CAPÍTULO 30:

O Outro Lado de Eldrick

Ao chegarem na estalagem do Velho Joe, Yuri e as meninas notam a aglomeração dos pedestres por onde passavam. Embora a missão que pegaram fosse sigilosa, estava na cara que a chegada do grupo à cidadezinha não passara despercebida aos olhos dos cidadãos comuns - ainda mais na companhia do mestre de caravanas Greg e de seus homens, dados como desaparecidos. Seria uma questão de horas até a notícia chegar ao ouvido de Khazar ou de algum de seus asseclas, ela pensava.

- Quero comida! Quero comidaaaa! - Gritava escandalosamente Kaolla a plenos pulmões. Embora ela tivesse comido alguma coisa quando estava com os homens do oficial Jake, a pequena inventora estrangeira ainda sentia muita fome, com o seu estômago de avestruz.

- Su-chan, comporte-se! Não estamos na Pensão Hinata! O que os outros vão achar do seu comportamento? - Adverte Motoko, que embora estivesse fisicamente esgotada, mantinha o seu espírito de samurai.

- Ah, Motoko, eu ainda estou na fase de crescimento! - Protesta a jovem estrangeira, sentindo a sua barriga roncar incessantemente.

- Se você crescesse na mesma proporção de sua gulodice, Kaolla, você estaria maior do que o Godzilla! - Comenta Sarah, passando sua mãozinha nos cabelos loiros da aloprada inventora.

- Ah, baixinha! Nem me fale! - Kaolla faz um biquinho de criança embirrada à sua amiga californiana.

- Eheheh, Esta Kaolla... - Sorri Sarah, com um ar sapeca.

- Ei, Yuri, quem era aquele cara boa pinta e o gordinho que nos socorreram dos cavaleiros orcs? - Pergunta Kitsune, com um ar sorridente e visivelmente pensando em segundas intenções.

- Ah, Mitsune, você se refere ao Jake e o Sammy? - A aventureira loira sorri e parece ter entendido a mensagem da sua colega - que, como ela - tinha os cabelos cortados bem curtos, apesar dos respectivos penteados serem um pouco diferentes.

- Sim. Eles mesmos. Você já os conhecia? - Pergunta Kitsune enquanto Naru, Keitarô, Mutsumi, Tama e Shinobu começam a prestar atenção na conversa. Motoko fica na dela, como era de seu feitio, e as duas meninas ficam fazendo gracinhas entre si.

- Beem... Conheci os rapazes quando entrei na faculdade, há uns três anos atrás. Logo, a gente fez amizade e nos enturmamos bem. - Diz Yuri esboçando um ar ligeiramente pensativo.

- Como que eles são? - Pergunta Naru, com semblante sério e desconfiado, receando que eles fossem as versões americanizadas dos amigos de Keitarô, os famigerados Haitani e Shirai.

- Bem, o Sammy é um pouco medroso, bem tímido e acanhado com as garotas. Mas ele é uma excelente pessoa: inteligente, bem-educado e prestativo. Ele gosta muito de comics, RPG, filmes "cabeça" e computadores... - Responde a jovem americana, sem hesitar.

Sarah fica com um ar de quem estivesse pensando: "mas que babaca!", enquanto Kitsune dá uma de suas piscadas com o olho direito.

- E o Jake? - Pergunta Kitsune, ao mesmo tempo que dava um tapinha nas costas de Yuri dando a entender que ele não era de se jogar fora, na sua opinião feminina.

- Ele é quase o oposto do Sammy: É falador, extrovertido, faz amizade com todo mundo e tem fama de conquistador. Ele adora viajar a lugares exóticos, gosta de esportes radicais, arcades, e artes marciais. - Comente Yuri enquanto Keitarô fica de queixo caído, sentindo-se um zero à esquerda perante as qualidades do "amigo" da loira. Os olhos da Naru parecem reluzir de admiração ao ouvir isto.

- Eles me parecem ser amigos de longa data... - Murmura a jovem Mutsumi, enquanto limpa o suor que escorre da testa com a ponta dos dedos.

