento é bruscamente interrompido pelo bater da porta. Instintivamente, ele esconde o bilhete comprometedor.
- Keitarô sempai, você já acordou? - Uma voz delicada e tímida se faz ouvir.
- Sim, quem é? - Responde Keitarô meio assustado, tentando colocar a sua calça o mais rápido possível. Ele sabia de quem se tratava.
- Sou eu, a Shinobu. Vim avisar que o café da manhã está pronto.
- Ah, está tudo bem. Estou terminando me de aprontar e daqui a um minuto irei me juntar a vocês. E como estão Kaolla e Sarah?
- Já estão recuperadas, assim como eu. Mal pularam da cama e as duas devoraram a marmita que Motoko-chan trouxe para elas.
Keitarô tenta trocar com rapidez, só que antes de colocar a camisa, a porta do seu quarto vem abaixo.
- Oiêêê, Agente Keitarô. Venha logo ou iremos comer todo o café da manhã! - Grita a jovem de pele escura com seu entusiasmo.
- Good Morning, Keitarô! How are You? - Acompanha a sua amiguinha loira de gênio forte.
Sarah e Su irrompem com o seu habitual entusiasmo, uma chutando a cabeça do infeliz Keitarô e outra golpeando com um artefato antigo.
O azarado rapaz é nocauteado e cai no chão com dois novos galos na cabeça.
- Su-Chan! Sarah-Chan! Tenham modos! - Tenta protestar Shinobu inutilmente contra a traquinagem da dupla, que tira sarro de sua vítima.
Keitarô tenta-se levantar, ainda meio tonto, só que antes que consiga vestir a camisa, é nocauteado por uma furiosa Narusegawa que andava pelo corredor em menos de dois segundos:
- Seu tarado, pervertido! Como ousa ficar seminu diante de três crianças inocentes?
O soco faz Keitarô se esborrachar na parede, como se fosse uma bola de Squash.
Naru ia aplicar outro golpe no indefeso rapaz, mas estranhamente Shinobu cria coragem e ergue a voz:
- Mas não foi culpa dele! Ele estava se aprontando ainda dentro quando a Su-chan e a Sarah-chan entraram com tudo no quarto! - Protesta Shinobu, que normalmente não falava nada.
Normalmente, quando Keitarô era vítima das porradas da Narusegawa, ninguém abria o bico para defendê-lo, mesmo quando era evidente que Naru estava errada.
Só que pela primeira vez, cansada de ver tal espetáculo deprimente, Shinobu protesta, por maior que fosse o respeito que tinha por Naru-sempai.
Naru fica paralisada momentaneamente - já que nunca havia sido contestada em nada pelas meninas, principalmente em momentos como este.
Tentando se justificar para Shinobu e para si mesma, ela dá um sorriso amarelo e tenta parecer razoável:
- Bem... Eu, hã... Pensei que fosse mais um plano deste pervertido pra cima de vocês. Mas não se engane, Shinobu: o Keitarô só pensa em safadezas! Não dê corda para ele!
- Isto mesmo, Naru! Keitarô sucks! - Apóia Sarah, meio chateada pela delação da Shinobu.
- Keitarô taradão papa-anjo! - Fala Su de forma irresponsável como de costume, sem pensar nas implicações.
Shinobu ajuda Keitarô se levantar e mais do que rapidamente faz os primeiros socorros em seus ferimentos, buscando um estojo de medicamentos. Depois ajuda a colocar sua camisa, aparentemente sem demonstrar vergonha.
- O-obrigado. Shinobu-chan... Mas não foi nada... - Tenta disfarçar Keitarô fazendo uma careta de dor ao sentir o remédio a queimar na ferida.
- Tome cuidado, sempai, aquelas duas são totalmente endiabradas! Não gosto quando você acaba levando a culpa, apesar de pessoalmente gostar muito da Su-chan e da Sarah-chan. - Comenta Shinobu num meio desabafo.
- Estou acostumado... Hoje até que elas não aprontam tanto quanto antigamente.
- Sempai... - Shinobu suspira e seus olhos parecem brilhar ao fitar a face do Keitarô.
- O que foi Shinobu-chan? - Pergunta gentilmente o rapaz sem reparar no tom de voz da garota, que estava bem mais sentimental do que de costume.
- Obrigada por nos salvar daquele mago malvado ontem... A gente veio para ajudar você e a Naru sempai, mas no final tivemos que ser socorridas novamente... Como nas Ilhas Pararacelso. - Conclui com melancolia a jovem aventureira.
- Mas quem disse isto? - Indaga o rapaz com sua sutileza de elefante.
- Foram a Kitsune-san e a Motoko-san. Elas nos contaram tudo o que aconteceu.
- Bem, o que importa é que estamos salvos. - Keitarô tenta minimizar sua própria participação, procurando ser modesto.
Shinobu sente neste momento vontade de chorar e abraçar o rapaz que estava diante dela. Embora soubesse que ele amava Naru. Embora soubesse que outras garotas estavam no páreo, disputando seu afeto e carinho.
Por mais enrolada, autoritária e chata que a Narusegawa fosse e por mais que ficasse claro que Keitarô considerava a jovem ginasial apenas como uma pessoa querida, a garota de quase 15 anos sentia que também gostava muito dele.
Não, talvez seria amor?
Em todo caso, ela estava buscando encontrar seus verdadeiros sentimentos.
Keitarô fita os olhos de Shinobu, com muito mais interesse do que se esperaria numa amizade convencional.
Era um olhar com o sentido de um carinho especial devotado às pessoas de sua família, como se fosse uma irmãzinha querida, e nem tanto com o ardor típico das pessoas apaixonadas.
Contudo, um lampejo dos acontecimentos recentes o faz sentir novamente com culpa.
Depois de tudo que aconteceu entre ele e Yuri naquela noite, ele sentia se como se tivesse traído não somente o amor dedicado à Narusegawa, mas também os afetos do pessoal da pensão Hinata, principalmente da Shinobu e Motoko.
É Keitarô e não Shinobu que tem agora vontade de chorar.
- Sempai? V-você... Está chorando? P-por quê? - Pergunta delicadamente a jovem de cabelos negros, enxugando instintivamente as lágrimas de Keitarô.
- Shi-shinobu... Eu... Não mereço tamanha demonstração de afeto... Eu... - Keitarô sente vontade de abraçar e desabafar seus medos com a garota.
Uma batida na porta se faz ouvir, discreta, mas firme.
- Ei vocês dois, vão continuar embaçando aí? Se demorarem mais um pouco, a Kaolla e a Mutsumi vão devorar todo o café da manhã desta estalagem! - Grita uma voz conhecida no dialeto de Osaka.
- Já vai, Kitsune. - Responde Keitarô numa situação inusitada. Geralmente Kitsune era uma das últimas para tomar o café da manhã na pensão Hinata até mesmo quando não estava bêbada.
Curiosa como sempre, Mitsune havia resolvido dar uma espiada para ver o que Shinobu e Keitarô estavam fazendo no quarto.
Ávida por fofocas e novidades, ela teria mesmo espiado Keitarô ontem à noite se não estivesse tão cansada pela luta contra Tarsius e seus monstros.
Primeiro Shinobu sai, tentando parecer tranqüila, mas a cor vermelha de suas faces a trai.
Em seguida Keitarô se retira, tendo cuidadosamente guardado o bilhete da Yuri no seu bolso antes que alguém o visse.
- Bom dia, Keitarô. - Pergunta a astuta garota, dando um tapinha no ombro de Keitarô.
- Bom dia, Kitsune. - Keitarô aparenta estar um pouco cansado e aborrecido.
- E aí, como foi a sua noite? - Sorri a jovem de cabelos castanhos.
- Como assim?
- O seu parceiro de quarto? Como ele era? Era um morenão musculoso de dois metros de altura com tendências "alegres" ou um bárbaro horroroso e que cheirava a cavalo morto? - Maliciava a jovem Konno piscando um de seus olhos.
- Não, não era nada disto! - Protesta Keitarô temendo que a moça à sua frente soubesse mais do que aparentava.
- Ué, o Keitarô sempai teve que dormir com outra pessoa? Pergunta ingenuamente Shinobu, que não sabia de nada.
- Ahahah, isto mesmo! Não tinha mais vagas nesta estalagem e ele teve que repartir o quarto! Espero que o seu parceiro não tenha se apaixonado por você, rapaz... Acidentes de percurso acontecem!... Ahahahahah - Gargalha Kitsune.
- Até parece, Kitsune! - Keitarô está com as faces ardendo devido ao afluxo de sangue.
Kitsune dá uma rápida olhada para trás e - através da porta aberta - percebe com o seu olhar perspicaz que o quarto onde Keitarô estava hospedado não tinha camas, mas sim uma esteira de dormir.
Se o quarto estava ocupado por duas pessoas, elas teriam compartilhado a esteira, pensa a garota com apelido de raposa.
Estranhamente o quarto estava impecavelmente limpo e arrumado com um capricho nada masculino, com exceção do lado que Keitarô havia utilizado - e que por ter acordado a pouco, não teve muito tempo de deixar as coisas no lugar.
O cérebro da garota de cabelos curtos castanhos que nunca fez o vestibular - mas era esperta como o animal que dava o seu apelido - começava a articular pensamentos maliciosos em sua mente.
Em seguida, Keitarô, Kitsune e Shinobu adentram a sala de refeições da estalagem onde estava sendo servido o café da manhã.
Havia uma mesa reservada para eles no centro, formada por três mesas quadradas unidas entre si.
Como era habitual na estalagem de Joe, o café da manhã era servido das 6:00 Horas até as 9:00 Horas, sendo a única refeição servida aos visitantes.
Talvez fosse parte de um acordo feito com o dono da taverna Old Legs, que não funcionava até pouco antes da hora do almoço.
A refeição matinal consistia em pães de vários formatos e receitas, porções generosas de manteiga, mel, patê, frutas de estação, ovos fritos, bacon, tortas salgadas de diversos tipos, queijos macios, presunto, salame, algumas sopas quentes e uma sobremesa que variava com a estação e o clima.
Naquele dia, a sobremesa era uma deliciosa torta gigante de framboesas e amoras silvestres, que era disputada fatia por fatia.
Para beber, havia água, leite, suco de frutas, cerveja e vinhos diversos.
Para Shinobu, Sarah, Tama e Kaolla, o estalajeiro havia servido um delicioso refresco feito de suco de uvas e frutas vermelhas da época.
Motoko e Narusegawa haviam terminado a refeição momentos atrás.
A primeira, por comer pouco e frugalmente, como de costume.
Motoko não comia muito, não apenas para se manter em forma, mas para por em prática os preceitos da sua arte Shinmeiryu que preconizava a austeridade diante das circunstâncias da vida.
E a segunda, por estar em nova crise de mau humor, irritada não somente por ter flagrado Keitarô seminu (leia-se sem camisa) diante das meninas, como pela reação inesperada da Shinobu, impedindo-a de dar uma lição como ela gostaria.
Kaolla e Mutsumi estavam devorando as iguarias colocadas diante delas com um apetite inigualável, enquanto Tama-chan e Sarah assistiam a tudo com um misto de admiração e inveja pela forma como as duas comiam com apetite.
- Oi, Keitarô, desculpe a pressa, mas o café da manhã estava simplesmente irresistível! Dormiu bem esta noite? - Pergunta inocentemente Mutsumi sem reparar no olhar fulminante de ciúme de Naru.