- Um dia, o Jake me contou que ele conheceu o Sammy ainda quando faziam o primário. Foi o seguinte: Ele estava voltando da escola e viu o coitado apanhando de uns garotos mais velhos que não foram com a cara dele. O Jake resolveu entrar em ação e botou os valentões para correr. A partir daí, o Sammy ficou colega dele e ambos começaram a entrosar-se bem. - Somente ao comentar isto, a ranger loira percebe que Motoko ficou subitamente interessada na conversa.

- Mas, não tem algo a mais entre a dupla "O Gordo e o Magro", não? - Pergunta Kitsune, com ambos os olhos fechados e sorrindo maliciosamente, como costumava fazer.

- Hehe, Fica fria. Ambos adoram um bom rabo de saia. Só não posso garantir o que o Sammy faz quando navegava na internet - Diz Yuri, entrando na onda da jovem vinda de Osaka.

- Rabo de saia? Aiiiiii! - Exclama Shinobu, escandalizada.

- Esta Shinobu... - Fala bem baixinho Sarah, achando graça nas reações da jovem ginasial de cabelos curtos.

- Hummm... O tal do Sammy até que não é de se jogar fora, mas nada de espetacular. Já o Jake... é um gostosão! - Comenta Kitsune, enquanto parece arquitetar mais um de seus planos "infalíveis" com a sua esperteza.

- Kitsune! Não diga este tipo de coisa na frente da Yuri-san! - Naru protesta, começando a pressentir que o papo estava começando a ficar "adulto" demais para o gosto dela.

- Ah, Naru, não posso dar mais as minhas opiniões sobre aquele carinha? Pensar não é crime! Eu sou solteira, livre, desimpedida, bonita e disponível! - Diz a jovem Konno, com ar ligeiramente convencido.

- Hihihi, esta Kitsune... - Sorri Mutsumi, achando graça na reação de espanto por parte da sua velha amiga de infância, de Keitarô e da pequena Shinobu.

- Mew! - Exclama Tama-chan, saindo do chapéu de sua antiga dona, enquanto Motoko instintivamente vira o rosto para o lado oposto. Apesar do longo tempo de convivência com a mascote da Mutsumi, a garota samurai ainda não havia se acostumado com a pequena tartaruga de águas termais.

- Eh... Mitsune, sabe que até não é uma má idéia? Se você encontrar com o Jake, vai fundo, amiga! E espero que... - Comenta Yuri, entusiasmada, aparentemente não sentindo ciúmes.

- Ei, espere aí, Yuri. Pelo que você conhece dele, ele não tem nenhuma neura ou tara secreta, certo? - Pergunta Naru, desconfiada, se bem que o seu comentário tinha sido uma indireta para o Keitarô e suas "perversões" costumeiras.

- Não. - Responde a loira com a maior simplicidade do mundo.

- Ele não vive soltando "pum" quando dorme, certo? - Indaga a jovem Mac Dougal, no seu estilo "pestinha".

- Que eu saiba, não.

- E aquele tal do Jake é hetero ou nas horas vagas dá uma de rapaz alegre? - Malicia Kaolla, para desespero da pequena Shinobu.

- Até onde conheço dele, ele sempre foi chegado em garotas mesmo. - Explica Yuri, fazendo força para não achar graça diante da reação da pequena Su-chan.

- E qual é o problema? - É a vez de Kitsune perguntar, intrigada com o jeito vago e enigmático que Yuri fazia ao dar as respostas.

- Bem, o Jake é um cara legal, encantador e com muito bom papo, só que às vezes... ele é um bocado irresponsável. Vive aprontando confusão por onde ele passa. A pessoa que ficar com ele tem que ser muito paciente e não alimentar ciúmes por bobagens. - Comenta a misteriosa ranger sem demonstrar desconfiança da garota-raposa.

- Hum... Nada que o meu charme feminino não possa superar. - Diz a jovem Mitsune Konno, toda autoconfiante.

- Bem, desejo-lhe sorte em suas futuras conquistas, Mitsune. - Responde Yuri, como sempre, tratando Kitsune pelo seu nome verdadeiro.

- Ué, como você sabe de todas estas coisas do cara, Yuri? - Pergunta Sarah, observadora como sempre.

- Fui a ex-namorada dele. Nós terminamos, após uma viagem meio desastrada ao Caribe, mas numa boa. Eu e Jake continuamos amigos, e foi só por uma pena que perdi contato com ele e o Sammy há um ano e meio atrás. - Responde a aventureira, enquanto metade do pessoal fica de queixo caído com a revelação, embora fosse óbvia para a Kitsune.

- Mas... - Intervém Naru, toda preocupada, pensando que as atitudes inconseqüentes da sua velha amiga Kitsune tivessem machucado os sentimentos de Yuri.

- Não. O que já passou, passou. Não sou de alimentar ressentimentos. Como diz aquele velho ditado, estou vivendo o primeiro dia do resto de nossas vidas. - Responde a loira, dando de ombros.

- Hummm... Até que aquela dupla de seus amigos é legal. Eles me lembram os meus amigos Haitani e Shirai, dos tempos do colégio. - Comenta Keitarô, entrando de gaiato na conversa.

- Haitani e Shirai? - Estranha Yuri, já que ninguém havia falado destes nomes para ela.

- Hah! São os amigos otários do Keitarô! Os únicos que ele arranjou em sua pobre vida até agora! - Explica Sarah, com o seu estilo irônico e traquinas como sempre.

- Cuidado com eles caso você encontre-os, Yuri-San. Eles são tão perigosos como o Urashima. - Adverte Motoko, com a expressão mais séria do que o normal.

- E como eles são? - Indaga a ranger loira, com a curiosidade atiçada.

- O Haitani é um magrelão de cabelos castanhos, alto, metido a boyzinho que vive dando uma de gostosão na frente das meninas. Só que nunca dá certo no que faz. - Comenta Kitsune.

- E o Shirai é um baixinho, gordinho com cara de otaku fanático e é fissurado por anime, além de ser outra negação com as garotas. - Complementa Naru.

- Ei... Não é b-bem a-assim... - Keitarô tenta defender os amigos, mas ninguém lhe presta atenção.

- Juntos com o Keitarô Urashima - o taradão papa-anjo - eles formam o famigerado trio de óculos! Os últimos nerds virgens de Tóquio e arredores! - Exulta a estrangeira Kaolla Su, falando e fazendo gestos como se fosse uma locutora de programa de auditório.

- Kaolla! Não fale deste jeito do Sempai! - A pobre e recatada Shinobu, como sempre, fica ruborizada ao extremo, quase a ponto de chorar.

- Nya-ah-ah-ah! Eu fiz a Shinomu ficar vermelha! - Ri Kaolla, saltitando pelas ruas como se fosse uma gazela, com a sua agilidade espantosa.

Yuri e o pessoal retornam aos seus respectivos quartos na estalagem do velho Joe. Sarah, Shinobu, Kaolla e Motoko vão no quarto aonde pernoitaram pela primeira vez enquanto as garotas mais velhas entram no alojamento contíguo. Como sempre, para o Keitarô acaba sobrando o pior quarto individual da hospedaria.

A pedido das meninas, os empregados enchem quatro tinas de banho com água morna e trazem um vasto sortimento de sabão, potes com sais de banho, escovas, panos de diversos tamanhos e toalhas.

Embora não tivessem ficado longe mais do que quatro dias, parecia uma eternidade que a turma não tomava banho. Todos estavam sujos, empoeirados e cheirando mal, além de sentirem dores pelo corpo inteiro.

Todo o esgotamento físico provocado pelos acontecimentos do último dia começa a ceder à medida que os efeitos do banho aliviam as dores musculares e o cansaço, substituindo-os por uma sensação de prazer e bem-estar.