- Oi Mutsumi, oi pessoal. Eheheh. Desculpem-me pela demora, mas acho que desta vez eu fui o retardatário... - Comenta o jovem com um sorriso meio sem graça.
- Interessante! Geralmente o Keitarô e a Shinobu são os primeiros a acordarem na pensão... O que você andou fazendo ontem à noite no quarto? Conta! - Malicia Kitsune.
- Isto, isto! Conta! Conta! - Kaolla entra no time das curiosas.
- Na certa o Keitarô estava fazendo guerra de travesseiros com um bárbaro ontem à noite! - Especula Sarah com o seu sarcasmo particular.
- Ah... Sinto dizer, mas não foi nada disto. O cara que estava pernoitando no mesmo quarto que eu não era de muita conversa e desocupou o quarto na madrugada... - Tenta mentir Keitarô, fingindo naturalidade.
Apenas Narusegawa e Kitsune não ficaram totalmente satisfeitas com a explicação.
- Sei não. O lado que o parceiro do Keitarô usou estava imaculado. Tenho quase certeza de que o tal cara devia ser muito discreto, quem sabe uma baita boiolão fresco ou um assassino profissional. Quando fazem o serviço, são tiro e queda! - Pondera a jovem de Osaka com um ar fingindo sabedoria.
- Não diga exageros, Kitsune! - Protesta Narusegawa.
- Talvez esteja enganada, mas quem sabe... Imagina se o cara fosse um traficante de órgãos que revende a alquimistas loucos e nobres impotentes... Ei, Keitarô, você reparou se não perdeu nada de ontem para hoje? - Mesmo sem estar bêbada, a criatividade para imaginar coisas maliciosas da jovem de Osaka era muito grande.
Apesar do absurdo da afirmação da Kitsune, Keitarô instintivamente põe a mão no meio das pernas. Todos os presentes caem na risada geral, exceto Narusegawa e Motoko.
- É bem capaz que se seu colega de quarto não roubou aquilo, deve ter roubado o seu cérebro, sua anta! - Diz Naru com um tom ácido na sua voz.
- Temos que lembrar que devemos descobrir o modo de sair desta dimensão antes que surjam coisas piores. - Conclui uma Motoko toda séria, chateada por aquela conversa sem sentido para ela.
- Mas, Motoko, agora que a coisa está ficando divertida! - Exclama Kaolla.
- Nada de "mas", Kaolla! A verdade é que no momento estamos presas a este mundo e sem poder ou habilidades para vencermos os desafios futuros que são muito piores do que este tal do Tersias ou os orcs. Se não tivermos uma estratégia de batalha, podemos até morrer. - Retruca a samurai com dureza na voz.
- Ué, Motoko, você nunca foi de recuar! E suas habilidades mágicas? - Observa Kitsune, defendendo a jovem estrangeira. De fato, antes de Su se afeiçoar à Motoko, Kitsune já era amiga da morena de cabelos claros.
- Bem, Kitsune, realismo é uma coisa. Covardia é outra. Percebi que embora tenha mantido minhas técnicas de luta, os monstros que enfrentamos são de um nível de força equivalente ao meu... E é bem provável que encontremos outros ainda mais poderosos. - Motoko tenta contemporizar.
- Mas todas não ganharam habilidades especiais? Quem sabe... - Keitarô tenta intervir na conversa.
- Não diga besteiras, Keitarô! Ninguém aqui é maga, feiticeira ou lutadora na vida real. Não somos personagens de videogame, mas gente de carne e osso tentando lutar para nos mantermos vivas neste mundo bizarro! - Exalta-se de novo Motoko.
- Gente! Parem com isto, senão vão acabar brigando! Se quiserem a minha opinião, temos que ficarmos todos juntos para terminar a missão o mais rápido possível e encontrar com o tal do arquimago para ver se encontramos um jeito de sair desta realidade! - Implora Naru temendo que a discussão se transformasse em briga aberta.
- Ara, Ara, agora me lembrei! - A Mutsumi estava totalmente à parte da conversa, mas de repente seus olhos brilham como se tivesse lembrado de algo interessante.
- Mew? - Indaga a pequena tartaruga Tama, que estava sentada na cabeça de Mutsumi bebendo um cálice de suco de framboesas.
- O que foi, Mutsumi? Alguma idéia?... - Pergunta Naru.
- Estava pensando que nossa situação não é muito diferente daqueles personagens de anime que ficam perdidos num mundo diferente... Até que ficamos parecidas com as meninas do Rayearth... Se tivermos que arranjar um jeito de voltar terá que ser pela força de nosso desejo guardado nos nossos corações... Hihihi
- Como é que é? - Fala secamente Motoko, com cara de quem não entendeu nada.
- Motoko-chan, este anime conta a história de três colegiais comuns que acabam se conhecendo por acaso na Torre de Tóquio e que são teleportadas para um mundo totalmente mágico, a fim de salvar uma tal de Princesa Esmeralda das mãos do clérigo Zagard... - Termina de explicar Mutsumi.
- Muito interessante a sua comparação, mas o fato é que nunca perdi meu tempo com mangas e desenhos... - Responde Motoko.
- Diferentemente das meninas do Rayearth, o nosso agravante é que não temos nenhum guru cléf e nenhuma Priscila para nos ajudar! - Tenta protestar Kitsune.
- Ainda bem que não temos que aturar o Mokona aqui!... - Comenta Keitarô levianamente.
- Gente, a Mutsumi está certa! Eu não entendo muito de RPG ou de animes, mas temos que permanecer unidas e acima de tudo, acreditar em nós mesmas, fazendo do desejo de voltar para casa ficar forte com a força de nossos sentimentos! - Entusiasma-se Naru. Embora a argumentação de Mutsumi fosse frágil, a idéia em si tinha sentido para ela. Se ninguém acreditasse na possibilidade de voltar, quem iria fazer isto por elas?
- Concordo com você, Naru sempai! - Concorda Shinobu.
- É isto aí, garota-melancia! Estou contigo! - Exalta-se Sarah, erguendo o braço.
- Gente, agora eu lembrei! - Os olhos da jovem hindu brilham e ela ergue o dedo indicador instintivamente.
- O que foi, Kaolla?
- Acho que isto tem algo a ver com o sistema de evolução dos personagens neste jogo! Diferentemente dos RPGS tradicionais aonde a experiência se ganha derrotando monstros, nossos poderes dependem diretamente de nossa força de vontade e das decisões que tomamos no jogo! Os criadores do game fizeram isto para tornar a disputa mais emocionante! - Tenta explicar a pequena jovem superdotada, lembrando-se das resenhas do jogo vistas na Internet.
- Então um cara paralítico numa cadeira de rodas pode tornar se mais poderoso neste mundo de realidade virtual do que um brutamontes musculoso? - Pergunta Naru.
- Isto mesmo, Naru! - Conclui a jovem inventora.
- Puxa, até está parecendo aquele filme com o Keanu Reeves... - Naru fica pensativa...
- Matrix? - Indaga Kaolla.
- Isto mesmo. - Responde a jovem ruiva.
- Pensando bem, vocês têm razão... Só conseguimos derrotar Tersias e outros monstros quando buscamos a força de vontade que estava dentro de nós... - Motoko finalmente se convence de que a argumentação de Kaolla não era tão absurda assim.
- Bem, se depender disto, a gente sai deste mundo fácil, fácil! - Exclama Mutsumi com o seu otimismo nada modesto.
- Mew! - Até Tama-chan concorda.
- Por quê, Mutsumi? - Keitarô pergunta.
- Ué? Se o trio ronin conseguiu se reencontrar após 15 anos, sobreviver na Ilha Pararacelso e até entrar na Toudai ao mesmo tempo, nós temos força suficiente para isto!
- Ah, Mutsumi-chan, de novo? Trio Ronin, não! - Naru não gosta do termo usado, lembrando-se de sua reprovação no vestibular de 1999.
- Ué, Naru? Até que esta alcunha pegou bem, não acha? - Brinca Keitarô.
- Só se for para você, seu quadrúpede! - Naru fica irritada e dá um chega para lá no Keitarô, que se esborracha na mesa vizinha.
- Gyaaaaa! - Grita o infeliz enquanto uma torta que estava na mesa lambuza a sua cara.
- Motoko, por que você está pensativa? - Pergunta Shinobu.
- Bem... Estava me lembrando dos ensinamentos que os anciões de meu clã diziam... Não que desmereça o que Mutsumi disse. Concordo que temos que extrair o melhor de nós mesmos em nossa força de vontade, mas... - Motoko assume um ar de quem está buscando a verdade dentro de si mesma.
- Mas? - Indaga a jovem Maehara.
- Meu receio é que neste processo de descobrirmos a nós mesmas a gente descubra verdades dolorosas... - Conclui a jovem samurai fechando por um momento seus belos olhos.
- Mas você é do tipo que não tem medo de nada!... Você consegue! Bem mais do que a gente... - O olhar de Shinobu é ao mesmo tempo suplicante e cheio de admiração.
- Não, não é isto, Shinobu-chan. Mas o fato é que para crescermos, a Vida nos cobra decisões... Lembra-se quando perdi para minha irmã?
- Sim... Mas você superou isto, não? - Shinobu tenta adivinhar o que sua amiga mais velha quer falar.
- Bem, no final deu tudo certo, mas descobri que até então vivia apenas para os treinos. Achava que somente isto bastava para se tornar uma guerreira perfeita... Nunca imaginei que estivesse tão despreparada para a vida. Aquilo foi uma dura lição... - Motoko conclui com um certo tom de melancolia na voz.
- Não seja severa consigo mesma, Motoko-san, eu também tive que aprender muito depois que passei a morar com vocês na pensão Hinata...
- Não se preocupe comigo... Agora estou bem melhor. Aprendi que não basta apenas a técnica, a agilidade ou a força, mas também o nosso viver, o nosso sentir em todos os aspectos da vida. - Sorri discretamente a jovem samurai, lembrando-se dos momentos em que passou junta com Keitarô. Apesar de ainda não admitir abertamente seus sentimentos, ela havia reconhecido a atenção e a solicitude do atrapalhado kanrinin.
O restante da conversa girou sobre assuntos triviais e amenidades. A torta do dia foi devorada pela Kaolla, Mutsumi e Sarah em instantes. Quem não pegou ao menos uma fatia, acabou ficando de fora.
Naru e Motoko chegaram a pensar em fazer uma visita a loja de armas e equipamentos para aventureiros, mas ainda era muito cedo e o grupo iria comprar os items necessários apenas quando terminassem a reunião com Eldrick.
De comum acordo, o grupo resolveu apenas que iriam adquirir itens básicos como sacos de dormir, uma tenda de acampamento, lanterna, remédios e comida de viagem, para evidente desagrado de Kitsune, que estava pensando em outras prioridades.
Consumista por definição, a garota de olhar de raposa resolveu refrear seus instintos gastadores até que chegassem à capital deste reinado.
Ela já havia decidido torrar a sua parte de dinheiro comprando o máximo de roupas, perfumes e jóias que pudesse achar neste mundo, torcendo para que pudesse leva-los de volta ao mundo real.
E se sobrasse alguns trocados, ela gastaria em bebidas exóticas e em apostas no cassino mais próximo que tivesse.