No quarto das garotas mais novas, Sarah e Kaolla brincavam de fazer espuma na enorme tina de madeira , enquanto Shinobu e Motoko ajudavam-se mutuamente na tarefa de ensaboar e limpar seus corpos cansados da poeira, do suor, dos efeitos da batalha e do desconforto da fuga.

Em outro quarto, Mutsumi dava banho na pequena Tama numa bacia, enquanto Naru era a primeira a entrar na tina - procurando tirar a poeira acumulada e aquela horrível sensação dos ungüentos que ela foi obrigada a usar naquele monstruoso casamento com o líder orc Grommir.

Apesar de sentir falta das termas onsen da pensão Hinata, ela não se queixava. Nada como um delicioso banho - ainda que rústico - após conhecer os rigores da vida de aventureira. Ela nunca ia se esquecer da experiência de fazer a higiene pessoal completa - usando apenas uma toalhinha e meio litro de água naqueles dias em que vagaram pelo deserto.

Desacostumada com tais rigores, Narusegawa estava até com vergonha de se aproximar de Keitarô e mesmo das outras meninas, após a sua fuga, por estar se sentindo suja e imunda.

Mas o banho gostoso acrescido dos sais medicinais, fazia com que suas forças voltassem, voltando a ser a bela Naru de sempre.

Enquanto isto, Kitsune e Yuri - cobertas apenas por toalhas - aguardavam a sua vez. A esperta barda dançarina conseguiu usar mais uma vez a sua lábia para passar a conversa no dono da estalagem, surrupiando uma garrafa inteira de licor de frutas da despensa, junto com alguns copos.

Nada como um pouco de bebida para esquecer os apuros recentes e aliviar a sua mente, pensava ela. Como não estava mais em missão e sem se importar muito com o que a Narusegawa, Kitsune tomava uns tragos da bebida - forte e adocicada - junto com a americana, que não era tão durona quanto imaginava.

Mais uma vez, o pobre Keitarô foi contemplado com o azar. Ele continuava no mesmo quarto que compartilhara com Yuri pela primeira vez, só que desta vez sem companhia.

Ele só percebeu que o pessoal havia esquecido dele quando reparou que a tina estava sem água e não havia sinal de toalhas e nem de sabão para ele tomar banho. Para piorar, todas as suas roupas que usara estavam sujas - ou melhor, imundas - e precisavam de uma sessão bem caprichada na lavanderia da estalagem. Somente as vestes que Yuri havia lhe emprestado da primeira vez e que ficaram no quarto estavam aproveitáveis.

Keitarô pensou em chamar algum dos empregados da estalagem para encherem a tina, mas eles estavam ocupados atendendo outros clientes recém-chegados.

Pensando em como iria resolver as coisas, ele desistiu de pedir sabão emprestado no quarto das garotas. Decerto elas estariam tomando banho e ai dele se abrisse a porta do quarto, pensava o estudante da Universidade de Tokyo.

Embora estivesse satisfeito por ter voltado às boas com a sua amada Narusegawa e a missão na terra dos Orcs ter sido um sucesso, o tímido adolescente ainda se sentia sozinho, carente e frustrado consigo mesmo.

Sentia vontade de conversar com as outras meninas, mas com Naru e Yuri disputando a sua atenção, isto seria muito difícil. As duas monopolizavam o seu tempo livre e eram bem possessivas - cada uma a seu modo.

Reprimindo um suspiro de puro desânimo, Keitarô começa a abrir lentamente sua mochila e descarregar as suas coisas, ao mesmo tempo em que deixa os seus óculos, que estavam sujos e com as lentes empoeiradas, numa mesinha.

Quando ele abriu a janela do seu quarto a fim de arejar o ambiente, ele vê uma cena dramática.

Dois soldados estavam empurrando e espancando um dos homens de Greg - o jovem chamado Theleus - que estava levando os cavalos usados na fuga para o estábulo do quartel da guarda. Enquanto isto, outros dois guerreiros vigiavam os animais.

E pelo visto, aqueles mercenários deviam ser bastante maus pela forma bárbara com que davam socos, chutes, pontapés e riam do sofrimento do coitado.

Nenhum dos poucos transeuntes na rua se preocupava em intervir, pois certamente sobrariam para eles.

Sem pensar nas conseqüências, Keitarô apanha o seu cajado e desce correndo, esquecendo-se momentaneamente do sono, das dores e do esgotamento. Não havia tempo para pensar nisto. Se ele demorasse, aquele pobre homem corria o risco de virar paçoca humana.

- Não, por favor! Não me mat... ughhhh! - Diz Theleus, enquanto é interrompido por um murro que ocasiona a perda de alguns dentes.

- Pela última vez, seu ladrãozinho de meia tigela, você vai explicar onde roubou estes cavalos ou não viverá o bastante para se vangloriar de sua façanha. - Diz um dos soldados, forte e musculoso, erguendo o franzino jovem pelo colarinho.

- É isto aí! Estes cavalos pertencem ao Barão de Khazar, cara! - Grita outro soldado, sorrindo maldosamente.

- Ei! Parem com isto e venham pegar as carroças e os animais antes que os guardas do trouxa do Eldrick cheguem! - Diz o terceiro mercenário, que pelo jeito deveria ser superior daqueles dois, tanto pelo tipo de sua armadura, como pelas armas que trazia.

- Calma aí, Drasius, a gente estava precisando exercitar nossos punhos na cara deste babaca! - Responde o agressor de Theleus, um homem chamado Bruk, que era alto, muito musculoso e com uma enorme cicatriz na face esquerda.

- É isto aí, Bruk. Vamos dar um serviço completo neste trou... - Dizia Marek, outro dos mercenários, especialista em arremessos de faca e conhecido por seu sadismo.

- Parem! Larguem este inocente! - Grita Keitarô - mal acabando de sair da entrada da estalagem - apontando o seu cajado. Nem ele sabia de onde arranjou tanta coragem.

- O quê, um fedelho raquítico? Quem é você para me dar ordens? - Como era de se esperar, Drasius não fica nem um pouco impressionado com a reação de Keitarô, enquanto seus subordinados caem na risada pela inusitada ousadia do aparvalhado estudante.

- S-senhor... (cof) me ajude... eu... - Theleus estava completamente irreconhecível, e a cada tossida, expelia sangue de sua boca. Nem quando estivera cativo dos orcs apanhara tanto como naquela tarde.

- Veja só! O galinho está pensando em desafiar os falcões! Ahahah! - Debocha Bruk, reparando que o seu oponente não era nem um pouco forte.

- Ei, pivete! Você por acaso é amigo deste ladrão de cavalos? Pois saiba que isto é o que acontece com quem desafia o Barão de Khazar! - Responde Drasius de forma desdenhosa. Os seus comandados instintivamente levam suas mãos às armas que carregava.

- Pois eu digo que o seu patrão é um bolo fofo nojento e ele vai pagar pelas maldades que fez até hoje! - Embora Keitarô fosse medroso por natureza e detestasse brigar, ele não podia deixar aquele homem ser morto. A verdade é que ele se importava mais com os outros do que consigo mesmo.

- O quê!? Bruk, Marek, Zinn! Peguem este pivete e vamos mostrar a ele quem vai virar bolo fofo! - Diz o oficial de nome Drasius, completamente furioso.

O mais adiantado dos mercenários - Bruk - faz um gesto de quem não iria precisar de ajuda para trucidar o jovem desconhecido. Ele saca um porrete da cintura e, com um grito selvagem, avança contra Keitarô - imaginando ser um alvo fácil.

O jovem Urashima espera até o último momento. Pensando na Narusegawa para buscar a coragem e sangue-frio que ele demonstrara uma vez nas ilhas Pararacelso - ao matar um escorpião que estava prestes a picar sua amada - ele se esquiva e com a ponta do bastão, ele desequilibra Bruk que cai de barriga no chão.