Terminado o café da manhã o grupo resolveu voltar à estalagem para arrumar suas coisas e se preparar com a reunião que teriam às 10:30 com o condestável Eldrick. Só então fariam as compras necessárias para a viagem.
Embora a reunião na taverna não tivesse tido algum resultado prático, o grupo da pensão Hinata estava ciente que teriam que permanecer unidos aconteça o que acontecesse e que deveriam dar o melhor de si se quisesse voltar para a casa.
Motoko foi para o quarto meditar um pouco, enquanto Kaolla e Sarah tratavam de arranjar algo para brincar.
E a pequena Shinobu resolveu anotar algumas receitas dos pratos que vira na estalagem. Cozinheira experiente, ela sabia deduzir as medidas e os ingredientes de cada prato somente olhando no seu visual e experimentando um pouco.
Sem ter o que fazer, Kitsune aproveitou o tempo livre para jogar conversa com Naru, que estava visivelmente de mau humor, não com ela, mas com Keitarô.
Embora não tivesse indícios visíveis, a jovem ruiva estava pressentindo de que Keitarô estava um pouco diferente do habitual, como se não bastasse a sua preocupação em mantê-lo a salvo das investidas ocasionais de Mutsumi, da própria Kitsune e até das outras meninas.
Motivado por um medo exagerado de solidão, Naru guardava ciúmes de suas afeições. Um dos motivos que levou a mudar para a pensão Hinata foi justamente o fato dela não aceitar sua nova família.
Mas somente passara a sentir isto com intensidade jamais vista quando conhecera Keitarô Urashima.
Keitarô voltara para o seu quarto, mas encontrara-o desocupado. Qualquer esperança de que Yuri estivesse lá se desvanecera. Novamente o peso na sua consciência se manifestava, junto com seus medos interiores.
Certificando-se de que não seria interrompido por ninguém, ele tranca a porta cautelosamente e decide ler o bilhete que Yuri havia lhe escrito:
Keitarô:
Gostei muito de você e de seu jeito de ser.
Sincero e carinhoso.
É uma pena que esteja indo embora hoje.
Será que nos encontraremos de novo um dia?
Como disse, estou tentando conversar com as
autoridades locais para procurar um serviço.
Se der certo, ficarei na região nos próximos meses.
Mas caso não der certo,
Voltarei para Brightstone em três ou quatro dias.
Se um dia quiser me encontrar de novo,
Procure por mim nessa cidade.
Tenho um contato chamado Rufus no Distrito das Docas,
Numa taverna chamada Wildcat Alley.
Ele se encontra lá quase todo dia.
Não é um lugar muito difícil de se achar.
Terei o maior prazer em te ver e se estiver interessado,
Eu gostaria de ser sua companheira de aventuras.
Aceita?
Beijos,
Yuri.
PS: Desculpe-me pela noite de ontem,
Obrigada por ter me ajudado.
Espero nos encontrarmos um dia tanto aqui como no mundo
Real.
O rapaz fica simultaneamente comovido e estarrecido ao terminar de ler o bilhete.
Comovido por nunca ter imaginado que alguém gostaria dele à primeira vista.
Durante sua adolescência Keitarô nunca fora popular com as garotas, sendo ridicularizado por elas devido às suas trapalhadas e pelo fato de ser medíocre em tudo.
Mesmo para ele tinha sido difícil ganhar a confiança das garotas da pensão Hinata, até mesmo a Shinobu.
E estarrecido porque o bilhete simplesmente confirmava seus medos e temores de que "alguma coisa a mais" tivesse acontecido naquela noite.
Keitarô não se lembrava de mais nada do que acontecera quando Yuri havia o abraçado e beijado, mas a sensação de saciedade que tivera de manhã e a estranha mancha no cobertor eram provas mais do que suficientes.
Naquele momento, ele se torturava imaginando ser verdade o que as meninas da pensão viviam dizendo sobre ele, principalmente nos primeiros tempos: Um tarado, pervertido e imoral.
Nem nas suas mais selvagens fantasias ele imaginava ter feito amor com uma desconhecida à primeira vista, ainda mais agora que ele amava a Narusegawa.
Keitarô se sentia naquele momento um canalha, um traidor.
Certo, a Naru podia ser do jeito que era: enrolada, cabeça-quente, impulsiva e ciumenta, mas nunca seria capaz de fazer uma sacanagem daquelas com ele.
Pelo que Keitarô lembrava, ela nunca havia procurado outra pessoa por pior que estivesse a relação entre ambos.
A admiração que Naru tinha pelo professor Seta no passado não era mais do que isto: admiração típica de uma mocinha adolescente pelo seu tutor.
E o jovem imaginava que não podia se abrir com ninguém da pensão a respeito do ocorrido. Elas nunca iriam perdoá-lo pela traição.
Kitsune, apesar daquele seu jeito folgado e sacana, e de vez em quando fazer gracinhas a respeito do relacionamento entre ambos, ainda era superleal à Naru e fatalmente ficaria do lado desta.
Se soubesse do ocorrido, Motoko iria fatiá-lo em mil pedaços usando suas técnicas mais letais, por dois motivos: Primeiro pela amizade que tinha pela Naru, e segundo, certamente porque ela TAMBÉM se sentiria traída em seus sentimentos, ainda mais depois do que aconteceu entre Keitarô e a jovem guerreira após a viagem a Kyoto.
Shinobu-chan? Ela não iria suportar a revelação. Das duas uma: Ou ela iria ficar em estado de choque chorando que nem louca, ou voltaria àquela época em que ela chegou a odiar Keitarô por não entender os sentimentos dela. Ou talvez ambas as coisas.
A Su? Sua reação iria ser pior do que a de um tigre ferido. Se ela fez aquele escândalo no dia em que Keitarô revelou que estava pensando em sair do Japão para fazer uma bolsa de estudos, certamente ela iria fazer coisas ainda piores.
Keitarô já se imaginava sendo eletrocutado, queimado, congelado e fatiado pelas diabólicas invenções da garota de pele morena.
Embora nunca tivesse demonstrado grande respeito por ele desde quando se conheceram, a Sarah havia melhorado o seu comportamento com Keitarô desde quando passou na Toudai.
Contudo, isto iria fatalmente acabar se ela soubesse da traição.
Ainda criancinha, Sarah havia sentido na carne o que é ser rejeitada, pela experiência que sua mãe, Cindy, teve.
E ela não gostaria que nenhuma outra pessoa passasse o que ela e sua mãe passaram. Se a jovem americana soubesse que Keitarô havia traído Naru, ele poderia se preparar para o pior.
A Mutsumi seria talvez, a única esperança de Keitarô.
Só que ele imaginava que - apesar dela não ser capaz de qualquer ato de violência, a jovem Otohime ficaria muito triste e decepcionada com ele e sua traição.
Desde a infância, Mutsumi havia se esforçado para que ele e a Naru formassem um par e mesmo após terem perdido o contato, ela nunca esqueceu da promessa de ir para a Toudai junto com eles, mesmo após quinze anos terem se passado.
Traindo Narusegawa seria a mesma coisa que trair o amor que Mutsumi nutria por ele, pensava Keitarô.
- Droga! Mas como sou um desastre vivo! Keitarô, seu idiota sacana! Como pôde deixar as coisas chegarem a este ponto? Droga! Droga! Droga! - Keitarô imaginava em sua mente as garotas fugindo dele com desprezo em seus olhares, indiferentes aos seus apelos e desculpas.
Com fúria e vergonha de si mesmo, Keitarô começou a socar com ambas as mãos o piso de madeira do quarto estando ele de joelhos. Subitamente, alguém bateu na porta.
- Keitarô, eu posso entrar? - Uma voz conhecida se fez ouvir.
- Ops! Quem é? - Keitarô fica tão envergonhado e confuso que não reconhece de imediato a voz.
- Mew! Mew! - Uma voz em "tartaruguês" se faz ouvir.
- Sou eu, a Mutsumi, posso entrar? - Responde a voz.
- Espere um pouco que vou abrir a porta.
Com hesitação, Keitarô vai abrir a porta. Ele tem alguma dificuldade de destravar a tranca, só que neste exato momento, Mutsumi - que estava apoiada de costas na porta - ela tropeça ao entrar e cai no chão, completamente sem sentidos.
Keitarô e Tama-chan fazem muita força para evitar que a alma angelical da atrapalhada jovem de Okinawa saia de seu corpo físico mais uma vez, como nos primeiros tempos.
Ao recobrar a consciência, Mutsumi senta no acolchoado que servia de cama no aposento, como se estivesse num tatame.
Como de costume, Tama-chan fica em cima de sua cabeça, com as patas cruzadas.
- Oi, Keitarô, eu e a Tama viemos fazer uma visitinha. - Diz a garota de Okinawa. Seus olhos amendoados e doces a tornavam ainda mais bonita.
- Hã, sim, tudo bem... E as outras meninas?
- Elas estão descansando no outro quarto. A Mitsune aproveitou para dar uma saidinha para espiar as lojas... - Comenta Mutsumi.
- Tomara que ela não torre a grana para comprar bebidas. - Responde Keitarô um pouco preocupado com o consumismo inato da jovem Konno.
- Sem problemas. A Mitsune levou a parte que lhe cabia. Fizemos uma divisão assim: Cerca de 60% do dinheiro arrecadado ficou num fundo para comprar as coisas necessárias para a viagem e o restante foi rateado entre nove...
- Nove pessoas? Bem, além de você, vieram a Narusegawa, a Kitsune, a Motoko, a Shinobu-chan, a Su-chan, a Sarah-chan e eu. Somos em oito... - Keitarô fica um pouco confuso.
- Bem, para ser exato, oito mais a Tama-chan... Ela também é uma aventureira digna!
- Certo. Esqueci deste detalhe... - Tenta-se desculpar Keitarô.
- Mew! Meew! - Tama parece reclamar do pouco caso de Keitarô.
Keitarô faz menção de arrumar o quarto. Tama e Mutsumi se dispõem a ajudá-lo.
- Puxa, Keitarô, deve ter sido bem difícil você ter dormido neste quarto. - Mutsumi repara na ausência de cama.
- Bem, até que nem tanto, já estou acostumado a dormir sem cama.
- Embora aqui não seja um hotel de luxo, até que tivemos sorte. Lá no nosso quarto o pessoal achou as acomodações simples, mas confortáveis e limpas.
- Bem, Isto é o que importa. Pelo menos ficamos livres de ratos e percevejos...
- Keitarô? - A jovem de cabelos longos se aproxima e olha fixamente em seu rosto.
- Sim? - Keitarô fica um pouco constrangido com a demonstração de intimidade de Otohime.
- Você reparou como a Naru estava de mal-humor? Aconteceu alguma coisa entre vocês? - Keitarô se surpreende ao reparar que Mutsumi não era tão desligada quanto aparentava ser.
- Bem... Hã... Acho que deve ter sido o seguinte, Mutsumi. A gente saiu naquela tarde de domingo para ir ao shopping, mas nós estávamos sem programa definido. Ela invocou de querer experimentar jogar na Lan House que a Su havia indicado e fomos para lá... Testamos o game, só que algo deu errado e bem... O resto já sabe...
- Mas penso que o motivo não foi este. - Retruca a jovem de Okinawa com rara objetividade.
- Como assim?
- É como se ela estivesse com os sentimentos machucados...