O golpe não saiu muito forte, mas pegou o brutamontes com a guarda aberta, pois ele havia claramente subestimado o seu fraco oponente. Os demais mercenários ficam estupefatos, pois Bruk era um soldado muito forte, sendo ele capaz de quebrar o pescoço de um javali apenas com as mãos.

Antes que Bruk consiga-se levantar, Keitarô dá uma rápida estocada com o bastão nas costas e na parte de trás das pernas do mercenário, que geme de dor.

Aproveitando a confusão, o auxiliar de Greg tenta escapar dos bandidos, se levantando do chão. O traiçoeiro mercenário de nome Marek percebe com o canto dos olhos e se prepara para atirar um punhal às suas costas.

Keitarô intervém rapidamente, atirando o seu cajado em Marek de forma violenta, sem hesitar. A ponta do cajado atinge o pescoço do malfeitor e ele cai ao chão.

O infeliz Theleus encontra forças no seu desespero para correr até em direção ao QG de Eldrick, onde estaria seguro.

Keitarô observa a fuga do caravaneiro e sente que conseguiu o que queria, distrair aqueles mercenários o tempo suficiente para que Theleus pudesse escapar. Só que agora o jovem estudante está desarmado e pronto para encarar a fúria de Bruk e seus amigos.

- Você me paga, pivete! Hoje você vai morrer! - Bruk saca sua espada longa e avança lentamente em direção a Keitarô, fitando-o com um olhar de puro ódio pela humilhação que sofreu. Marek sorri sadicamente, imaginando o massacre que teria início.

- Naru... - Keitarô suspira, sabendo que qualquer resistência é inútil. Ele podia gritar, correr ou soltar rios de lágrimas, como costumava acontecer há dois anos atrás. Contudo, as aventuras que ele vivera e a influência da misteriosa Yuri fez despertar algo desconhecido em seu coração. Só que ele não iria viver o suficiente para usufruir disto.

Apesar disto, o golpe de Bruk jamais iria atingi-lo. Uma onda de choque invisível afasta de forma violenta o Brutamontes - que tinha um metro e oitenta e cinco centímetros e quase noventa quilos de puro músculo - fazendo-o colidir com um barril de água no outro extremo da rua, assustando os presentes.

No instante seguinte, o mercenário estava inconsciente, com passarinhos cantando ao redor de sua cabeça.

Os demais amigos do soldado sacam as suas armas e o líder Drasius vê a figura de uma guerreira empunhando uma espada katana e de uma jovem clériga com um cajado saindo da estalagem.

- Motoko-chan! Shinobu-chan! - Exclama com alívio o desarmado aventureiro ao reconhecer suas salvadoras.

- Sempai, você está bem? Eles te machucaram? - Shinobu se adianta e ampara Keitarô, fitando-o com ternura e preocupação.

- Urashima, seu idiota! O que estava fazendo? Bancando o herói? - Censura asperamente Motoko, ao perceber a superioridade numérica dos agressores. Por sorte, as duas estavam na janela do quarto naquele instante, e presenciaram o incidente.

- O quê? Bruk foi derrotado por estas duas barangas? Homens! Vamos acabar com elas! - Grita Drasius, percebendo que a situação estava começando a sair do controle.

- Esperem! Antes que vocês façam algo tolo, saibam que usei apenas dez por cento do meu poder. - Diz Motoko de forma calma mas firme, fitando nos olhos do líder dos capangas de Khazar.

- Você está blefando, sua bruxa branquela! Acho que a sua sorte acabou! - responde Drasius, não se intimidando com a expressão da garota samurai.

Marek saca sua adaga - envenenada - e atira-a contra Motoko com uma rapidez incrível. A jovem Shinobu intervém, invocando sua magia "Protect Barrier", a mesma que usara na luta contra os orcs.

A adaga se choca contra a barreira mágica, caindo ao chão de forma inofensiva.

- O quê? Quero ver se engole isto! - Marek, mal refeito da surpresa, atira três adagas de seus bolsos ocultos, em rápida sucessão.