- Ah, então foi isto? Eu iria trocar de roupa quando a Su-chan e a Sarah entraram de repente no quarto me atropelando. Assim que me levantei, a Shinobu-chan apareceu e me viu sem camisa. A Narusegawa entrou naquele momento e me socou antes que tivesse chance de explicar para ela... Foi o que aconteceu.
- Mas foi só isto?
- Depois, teve aquela brincadeira na hora do café que ela levou a sério demais.
- Não, para ela estar daquele jeito deve ter acontecido algo bem mais grave... Raramente eu vi a Naru-chan assim... - Comenta Mutsumi com um ar de preocupação.
- Mas não tive culpa!
- Não é isto que estou dizendo... Acho que a Naru está passando por uma crise emocional. Tentei conversar com ela no quarto para saber o que está acontecendo, mas ela não quis. Como sou amiga de vocês dois, vim te avisar o que está acontecendo... - Mutsumi conclui a sua narrativa.
Keitarô cora as faces de vergonha e sente uma vontade enorme de chorar.
Embora a Mutsumi fosse desligada, atrapalhada e ingênua das coisas do cotidiano, ela estava longe de ser uma idiota em assuntos do coração.
Foi ela que o avisara quando Shinobu havia ficado deprimida quando havia tirado zero numa prova preparatória para o vestibular, achando com isto que não conseguiria sair com ele para o Festival de Tanabata, há meses atrás.
E também fora a jovem de Okinawa quem percebera que - apesar de toda as aparências indicarem o contrário - Naru continuava gostando do Keitarô mesmo quando ele havia abertamente declarado o seu amor por ela.
- Mu-Mutsumi... - Keitarô vira o seu rosto para que Mutsumi não perceba as suas lágrimas.
- Keitarô... - Mutsumi estende a sua mão direita no ombro do rapaz.
- Perdoe-me! Eu não mereço sua amizade e de ninguém! Eu sou uma besta humana! - Keitarô cai de joelhos ao chão e começa a chorar convulsivamente, aos soluços.
- O que foi? Você não pode ficar se sentindo culpado assim, Keitarô!
- E-eu tenho medo... Medo de perder a sua confiança, a de Narusegawa e de todo o pessoal... N-ninguém mais vai gostar de mim! Ninguém... - Chora ele com a cabeça apoiada nos braços.
- Todo mundo aqui gosta de você. Porque você está pensando tão negativamente assim?
- M-meus sentimentos... Tenho medo deles... G-gosto da Naru, Mas... Mas... Tenho medo de a-acabar g-gostando de o-outra pess... - Keitarô responde com dificuldade, forçando a respiração.
- Keitarô... É normal um jovem acabar gostando de outras pessoas na vida. Não é porque a gente ficou tanto tempo sem namorar que vai ser isto para sempre...
- M-mas eu ainda gosto da Naru! - Ao falar isto, ele sente sua convicção começar a fraquejar.
- Não duvido dos seus sentimentos com a Naru-chan, mas não tente ser rígido consigo mesmo... Você sabe muito bem que há outras pessoas que gostam muito de você!
Mutsumi pensou que Keitarô estava se sentindo confuso com relação entre ele e outra garota da pensão, como Motoko ou mesmo Shinobu. Jamais lhe passara pela cabeça que o seu amigo de infância tivesse conhecido outra garota.
- Não! Não é verdade. Só a Narusegawa gosta de mim!... - Keitarô tenta se convencer desta afirmação embora soubesse que era mentira.
- Lembra daquele dia que avisei você e a Naru que a Shinobu estava pensando em viajar sozinha em pleno festival de Tanabata?... Eu percebi o quanto esta menina gosta de você... - Mutsumi fita o rosto de seu antigo amor com compreensão.
- M-mas a Shinobu-chan é diferente!... E-eu g-gosto dela, como se fosse minha irmã mais nova!
- Aquela amiga da Naru-chan... a Konno-San, embora diga todas aquelas coisas quando bebe sakê, mas acho que tem um fundo de verdade... Embora pareça liberal e dona de si, ela no fundo é uma garota carente. Se Naru-chan não tomar cuidado...
- A Kitsune tem cabelos curtos! E depois a gente tem pouco a ver! - Tenta desculpar-se ele, usando um argumento primário.
- Keitarô, já reparou como a Aoyama-San fica diferente quando te olha? Ela não pode falar nada abertamente, mas senti que vocês estão se dando melhor depois daquela viagem para Kyoto... Até ela começou a ter ciúmes... Hihihi - Sorri a jovem de Okinawa.
- Não diga bobagens! Nós... E-eu fiz aquilo para ela sentir-se melhor... A Motoko-chan precisava muito de ajuda! - Keitarô parece ignorar deliberadamente as evidências do que aconteceu com Motoko após aquele episódio.
- Sem falar na Su-Chan... Percebi que para ela você é tão ou até mais importante do que o irmão mais velho dela... Ela pôde suportar a ausência dele quando partiu de sua terra natal para o Japão, mas não quis que você fosse embora da pensão sem mais sem menos...
- M-mas a Su-chan é uma criança! Ela nunca namorou ninguém antes! - Contesta o rapaz tentando omitir os detalhes de sua recente saída com a garota estrangeira quando esta ficou deprimida.
- Será? Hihihi... Ela cresceu um bocado... Sem falar que as meninas disseram-me que quando a lua fica avermelhada...
- Por favor, Mutsumi, pare! Não quero mais ouvir... - Irrita-se Keitarô. Nunca ele tinha ficado bravo assim com a sua amiga de infância.
- E mesmo se você casar-se com a Naru-chan ou outra menina, e eu com outro rapaz, desejarei sempre a felicidade de ambos. Você foi o meu primeiro amor e desejo que sempre seja feliz!
Neste instante, abalado pelo peso das revelações de Mutsumi e pelo sentimento de confusão e culpa em sua mente, Keitarô continua a chorar convulsivamente, sem se importar com nada.
Comovida, a Mutsumi o ampara deixando que ele chore com a cabeça apoiada em seu colo, enquanto Tama-chan assiste a tudo com uma expressão de perplexidade e pena.
Se alguém entrasse naquele momento, os dois se veriam em maus lençóis. Para a sorte de ambos, os membros mais indiscretos da pensão Hinata estavam ocupados demais para atrapalharem aquele momento.
Após vários minutos, Keitarô parecia se acalmar, embora seus olhos estivessem vermelhos e ardendo de tanto chorar.
O colo de Mutsumi estava encharcado de lágrimas, mas ela permanecia serena, procurando compreender a tormenta que se passava na mente de seu primeiro amor e melhor amigo.
- Mu-Mutsumi, Por favor, deixe-me! Eu não mereço sua ajuda... E de ninguém!
- Keitarô, não fique deste jeito. Nem todo mundo acaba se casando com o primeiro amor que encontra na vida. Eu mesmo conheci gente que se casou somente depois de ter namorado várias vezes...
- Mas, eu amo a Narusegawa! Não é certo gostar de outra pessoa! Não é justo!
- Quanto ao seu sentimento pela Naru, ninguém está duvidando.
- Só que não quero ficar como o Professor Seta!
- Como assim, o Seta-san?
- Quando tinha a minha idade, ele acabou se apaixonando ao mesmo tempo com a minha tia Haruka e a mãe da Sarah! E ficou nesta indecisão por muito tempo! Se acontecer a mesma coisa comigo, não poderei suportar! Não posso agüentar viver mais de nove anos sem ser correspondido como o Seta-san ficou! - Neste ponto Keitarô para de chorar e começa a ficar indignado consigo mesmo.
- Não fique imaginando coisas que ainda não aconteceram! Ninguém disse que o seu futuro vai ser idêntico ao do Seta-Sensei. Só o Bom Deus sabe do nosso futuro.
- M-mas Mutsumi, como posso fazer? O que me resta? - Responde ele com um tom de desespero sombrio em sua voz.
- Kei-kun, se o seu amor pela Naru for forte e sincero, ele sobreviverá a toda tormenta, a toda contrariedade. Dê tempo ao tempo e não se deixe abalar por qualquer coisa...
- O, o que faria se você fosse minha namorada?
- Olha. Eu só renunciaria ao meu amor e deixaria esta decisão nas mãos de Deus se sentisse que a pessoa que você ama fosse melhor do que eu. Do contrário, eu não procuraria julgar você ou os fatos, mas daria o melhor de si para reconquistar o seu coração...
- M-mas por quê?
- O Amor, quando é verdadeiro e puro, supera tudo...
Apesar de todo o abatimento e medo que sentia na alma, Keitarô deixou um pouco de luz entrar nas trevas que abatiam o seu interior. Ele até estava tentando esboçar um tímido sorriso quando Mutsumi fecha os olhos e se aproxima dele.
Inesperadamente, ela lhe dá um beijo no rosto. Não um beijo motivado pela paixão mais instintiva ou pela luxúria, mas um ósculo de paz, fraternal.
- M-mutsumi, não mereço... - O jovem de óculos mal acredita no que aconteceu.
- Kei-kun, todos nós precisamos de paz interior e de perdão. Perdoe a si mesmo.
- V-você me perdoaria, se fosse minha namorada? - Keitarô teme a resposta negativa vinda de Otohime.
- É claro que sim!
- M-mas, eu sinto que a Naru... - Ele ainda não estava totalmente convencido.
- Não se preocupe, não pense que ela é tão durona assim... Dê chance ao Amor, e tudo ficará claro. Não se prenda ao passado ou a qualquer coisa, mas procure viver o seu presente da melhor maneira possível.
Keitarô e Mutsumi olham se um ao outro uma outra vez. Ele sente pela primeira vez que sua ex-namoradinha da infância e companheira de vestibular não era tão desajeitada e simplista quanto se imaginava. Mutsumi carregava dentro de si não somente uma bondade natural e um desprendimento da alma - raro nestes tempos materialistas - como também uma forte dose de compreensão e compaixão pelos sentimentos alheios.
Sem se importar com o tempo ou com o que os outros iriam dizer, Mutsumi se aproxima e beija ternamente Keitarô uma, duas, três vezes, abraçando-o com muito carinho. Ele está cansado e carente demais para tentar impedir isto. Mas está admirado pela demonstração de confiança e - por que não dizer - da jovem de cabelos castanho-escuros que adorava dele tanto quanto gostava de melancia e de kotatsus.
Sem dizer palavra, Keitarô corresponde aos abraços e acaricia os longos cabelos e as costas de Otohime. Somente a pequena Tama é testemunha do acontecimento.
Escrito por:
Calerom
myamauchi1969@yahoo.com.br
A CRISE DE KEITARÔ.
Era pouco mais de Seis Horas da manhã quando Keitarô subitamente desperta.
Embora ele estivesse acostumado a acordar mais cedo devido ao seu papel de "kanrinin" da Pensão Hinata, ele sentira que deixou a hora atrasar, talvez devido ao esgotamento físico.
Ainda atordoado e incapaz de distinguir nitidamente o sonho da realidade, ele abre os olhos e nota que somente ele está no quarto. E pior, está somente com a sua roupa de baixo. A calça e a camisa estavam colocadas ao lado da esteira de dormir.
- Yuri... Ele murmura, sentindo um vazio cortante que falava por mil palavras e descrições.
Em vão, ele tenta encontrar sinais da presença dela no quarto. A loira já havia saído, tendo recolhido seus pertences e armas.
Numa atitude emocional, Keitarô pega o cobertor e o cheira, sentindo o aroma do perfume que ela usava.
Em seguida, ele tenta descobrir se aquilo que ocorreu entre ambos tinha sido sonho ou foi real. Após um rápido exame, nota que o seu desejo havia sido aplacado, ao menos por enquanto.
Uma mancha discreta no cobertor era prova mais do que suficiente de que ALGO havia ocorrido entre os dois.
Keitarô estava simplesmente pasmo e estarrecido. Será que durante a madrugada eles fizeram amor?
Ele não se lembrava de mais nada do que aconteceu após Yuri ter abraçado e beijado ele, a não ser por uma estranha sensação vertiginosa, seguida pelo cansaço e pelo sono.
Quanto tempo teria transcorrido? Segundos? Minutos? Horas?
Antes que fique desesperado, o estudante da Toudai descobre um bilhete dobrado em cima da mesa.
Ele pensa em lê-lo, só que seu pensamento é bruscamente interrompido pelo bater da porta. Instintivamente, ele esconde o bilhete comprometedor.
- Keitarô sempai, você já acordou? - Uma voz delicada e tímida se faz ouvir.
- Sim, quem é? - Responde Keitarô meio assustado, tentando colocar a sua calça o mais rápido possível. Ele sabia de quem se tratava.
- Sou eu, a Shinobu. Vim avisar que o café da manhã está pronto.
- Ah, está tudo bem. Estou terminando me de aprontar e daqui a um minuto irei me juntar a vocês. E como estão Kaolla e Sarah?
- Já estão recuperadas, assim como eu. Mal pularam da cama e as duas devoraram a marmita que Motoko-chan trouxe para elas.
Keitarô tenta trocar com rapidez, só que antes de colocar a camisa, a porta do seu quarto vem abaixo.
- Oiêêê, Agente Keitarô. Venha logo ou iremos comer todo o café da manhã! - Grita a jovem de pele escura com seu entusiasmo.
- Good Morning, Keitarô! How are You? - Acompanha a sua amiguinha loira de gênio forte.
Sarah e Su irrompem com o seu habitual entusiasmo, uma chutando a cabeça do infeliz Keitarô e outra golpeando com um artefato antigo.
O azarado rapaz é nocauteado e cai no chão com dois novos galos na cabeça.
- Su-Chan! Sarah-Chan! Tenham modos! - Tenta protestar Shinobu inutilmente contra a traquinagem da dupla, que tira sarro de sua vítima.
Keitarô tenta-se levantar, ainda meio tonto, só que antes que consiga vestir a camisa, é nocauteado por uma furiosa Narusegawa que andava pelo corredor em menos de dois segundos:
- Seu tarado, pervertido! Como ousa ficar seminu diante de três crianças inocentes?
O soco faz Keitarô se esborrachar na parede, como se fosse uma bola de Squash.
Naru ia aplicar outro golpe no indefeso rapaz, mas estranhamente Shinobu cria coragem e ergue a voz:
- Mas não foi culpa dele! Ele estava se aprontando ainda dentro quando a Su-chan e a Sarah-chan entraram com tudo no quarto! - Protesta Shinobu, que normalmente não falava nada.
Normalmente, quando Keitarô era vítima das porradas da Narusegawa, ninguém abria o bico para defendê-lo, mesmo quando era evidente que Naru estava errada.
Só que pela primeira vez, cansada de ver tal espetáculo deprimente, Shinobu protesta, por maior que fosse o respeito que tinha por Naru-sempai.
Naru fica paralisada momentaneamente - já que nunca havia sido contestada em nada pelas meninas, principalmente em momentos como este.
Tentando se justificar para Shinobu e para si mesma, ela dá um sorriso amarelo e tenta parecer razoável:
- Bem... Eu, hã... Pensei que fosse mais um plano deste pervertido pra cima de vocês. Mas não se engane, Shinobu: o Keitarô só pensa em safadezas! Não dê corda para ele!
- Isto mesmo, Naru! Keitarô sucks! - Apóia Sarah, meio chateada pela delação da Shinobu.
- Keitarô taradão papa-anjo! - Fala Su de forma irresponsável como de costume, sem pensar nas implicações.
Shinobu ajuda Keitarô se levantar e mais do que rapidamente faz os primeiros socorros em seus ferimentos, buscando um estojo de medicamentos. Depois ajuda a colocar sua camisa, aparentemente sem demonstrar vergonha.
- O-obrigado. Shinobu-chan... Mas não foi nada... - Tenta disfarçar Keitarô fazendo uma careta de dor ao sentir o remédio a queimar na ferida.
- Tome cuidado, sempai, aquelas duas são totalmente endiabradas! Não gosto quando você acaba levando a culpa, apesar de pessoalmente gostar muito da Su-chan e da Sarah-chan. - Comenta Shinobu num meio desabafo.
- Estou acostumado... Hoje até que elas não aprontam tanto quanto antigamente.
- Sempai... - Shinobu suspira e seus olhos parecem brilhar ao fitar a face do Keitarô.
- O que foi Shinobu-chan? - Pergunta gentilmente o rapaz sem reparar no tom de voz da garota, que estava bem mais sentimental do que de costume.
- Obrigada por nos salvar daquele mago malvado ontem... A gente veio para ajudar você e a Naru sempai, mas no final tivemos que ser socorridas novamente... Como nas Ilhas Pararacelso. - Conclui com melancolia a jovem aventureira.
- Mas quem disse isto? - Indaga o rapaz com sua sutileza de elefante.
- Foram a Kitsune-san e a Motoko-san. Elas nos contaram tudo o que aconteceu.
- Bem, o que importa é que estamos salvos. - Keitarô tenta minimizar sua própria participação, procurando ser modesto.
Shinobu sente neste momento vontade de chorar e abraçar o rapaz que estava diante dela. Embora soubesse que ele amava Naru. Embora soubesse que outras garotas estavam no páreo, disputando seu afeto e carinho.
Por mais enrolada, autoritária e chata que a Narusegawa fosse e por mais que ficasse claro que Keitarô considerava a jovem ginasial apenas como uma pessoa querida, a garota de quase 15 anos sentia que também gostava muito dele.
Não, talvez seria amor?
Em todo caso, ela estava buscando encontrar seus verdadeiros sentimentos.
Keitarô fita os olhos de Shinobu, com muito mais interesse do que se esperaria numa amizade convencional.
Era um olhar com o sentido de um carinho especial devotado às pessoas de sua família, como se fosse uma irmãzinha querida, e nem tanto com o ardor típico das pessoas apaixonadas.
Contudo, um lampejo dos acontecimentos recentes o faz sentir novamente com culpa.
Depois de tudo que aconteceu entre ele e Yuri naquela noite, ele sentia se como se tivesse traído não somente o amor dedicado à Narusegawa, mas também os afetos do pessoal da pensão Hinata, principalmente da Shinobu e Motoko.
É Keitarô e não Shinobu que tem agora vontade de chorar.
- Sempai? V-você... Está chorando? P-por quê? - Pergunta delicadamente a jovem de cabelos negros, enxugando instintivamente as lágrimas de Keitarô.
- Shi-shinobu... Eu... Não mereço tamanha demonstração de afeto... Eu... - Keitarô sente vontade de abraçar e desabafar seus medos com a garota.
Uma batida na porta se faz ouvir, discreta, mas firme.
- Ei vocês dois, vão continuar embaçando aí? Se demorarem mais um pouco, a Kaolla e a Mutsumi vão devorar todo o café da manhã desta estalagem! - Grita uma voz conhecida no dialeto de Osaka.
- Já vai, Kitsune. - Responde Keitarô numa situação inusitada. Geralmente Kitsune era uma das últimas para tomar o café da manhã na pensão Hinata até mesmo quando não estava bêbada.
Curiosa como sempre, Mitsune havia resolvido dar uma espiada para ver o que Shinobu e Keitarô estavam fazendo no quarto.
Ávida por fofocas e novidades, ela teria mesmo espiado Keitarô ontem à noite se não estivesse tão cansada pela luta contra Tarsius e seus monstros.
Primeiro Shinobu sai, tentando parecer tranqüila, mas a cor vermelha de suas faces a trai.
Em seguida Keitarô se retira, tendo cuidadosamente guardado o bilhete da Yuri no seu bolso antes que alguém o visse.
- Bom dia, Keitarô. - Pergunta a astuta garota, dando um tapinha no ombro de Keitarô.
- Bom dia, Kitsune. - Keitarô aparenta estar um pouco cansado e aborrecido.
- E aí, como foi a sua noite? - Sorri a jovem de cabelos castanhos.
- Como assim?
- O seu parceiro de quarto? Como ele era? Era um morenão musculoso de dois metros de altura com tendências "alegres" ou um bárbaro horroroso e que cheirava a cavalo morto? - Maliciava a jovem Konno piscando um de seus olhos.
- Não, não era nada disto! - Protesta Keitarô temendo que a moça à sua frente soubesse mais do que aparentava.
- Ué, o Keitarô sempai teve que dormir com outra pessoa? Pergunta ingenuamente Shinobu, que não sabia de nada.
- Ahahah, isto mesmo! Não tinha mais vagas nesta estalagem e ele teve que repartir o quarto! Espero que o seu parceiro não tenha se apaixonado por você, rapaz... Acidentes de percurso acontecem!... Ahahahahah - Gargalha Kitsune.
- Até parece, Kitsune! - Keitarô está com as faces ardendo devido ao afluxo de sangue.
Kitsune dá uma rápida olhada para trás e - através da porta aberta - percebe com o seu olhar perspicaz que o quarto onde Keitarô estava hospedado não tinha camas, mas sim uma esteira de dormir.
Se o quarto estava ocupado por duas pessoas, elas teriam compartilhado a esteira, pensa a garota com apelido de raposa.
Estranhamente o quarto estava impecavelmente limpo e arrumado com um capricho nada masculino, com exceção do lado que Keitarô havia utilizado - e que por ter acordado a pouco, não teve muito tempo de deixar as coisas no lugar.
O cérebro da garota de cabelos curtos castanhos que nunca fez o vestibular - mas era esperta como o animal que dava o seu apelido - começava a articular pensamentos maliciosos em sua mente.
Em seguida, Keitarô, Kitsune e Shinobu adentram a sala de refeições da estalagem onde estava sendo servido o café da manhã.
Havia uma mesa reservada para eles no centro, formada por três mesas quadradas unidas entre si.
Como era habitual na estalagem de Joe, o café da manhã era servido das 6:00 Horas até as 9:00 Horas, sendo a única refeição servida aos visitantes.
Talvez fosse parte de um acordo feito com o dono da taverna Old Legs, que não funcionava até pouco antes da hora do almoço.
A refeição matinal consistia em pães de vários formatos e receitas, porções generosas de manteiga, mel, patê, frutas de estação, ovos fritos, bacon, tortas salgadas de diversos tipos, queijos macios, presunto, salame, algumas sopas quentes e uma sobremesa que variava com a estação e o clima.
Naquele dia, a sobremesa era uma deliciosa torta gigante de framboesas e amoras silvestres, que era disputada fatia por fatia.
Para beber, havia água, leite, suco de frutas, cerveja e vinhos diversos.
Para Shinobu, Sarah, Tama e Kaolla, o estalajeiro havia servido um delicioso refresco feito de suco de uvas e frutas vermelhas da época.
Motoko e Narusegawa haviam terminado a refeição momentos atrás.