Antes que Shinobu reaja novamente, Motoko se adianta e soltando um Kiai poderoso, ela movimenta a sua espada Shisui uma, duas, três vezes, em uma fração de segundo, voltando a embainhar a espada no final da sequência. Keitarô fica pasmo ao ver tamanha demonstração de poder.

No instante seguinte, as três adagas caem inertes no chão da rua, todas com as lâminas cortadas pela poderosa técnica do estilo Shinmei.

Fulo de raiva, Marek solta um grito selvagem e avança contra Motoko, sacando sua espada longa. A samurai não sai do local onde estava, apenas colocando a sua mão direita no cabo da espada, pronto para usar o battoujutsu, a técnica do saque da espada. As lâminas se chocam com um estalido violento.

No instante seguinte, Marek olha horrorizado para o cabo de sua espada - sem a lâmina, que foi totalmente partida. Motoko poderia tranqüilamente tê-lo matado, mas ela preferiu mostrar que o mercenário não era páreo para seu estilo de luta milenar.

- Merda! Isto não irá ficar assim. - Drasius, o líder dos mercenários, saca uma besta de combate e arma um projétil capaz de perfurar um capacete de ferro a mais de cem metros de distância.

Contudo, antes ele que pense em disparar contra um dos três desconhecidos, o arrogante mercenário percebe pelo seu instinto de guerreiro que alguém mais está mirando nele. Após uma rápida olhada para o telhado de um dos prédios, ele larga a arma, num gesto de rendição e impotência.

- Não tente nada, tio! Você e seus amigos estão em nossa mira! - Exclama uma exuberante jovem de cabelos loiros e pele morena.

- É isto aí, agente Kaolla! Game over para vocês, seus marmanjos! - Grita outra jovem de pele branca e com duas tranças nos cabelos.

Tanto Kaolla como Sarah estavam armadas com armas de longa distância: A jovem de origem desconhecida estava com um lança-granadas medieval e americana estava com a sua funda de arremesso pronta para atirar um projétil de chumbo.

Devido ao barulho, outras pessoas que estavam na estalagem correm para as janelas. Em instantes, Yuri e Naru aparecem na rua para ver o que estava acontecendo. Ao reconhecer os homens de Khazar e ver os cavalos agrupados na rua, a esperta ranger percebe o real motivo que tinha causado aquela briga.

- Venha, Keitarô. Agora está tudo acabado. - Fala calmamente Yuri, ao perceber que ele e as duas garotas estavam bem.

- Por que vocês atacaram aquele pobre homem? Qual foi o motivo? - Indigna-se Narusegawa.

- Hah! E ainda perguntam? Aquele ladrãozinho estava roubando os cavalos e as carroças do Barão de Khazar, nosso mestre! Como ele não queria dizer da onde pegou os animais, a gente resolveu aplicar-lhe um corretivo para ele deixar de ser folgado. - Replica o mercenário chamado Zinn, um tipo careca e de olhar sombrio.

- É isto aí. Todos os cavalos do Barão são marcados a ferro com o seu emblema e há um distintivo na parte traseira das carroças! E está na cara que ele roubou! - Grita Marek.

- Mas isto não é motivo para espancar um homem desarmado de forma bárbara! - Protesta Motoko.

- Hah! Não me venha dar lições de moral, dona. Quem manda aqui na cidade é o Barão de Khazar e nós somos os executores da justiça dele! - Responde o vilão Marek, com um sorriso sarcástico.

- E que justiça é esta que permite atirar uma adaga pelas costas? - Fala Motoko.

- Sua vag... - Rosna Drasius, furioso por ter sido contrariado por uma garota de menos de 18 anos de idade.

- Se eu fosse vocês, não faria isto. - Diz uma voz serena, mas com autoridade, acompanhada pelo ruído de marcha de um pelotão de lanceiros.

- Eldrick! - Exclama Drasius, lançando um olhar de incredulidade e raiva.

- Eldrick? - Exclamam Keitarô e as meninas, surpresos pela inesperada aparição do condestável.