A primeira, por comer pouco e frugalmente, como de costume.
Motoko não comia muito, não apenas para se manter em forma, mas para por em prática os preceitos da sua arte Shinmeiryu que preconizava a austeridade diante das circunstâncias da vida.
E a segunda, por estar em nova crise de mau humor, irritada não somente por ter flagrado Keitarô seminu (leia-se sem camisa) diante das meninas, como pela reação inesperada da Shinobu, impedindo-a de dar uma lição como ela gostaria.
Kaolla e Mutsumi estavam devorando as iguarias colocadas diante delas com um apetite inigualável, enquanto Tama-chan e Sarah assistiam a tudo com um misto de admiração e inveja pela forma como as duas comiam com apetite.
- Oi, Keitarô, desculpe a pressa, mas o café da manhã estava simplesmente irresistível! Dormiu bem esta noite? - Pergunta inocentemente Mutsumi sem reparar no olhar fulminante de ciúme de Naru.
- Oi Mutsumi, oi pessoal. Eheheh. Desculpem-me pela demora, mas acho que desta vez eu fui o retardatário... - Comenta o jovem com um sorriso meio sem graça.
- Interessante! Geralmente o Keitarô e a Shinobu são os primeiros a acordarem na pensão... O que você andou fazendo ontem à noite no quarto? Conta! - Malicia Kitsune.
- Isto, isto! Conta! Conta! - Kaolla entra no time das curiosas.
- Na certa o Keitarô estava fazendo guerra de travesseiros com um bárbaro ontem à noite! - Especula Sarah com o seu sarcasmo particular.
- Ah... Sinto dizer, mas não foi nada disto. O cara que estava pernoitando no mesmo quarto que eu não era de muita conversa e desocupou o quarto na madrugada... - Tenta mentir Keitarô, fingindo naturalidade.
Apenas Narusegawa e Kitsune não ficaram totalmente satisfeitas com a explicação.
- Sei não. O lado que o parceiro do Keitarô usou estava imaculado. Tenho quase certeza de que o tal cara devia ser muito discreto, quem sabe uma baita boiolão fresco ou um assassino profissional. Quando fazem o serviço, são tiro e queda! - Pondera a jovem de Osaka com um ar fingindo sabedoria.
- Não diga exageros, Kitsune! - Protesta Narusegawa.
- Talvez esteja enganada, mas quem sabe... Imagina se o cara fosse um traficante de órgãos que revende a alquimistas loucos e nobres impotentes... Ei, Keitarô, você reparou se não perdeu nada de ontem para hoje? - Mesmo sem estar bêbada, a criatividade para imaginar coisas maliciosas da jovem de Osaka era muito grande.
Apesar do absurdo da afirmação da Kitsune, Keitarô instintivamente põe a mão no meio das pernas. Todos os presentes caem na risada geral, exceto Narusegawa e Motoko.
- É bem capaz que se seu colega de quarto não roubou aquilo, deve ter roubado o seu cérebro, sua anta! - Diz Naru com um tom ácido na sua voz.
- Temos que lembrar que devemos descobrir o modo de sair desta dimensão antes que surjam coisas piores. - Conclui uma Motoko toda séria, chateada por aquela conversa sem sentido para ela.
- Mas, Motoko, agora que a coisa está ficando divertida! - Exclama Kaolla.
- Nada de "mas", Kaolla! A verdade é que no momento estamos presas a este mundo e sem poder ou habilidades para vencermos os desafios futuros que são muito piores do que este tal do Tersias ou os orcs. Se não tivermos uma estratégia de batalha, podemos até morrer. - Retruca a samurai com dureza na voz.
- Ué, Motoko, você nunca foi de recuar! E suas habilidades mágicas? - Observa Kitsune, defendendo a jovem estrangeira. De fato, antes de Su se afeiçoar à Motoko, Kitsune já era amiga da morena de cabelos claros.
- Bem, Kitsune, realismo é uma coisa. Covardia é outra. Percebi que embora tenha mantido minhas técnicas de luta, os monstros que enfrentamos são de um nível de força equivalente ao meu... E é bem provável que encontremos outros ainda mais poderosos. - Motoko tenta contemporizar.
- Mas todas não ganharam habilidades especiais? Quem sabe... - Keitarô tenta intervir na conversa.
- Não diga besteiras, Keitarô! Ninguém aqui é maga, feiticeira ou lutadora na vida real. Não somos personagens de videogame, mas gente de carne e osso tentando lutar para nos mantermos vivas neste mundo bizarro! - Exalta-se de novo Motoko.
- Gente! Parem com isto, senão vão acabar brigando! Se quiserem a minha opinião, temos que ficarmos todos juntos para terminar a missão o mais rápido possível e encontrar com o tal do arquimago para ver se encontramos um jeito de sair desta realidade! - Implora Naru temendo que a discussão se transformasse em briga aberta.
- Ara, Ara, agora me lembrei! - A Mutsumi estava totalmente à parte da conversa, mas de repente seus olhos brilham como se tivesse lembrado de algo interessante.
- Mew? - Indaga a pequena tartaruga Tama, que estava sentada na cabeça de Mutsumi bebendo um cálice de suco de framboesas.
- O que foi, Mutsumi? Alguma idéia?... - Pergunta Naru.
- Estava pensando que nossa situação não é muito diferente daqueles personagens de anime que ficam perdidos num mundo diferente... Até que ficamos parecidas com as meninas do Rayearth... Se tivermos que arranjar um jeito de voltar terá que ser pela força de nosso desejo guardado nos nossos corações... Hihihi
- Como é que é? - Fala secamente Motoko, com cara de quem não entendeu nada.
- Motoko-chan, este anime conta a história de três colegiais comuns que acabam se conhecendo por acaso na Torre de Tóquio e que são teleportadas para um mundo totalmente mágico, a fim de salvar uma tal de Princesa Esmeralda das mãos do clérigo Zagard... - Termina de explicar Mutsumi.
- Muito interessante a sua comparação, mas o fato é que nunca perdi meu tempo com mangas e desenhos... - Responde Motoko.
- Diferentemente das meninas do Rayearth, o nosso agravante é que não temos nenhum guru cléf e nenhuma Priscila para nos ajudar! - Tenta protestar Kitsune.
- Ainda bem que não temos que aturar o Mokona aqui!... - Comenta Keitarô levianamente.
- Gente, a Mutsumi está certa! Eu não entendo muito de RPG ou de animes, mas temos que permanecer unidas e acima de tudo, acreditar em nós mesmas, fazendo do desejo de voltar para casa ficar forte com a força de nossos sentimentos! - Entusiasma-se Naru. Embora a argumentação de Mutsumi fosse frágil, a idéia em si tinha sentido para ela. Se ninguém acreditasse na possibilidade de voltar, quem iria fazer isto por elas?
- Concordo com você, Naru sempai! - Concorda Shinobu.
- É isto aí, garota-melancia! Estou contigo! - Exalta-se Sarah, erguendo o braço.
- Gente, agora eu lembrei! - Os olhos da jovem hindu brilham e ela ergue o dedo indicador instintivamente.
- O que foi, Kaolla?
- Acho que isto tem algo a ver com o sistema de evolução dos personagens neste jogo! Diferentemente dos RPGS tradicionais aonde a experiência se ganha derrotando monstros, nossos poderes dependem diretamente de nossa força de vontade e das decisões que tomamos no jogo! Os criadores do game fizeram isto para tornar a disputa mais emocionante! - Tenta explicar a pequena jovem superdotada, lembrando-se das resenhas do jogo vistas na Internet.
- Então um cara paralítico numa cadeira de rodas pode tornar se mais poderoso neste mundo de realidade virtual do que um brutamontes musculoso? - Pergunta Naru.
- Isto mesmo, Naru! - Conclui a jovem inventora.
- Puxa, até está parecendo aquele filme com o Keanu Reeves... - Naru fica pensativa...
- Matrix? - Indaga Kaolla.
- Isto mesmo. - Responde a jovem ruiva.
- Pensando bem, vocês têm razão... Só conseguimos derrotar Tersias e outros monstros quando buscamos a força de vontade que estava dentro de nós... - Motoko finalmente se convence de que a argumentação de Kaolla não era tão absurda assim.
- Bem, se depender disto, a gente sai deste mundo fácil, fácil! - Exclama Mutsumi com o seu otimismo nada modesto.
- Mew! - Até Tama-chan concorda.
- Por quê, Mutsumi? - Keitarô pergunta.
- Ué? Se o trio ronin conseguiu se reencontrar após 15 anos, sobreviver na Ilha Pararacelso e até entrar na Toudai ao mesmo tempo, nós temos força suficiente para isto!
- Ah, Mutsumi-chan, de novo? Trio Ronin, não! - Naru não gosta do termo usado, lembrando-se de sua reprovação no vestibular de 1999.
- Ué, Naru? Até que esta alcunha pegou bem, não acha? - Brinca Keitarô.
- Só se for para você, seu quadrúpede! - Naru fica irritada e dá um chega para lá no Keitarô, que se esborracha na mesa vizinha.
- Gyaaaaa! - Grita o infeliz enquanto uma torta que estava na mesa lambuza a sua cara.
- Motoko, por que você está pensativa? - Pergunta Shinobu.
- Bem... Estava me lembrando dos ensinamentos que os anciões de meu clã diziam... Não que desmereça o que Mutsumi disse. Concordo que temos que extrair o melhor de nós mesmos em nossa força de vontade, mas... - Motoko assume um ar de quem está buscando a verdade dentro de si mesma.
- Mas? - Indaga a jovem Maehara.
- Meu receio é que neste processo de descobrirmos a nós mesmas a gente descubra verdades dolorosas... - Conclui a jovem samurai fechando por um momento seus belos olhos.
- Mas você é do tipo que não tem medo de nada!... Você consegue! Bem mais do que a gente... - O olhar de Shinobu é ao mesmo tempo suplicante e cheio de admiração.
- Não, não é isto, Shinobu-chan. Mas o fato é que para crescermos, a Vida nos cobra decisões... Lembra-se quando perdi para minha irmã?
- Sim... Mas você superou isto, não? - Shinobu tenta adivinhar o que sua amiga mais velha quer falar.
- Bem, no final deu tudo certo, mas descobri que até então vivia apenas para os treinos. Achava que somente isto bastava para se tornar uma guerreira perfeita... Nunca imaginei que estivesse tão despreparada para a vida. Aquilo foi uma dura lição... - Motoko conclui com um certo tom de melancolia na voz.
- Não seja severa consigo mesma, Motoko-san, eu também tive que aprender muito depois que passei a morar com vocês na pensão Hinata...
- Não se preocupe comigo... Agora estou bem melhor. Aprendi que não basta apenas a técnica, a agilidade ou a força, mas também o nosso viver, o nosso sentir em todos os aspectos da vida. - Sorri discretamente a jovem samurai, lembrando-se dos momentos em que passou junta com Keitarô. Apesar de ainda não admitir abertamente seus sentimentos, ela havia reconhecido a atenção e a solicitude do atrapalhado kanrinin.
O restante da conversa girou sobre assuntos triviais e amenidades. A torta do dia foi devorada pela Kaolla, Mutsumi e Sarah em instantes. Quem não pegou ao menos uma fatia, acabou ficando de fora.
Naru e Motoko chegaram a pensar em fazer uma visita a loja de armas e equipamentos para aventureiros, mas ainda era muito cedo e o grupo iria comprar os items necessários apenas quando terminassem a reunião com Eldrick.
De comum acordo, o grupo resolveu apenas que iriam adquirir itens básicos como sacos de dormir, uma tenda de acampamento, lanterna, remédios e comida de viagem, para evidente desagrado de Kitsune, que estava pensando em outras prioridades.
Consumista por definição, a garota de olhar de raposa resolveu refrear seus instintos gastadores até que chegassem à capital deste reinado.
Ela já havia decidido torrar a sua parte de dinheiro comprando o máximo de roupas, perfumes e jóias que pudesse achar neste mundo, torcendo para que pudesse leva-los de volta ao mundo real.
E se sobrasse alguns trocados, ela gastaria em bebidas exóticas e em apostas no cassino mais próximo que tivesse.
Terminado o café da manhã o grupo resolveu voltar à estalagem para arrumar suas coisas e se preparar com a reunião que teriam às 10:30 com o condestável Eldrick. Só então fariam as compras necessárias para a viagem.
Embora a reunião na taverna não tivesse tido algum resultado prático, o grupo da pensão Hinata estava ciente que teriam que permanecer unidos aconteça o que acontecesse e que deveriam dar o melhor de si se quisesse voltar para a casa.
Motoko foi para o quarto meditar um pouco, enquanto Kaolla e Sarah tratavam de arranjar algo para brincar.
E a pequena Shinobu resolveu anotar algumas receitas dos pratos que vira na estalagem. Cozinheira experiente, ela sabia deduzir as medidas e os ingredientes de cada prato somente olhando no seu visual e experimentando um pouco.
Sem ter o que fazer, Kitsune aproveitou o tempo livre para jogar conversa com Naru, que estava visivelmente de mau humor, não com ela, mas com Keitarô.
Embora não tivesse indícios visíveis, a jovem ruiva estava pressentindo de que Keitarô estava um pouco diferente do habitual, como se não bastasse a sua preocupação em mantê-lo a salvo das investidas ocasionais de Mutsumi, da própria Kitsune e até das outras meninas.
Motivado por um medo exagerado de solidão, Naru guardava ciúmes de suas afeições. Um dos motivos que levou a mudar para a pensão Hinata foi justamente o fato dela não aceitar sua nova família.
Mas somente passara a sentir isto com intensidade jamais vista quando conhecera Keitarô Urashima.
Keitarô voltara para o seu quarto, mas encontrara-o desocupado. Qualquer esperança de que Yuri estivesse lá se desvanecera. Novamente o peso na sua consciência se manifestava, junto com seus medos interiores.
Certificando-se de que não seria interrompido por ninguém, ele tranca a porta cautelosamente e decide ler o bilhete que Yuri havia lhe escrito:
Keitarô:
Gostei muito de você e de seu jeito de ser.
Sincero e carinhoso.
É uma pena que esteja indo embora hoje.
Será que nos encontraremos de novo um dia?
Como disse, estou tentando conversar com as
autoridades locais para procurar um serviço.
Se der certo, ficarei na região nos próximos meses.
Mas caso não der certo,
Voltarei para Brightstone em três ou quatro dias.
Se um dia quiser me encontrar de novo,
Procure por mim nessa cidade.
Tenho um contato chamado Rufus no Distrito das Docas,
Numa taverna chamada Wildcat Alley.
Ele se encontra lá quase todo dia.
Não é um lugar muito difícil de se achar.
Terei o maior prazer em te ver e se estiver interessado,
Eu gostaria de ser sua companheira de aventuras.
Aceita?
Beijos,
Yuri.
PS: Desculpe-me pela noite de ontem,
Obrigada por ter me ajudado.
Espero nos encontrarmos um dia tanto aqui como no mundo
Real.
O rapaz fica simultaneamente comovido e estarrecido ao terminar de ler o bilhete.
Comovido por nunca ter imaginado que alguém gostaria dele à primeira vista.
Durante sua adolescência Keitarô nunca fora popular com as garotas, sendo ridicularizado por elas devido às suas trapalhadas e pelo fato de ser medíocre em tudo.
Mesmo para ele tinha sido difícil ganhar a confiança das garotas da pensão Hinata, até mesmo a Shinobu.
E estarrecido porque o bilhete simplesmente confirmava seus medos e temores de que "alguma coisa a mais" tivesse acontecido naquela noite.
Keitarô não se lembrava de mais nada do que acontecera quando Yuri havia o abraçado e beijado, mas a sensação de saciedade que tivera de manhã e a estranha mancha no cobertor eram provas mais do que suficientes.
Naquele momento, ele se torturava imaginando ser verdade o que as meninas da pensão viviam dizendo sobre ele, principalmente nos primeiros tempos: Um tarado, pervertido e imoral.
Nem nas suas mais selvagens fantasias ele imaginava ter feito amor com uma desconhecida à primeira vista, ainda mais agora que ele amava a Narusegawa.
Keitarô se sentia naquele momento um canalha, um traidor.
Certo, a Naru podia ser do jeito que era: enrolada, cabeça-quente, impulsiva e ciumenta, mas nunca seria capaz de fazer uma sacanagem daquelas com ele.
Pelo que Keitarô lembrava, ela nunca havia procurado outra pessoa por pior que estivesse a relação entre ambos.
A admiração que Naru tinha pelo professor Seta no passado não era mais do que isto: admiração típica de uma mocinha adolescente pelo seu tutor.
E o jovem imaginava que não podia se abrir com ninguém da pensão a respeito do ocorrido. Elas nunca iriam perdoá-lo pela traição.
Kitsune, apesar daquele seu jeito folgado e sacana, e de vez em quando fazer gracinhas a respeito do relacionamento entre ambos, ainda era superleal à Naru e fatalmente ficaria do lado desta.
Se soubesse do ocorrido, Motoko iria fatiá-lo em mil pedaços usando suas técnicas mais letais, por dois motivos: Primeiro pela amizade que tinha pela Naru, e segundo, certamente porque ela TAMBÉM se sentiria traída em seus sentimentos, ainda mais depois do que aconteceu entre Keitarô e a jovem guerreira após a viagem a Kyoto.
Shinobu-chan? Ela não iria suportar a revelação. Das duas uma: Ou ela iria ficar em estado de choque chorando que nem louca, ou voltaria àquela época em que ela chegou a odiar Keitarô por não entender os sentimentos dela. Ou talvez ambas as coisas.
A Su? Sua reação iria ser pior do que a de um tigre ferido. Se ela fez aquele escândalo no dia em que Keitarô revelou que estava pensando em sair do Japão para fazer uma bolsa de estudos, certamente ela iria fazer coisas ainda piores.
Keitarô já se imaginava sendo eletrocutado, queimado, congelado e fatiado pelas diabólicas invenções da garota de pele morena.
Embora nunca tivesse demonstrado grande respeito por ele desde quando se conheceram, a Sarah havia melhorado o seu comportamento com Keitarô desde quando passou na Toudai.
Contudo, isto iria fatalmente acabar se ela soubesse da traição.
Ainda criancinha, Sarah havia sentido na carne o que é ser rejeitada, pela experiência que sua mãe, Cindy, teve.
E ela não gostaria que nenhuma outra pessoa passasse o que ela e sua mãe passaram. Se a jovem americana soubesse que Keitarô havia traído Naru, ele poderia se preparar para o pior.
A Mutsumi seria talvez, a única esperança de Keitarô.
Só que ele imaginava que - apesar dela não ser capaz de qualquer ato de violência, a jovem Otohime ficaria muito triste e decepcionada com ele e sua traição.
Desde a infância, Mutsumi havia se esforçado para que ele e a Naru formassem um par e mesmo após terem perdido o contato, ela nunca esqueceu da promessa de ir para a Toudai junto com eles, mesmo após quinze anos terem se passado.
Traindo Narusegawa seria a mesma coisa que trair o amor que Mutsumi nutria por ele, pensava Keitarô.
- Droga! Mas como sou um desastre vivo! Keitarô, seu idiota sacana! Como pôde deixar as coisas chegarem a este ponto? Droga! Droga! Droga! - Keitarô imaginava em sua mente as garotas fugindo dele com desprezo em seus olhares, indiferentes aos seus apelos e desculpas.
Com fúria e vergonha de si mesmo, Keitarô começou a socar com ambas as mãos o piso de madeira do quarto estando ele de joelhos. Subitamente, alguém bateu na porta.
- Keitarô, eu posso entrar? - Uma voz conhecida se fez ouvir.
- Ops! Quem é? - Keitarô fica tão envergonhado e confuso que não reconhece de imediato a voz.
- Mew! Mew! - Uma voz em "tartaruguês" se faz ouvir.
- Sou eu, a Mutsumi, posso entrar? - Responde a voz.
- Espere um pouco que vou abrir a porta.
Com hesitação, Keitarô vai abrir a porta. Ele tem alguma dificuldade de destravar a tranca, só que neste exato momento, Mutsumi - que estava apoiada de costas na porta - ela tropeça ao entrar e cai no chão, completamente sem sentidos.
Keitarô e Tama-chan fazem muita força para evitar que a alma angelical da atrapalhada jovem de Okinawa saia de seu corpo físico mais uma vez, como nos primeiros tempos.
Ao recobrar a consciência, Mutsumi senta no acolchoado que servia de cama no aposento, como se estivesse num tatame.
Como de costume, Tama-chan fica em cima de sua cabeça, com as patas cruzadas.
- Oi, Keitarô, eu e a Tama viemos fazer uma visitinha. - Diz a garota de Okinawa. Seus olhos amendoados e doces a tornavam ainda mais bonita.
- Hã, sim, tudo bem... E as outras meninas?
- Elas estão descansando no outro quarto. A Mitsune aproveitou para dar uma saidinha para espiar as lojas... - Comenta Mutsumi.
- Tomara que ela não torre a grana para comprar bebidas. - Responde Keitarô um pouco preocupado com o consumismo inato da jovem Konno.
- Sem problemas. A Mitsune levou a parte que lhe cabia. Fizemos uma divisão assim: Cerca de 60% do dinheiro arrecadado ficou num fundo para comprar as coisas necessárias para a viagem e o restante foi rateado entre nove...
- Nove pessoas? Bem, além de você, vieram a Narusegawa, a Kitsune, a Motoko, a Shinobu-chan, a Su-chan, a Sarah-chan e eu. Somos em oito... - Keitarô fica um pouco confuso.
- Bem, para ser exato, oito mais a Tama-chan... Ela também é uma aventureira digna!
- Certo. Esqueci deste detalhe... - Tenta-se desculpar Keitarô.
- Mew! Meew! - Tama parece reclamar do pouco caso de Keitarô.
Keitarô faz menção de arrumar o quarto. Tama e Mutsumi se dispõem a ajudá-lo.
- Puxa, Keitarô, deve ter sido bem difícil você ter dormido neste quarto. - Mutsumi repara na ausência de cama.
- Bem, até que nem tanto, já estou acostumado a dormir sem cama.
- Embora aqui não seja um hotel de luxo, até que tivemos sorte. Lá no nosso quarto o pessoal achou as acomodações simples, mas confortáveis e limpas.
- Bem, Isto é o que importa. Pelo menos ficamos livres de ratos e percevejos...
- Keitarô? - A jovem de cabelos longos se aproxima e olha fixamente em seu rosto.
- Sim? - Keitarô fica um pouco constrangido com a demonstração de intimidade de Otohime.
- Você reparou como a Naru estava de mal-humor? Aconteceu alguma coisa entre vocês? - Keitarô se surpreende ao reparar que Mutsumi não era tão desligada quanto aparentava ser.
- Bem... Hã... Acho que deve ter sido o seguinte, Mutsumi. A gente saiu naquela tarde de domingo para ir ao shopping, mas nós estávamos sem programa definido. Ela invocou de querer experimentar jogar na Lan House que a Su havia indicado e fomos para lá... Testamos o game, só que algo deu errado e bem... O resto já sabe...
- Mas penso que o motivo não foi este. - Retruca a jovem de Okinawa com rara objetividade.
- Como assim?
- É como se ela estivesse com os sentimentos machucados...
- Ah, então foi isto? Eu iria trocar de roupa quando a Su-chan e a Sarah entraram de repente no quarto me atropelando. Assim que me levantei, a Shinobu-chan apareceu e me viu sem camisa. A Narusegawa entrou naquele momento e me socou antes que tivesse chance de explicar para ela... Foi o que aconteceu.
- Mas foi só isto?
- Depois, teve aquela brincadeira na hora do café que ela levou a sério demais.
- Não, para ela estar daquele jeito deve ter acontecido algo bem mais grave... Raramente eu vi a Naru-chan assim... - Comenta Mutsumi com um ar de preocupação.
- Mas não tive culpa!
- Não é isto que estou dizendo... Acho que a Naru está passando por uma crise emocional. Tentei conversar com ela no quarto para saber o que está acontecendo, mas ela não quis. Como sou amiga de vocês dois, vim te avisar o que está acontecendo... - Mutsumi conclui a sua narrativa.
Keitarô cora as faces de vergonha e sente uma vontade enorme de chorar.
Embora a Mutsumi fosse desligada, atrapalhada e ingênua das coisas do cotidiano, ela estava longe de ser uma idiota em assuntos do coração.
Foi ela que o avisara quando Shinobu havia ficado deprimida quando havia tirado zero numa prova preparatória para o vestibular, achando com isto que não conseguiria sair com ele para o Festival de Tanabata, há meses atrás.
E também fora a jovem de Okinawa quem percebera que - apesar de toda as aparências indicarem o contrário - Naru continuava gostando do Keitarô mesmo quando ele havia abertamente declarado o seu amor por ela.
- Mu-Mutsumi... - Keitarô vira o seu rosto para que Mutsumi não perceba as suas lágrimas.
- Keitarô... - Mutsumi estende a sua mão direita no ombro do rapaz.
- Perdoe-me! Eu não mereço sua amizade e de ninguém! Eu sou uma besta humana! - Keitarô cai de joelhos ao chão e começa a chorar convulsivamente, aos soluços.
- O que foi? Você não pode ficar se sentindo culpado assim, Keitarô!
- E-eu tenho medo... Medo de perder a sua confiança, a de Narusegawa e de todo o pessoal... N-ninguém mais vai gostar de mim! Ninguém... - Chora ele com a cabeça apoiada nos braços.
- Todo mundo aqui gosta de você. Porque você está pensando tão negativamente assim?
- M-meus sentimentos... Tenho medo deles... G-gosto da Naru, Mas... Mas... Tenho medo de a-acabar g-gostando de o-outra pess... - Keitarô responde com dificuldade, forçando a respiração.
- Keitarô... É normal um jovem acabar gostando de outras pessoas na vida. Não é porque a gente ficou tanto tempo sem namorar que vai ser isto para sempre...
- M-mas eu ainda gosto da Naru! - Ao falar isto, ele sente sua convicção começar a fraquejar.
- Não duvido dos seus sentimentos com a Naru-chan, mas não tente ser rígido consigo mesmo... Você sabe muito bem que há outras pessoas que gostam muito de você!
Mutsumi pensou que Keitarô estava se sentindo confuso com relação entre ele e outra garota da pensão, como Motoko ou mesmo Shinobu. Jamais lhe passara pela cabeça que o seu amigo de infância tivesse conhecido outra garota.
- Não! Não é verdade. Só a Narusegawa gosta de mim!... - Keitarô tenta se convencer desta afirmação embora soubesse que era mentira.
- Lembra daquele dia que avisei você e a Naru que a Shinobu estava pensando em viajar sozinha em pleno festival de Tanabata?... Eu percebi o quanto esta menina gosta de você... - Mutsumi fita o rosto de seu antigo amor com compreensão.
- M-mas a Shinobu-chan é diferente!... E-eu g-gosto dela, como se fosse minha irmã mais nova!
- Aquela amiga da Naru-chan... a Konno-San, embora diga todas aquelas coisas quando bebe sakê, mas acho que tem um fundo de verdade... Embora pareça liberal e dona de si, ela no fundo é uma garota carente. Se Naru-chan não tomar cuidado...
- A Kitsune tem cabelos curtos! E depois a gente tem pouco a ver! - Tenta desculpar-se ele, usando um argumento primário.
- Keitarô, já reparou como a Aoyama-San fica diferente quando te olha? Ela não pode falar nada abertamente, mas senti que vocês estão se dando melhor depois daquela viagem para Kyoto... Até ela começou a ter ciúmes... Hihihi - Sorri a jovem de Okinawa.
- Não diga bobagens! Nós... E-eu fiz aquilo para ela sentir-se melhor... A Motoko-chan precisava muito de ajuda! - Keitarô parece ignorar deliberadamente as evidências do que aconteceu com Motoko após aquele episódio.
- Sem falar na Su-Chan... Percebi que para ela você é tão ou até mais importante do que o irmão mais velho dela... Ela pôde suportar a ausência dele quando partiu de sua terra natal para o Japão, mas não quis que você fosse embora da pensão sem mais sem menos...
- M-mas a Su-chan é uma criança! Ela nunca namorou ninguém antes! - Contesta o rapaz tentando omitir os detalhes de sua recente saída com a garota estrangeira quando esta ficou deprimida.
- Será? Hihihi... Ela cresceu um bocado... Sem falar que as meninas disseram-me que quando a lua fica avermelhada...
- Por favor, Mutsumi, pare! Não quero mais ouvir... - Irrita-se Keitarô. Nunca ele tinha ficado bravo assim com a sua amiga de infância.
- E mesmo se você casar-se com a Naru-chan ou outra menina, e eu com outro rapaz, desejarei sempre a felicidade de ambos. Você foi o meu primeiro amor e desejo que sempre seja feliz!
Neste instante, abalado pelo peso das revelações de Mutsumi e pelo sentimento de confusão e culpa em sua mente, Keitarô continua a chorar convulsivamente, sem se importar com nada.
Comovida, a Mutsumi o ampara deixando que ele chore com a cabeça apoiada em seu colo, enquanto Tama-chan assiste a tudo com uma expressão de perplexidade e pena.
Se alguém entrasse naquele momento, os dois se veriam em maus lençóis. Para a sorte de ambos, os membros mais indiscretos da pensão Hinata estavam ocupados demais para atrapalharem aquele momento.
Após vários minutos, Keitarô parecia se acalmar, embora seus olhos estivessem vermelhos e ardendo de tanto chorar.
O colo de Mutsumi estava encharcado de lágrimas, mas ela permanecia serena, procurando compreender a tormenta que se passava na mente de seu primeiro amor e melhor amigo.
- Mu-Mutsumi, Por favor, deixe-me! Eu não mereço sua ajuda... E de ninguém!
- Keitarô, não fique deste jeito. Nem todo mundo acaba se casando com o primeiro amor que encontra na vida. Eu mesmo conheci gente que se casou somente depois de ter namorado várias vezes...
- Mas, eu amo a Narusegawa! Não é certo gostar de outra pessoa! Não é justo!
- Quanto ao seu sentimento pela Naru, ninguém está duvidando.
- Só que não quero ficar como o Professor Seta!
- Como assim, o Seta-san?
- Quando tinha a minha idade, ele acabou se apaixonando ao mesmo tempo com a minha tia Haruka e a mãe da Sarah! E ficou nesta indecisão por muito tempo! Se acontecer a mesma coisa comigo, não poderei suportar! Não posso agüentar viver mais de nove anos sem ser correspondido como o Seta-san ficou! - Neste ponto Keitarô para de chorar e começa a ficar indignado consigo mesmo.
- Não fique imaginando coisas que ainda não aconteceram! Ninguém disse que o seu futuro vai ser idêntico ao do Seta-Sensei. Só o Bom Deus sabe do nosso futuro.
- M-mas Mutsumi, como posso fazer? O que me resta? - Responde ele com um tom de desespero sombrio em sua voz.
- Kei-kun, se o seu amor pela Naru for forte e sincero, ele sobreviverá a toda tormenta, a toda contrariedade. Dê tempo ao tempo e não se deixe abalar por qualquer coisa...
- O, o que faria se você fosse minha namorada?
- Olha. Eu só renunciaria ao meu amor e deixaria esta decisão nas mãos de Deus se sentisse que a pessoa que você ama fosse melhor do que eu. Do contrário, eu não procuraria julgar você ou os fatos, mas daria o melhor de si para reconquistar o seu coração...
- M-mas por quê?
- O Amor, quando é verdadeiro e puro, supera tudo...
Apesar de todo o abatimento e medo que sentia na alma, Keitarô deixou um pouco de luz entrar nas trevas que abatiam o seu interior. Ele até estava tentando esboçar um tímido sorriso quando Mutsumi fecha os olhos e se aproxima dele.
Inesperadamente, ela lhe dá um beijo no rosto. Não um beijo motivado pela paixão mais instintiva ou pela luxúria, mas um ósculo de paz, fraternal.
- M-mutsumi, não mereço... - O jovem de óculos mal acredita no que aconteceu.
- Kei-kun, todos nós precisamos de paz interior e de perdão. Perdoe a si mesmo.
- V-você me perdoaria, se fosse minha namorada? - Keitarô teme a resposta negativa vinda de Otohime.
- É claro que sim!
- M-mas, eu sinto que a Naru... - Ele ainda não estava totalmente convencido.
- Não se preocupe, não pense que ela é tão durona assim... Dê chance ao Amor, e tudo ficará claro. Não se prenda ao passado ou a qualquer coisa, mas procure viver o seu presente da melhor maneira possível.
Keitarô e Mutsumi olham se um ao outro uma outra vez. Ele sente pela primeira vez que sua ex-namoradinha da infância e companheira de vestibular não era tão desajeitada e simplista quanto se imaginava. Mutsumi carregava dentro de si não somente uma bondade natural e um desprendimento da alma - raro nestes tempos materialistas - como também uma forte dose de compreensão e compaixão pelos sentimentos alheios.
Sem se importar com o tempo ou com o que os outros iriam dizer, Mutsumi se aproxima e beija ternamente Keitarô uma, duas, três vezes, abraçando-o com muito carinho. Ele está cansado e carente demais para tentar impedir isto. Mas está admirado pela demonstração de confiança e - por que não dizer - da jovem de cabelos castanho-escuros que adorava dele tanto quanto gostava de melancia e de kotatsus.
Sem dizer palavra, Keitarô corresponde aos abraços e acaricia os longos cabelos e as costas de Otohime. Somente a pequena Tama é testemunha do acontecimento.
Escrito por:
Calerom
myamauchi1969@yahoo.com.br