- Exato. Por favor, os cidadãos que não estão envolvidos nesta briga, podem voltar às suas casas. - Continua o responsável pela ordem e justiça de Smallville, dando um sinal para os curiosos e populares se retirarem.

- Milorde, e-eu, fiz o que você pediu, mas apareceram estes h-homens e queriam pegar os a-animais de volta! - Responde Theleus com certa dificuldade, devido aos seus dentes quebrados.

- Cale-se cão! Foi muita sorte estes babacas não terem aparecido para te proteger, pois você a esta hora não estaria com nenhum dente a mais! - Vocifera Drasius, vendo que a sua sorte havia acabado.

- O que tem a dizer, oficial Drasius? - Indaga Eldrick com serenidade, o que faz irritar ainda mais o guerreiro mercenário a soldo de Khazar.

- O caso é o seguinte, Eldrick! Nós pegamos este cretino com os animais do milorde Khazar. E como ele se recusava a falar onde os encontrou, resolvemos dar-lhe uma lição! - Grita Drasius, olhando de forma arrogante.

- Sim. Temos testemunhas. Como ele não quis falar nada, nós resolvemos dar uma lição para amolecer sua língua! - Diz Bruk. Keitarô tenta protestar, mas é impedido pela Yuri que faz um gesto para ele ficar em silêncio.

- E depois estes aventureiros metidos nos atacaram sem motivo, começando por este garoto idiota! - Complementa Marek.

- É mentira, oficial! Nós apenas nos defendemos em legítima defesa para proteger Keitarô e este inocente! - Fala Motoko, mal se controlando para não espancar aquele homenzinho traiçoeiro e desprezível que tentou matá-la a poucos instantes.

- Cale a boca, sua...! - Responde Marek, mas é impedido de prosseguir pelo enigmático Zinn.

- Fui eu que ordenei a Theleus recolher os cavalos para o quartel da guarda e percebi que ele estava demorando. Eu deveria prendê-los por arruaça e abuso de poder. - Explica Eldrick, sem deixar de tirar os olhos no oficial Drasius.

- O quê? Oficial, você foi o mandante disto? - A expressão de auto-confiança arrogante de Drasius se desfaz e a sua cor passa de um pálido para um vermelho irado.

- Estes animais não foram roubados, mas sim encontrados vagando ao acaso por estes aventureiros e fora da terra do seu patrão. E ficarão sob a custódia da Casa da Guarda até que o Barão solicite formalmente a devolução dos mesmos, conforme a lei que trata de cargas perdidas. - Diz Eldrick, de maneira pausada, mas inequívoca.

- O quê? Não percebe que os cavalos têm a marca do baronato de Khazar, seu imbecil? - Exaspera-se Drasius, fuzilando Eldrick com um olhar cheio de ódio, como se os dois estivessem medindo forças.

- Isto mesmo! Esqueça esta maldita lei e entregue-os para a gente agora! - Grita Bruk, ainda inconformado por ter sido derrotado por um garoto desconhecido e raquítico, na sua opinião.

- Sim. Mas se vocês quisessem eles de volta, porque não foram até o quartel pedir para reavê-los? - Sorri ironicamente o condestável.

- O barão não deve satisfações a ninguém, seu oficialzinho de merda! - Protesta Marek.

- E ainda respondem com desacato a autoridade... Talvez uma noite na cadeia melhore o seu humor. - Diz Eldrick com senso de ironia.

- Cale-se! Se o nosso mestre souber disto, sua cabeça não valerá mais do que a daquele verme! - Esbraveja o enfurecido oficial de Khazar.

- Talvez. Mas a sua nunca valeu muita coisa mesmo...

Drasius fica enfurecido e sem pensar nas conseqüências, ataca repentinamente Eldrick com a sua espada.

Só que ele não esperava que o burocrático oficial bloqueasse agilmente o seu ataque. Os homens de Eldrick pensam em reagir, só que Yuri faz um sinal para não intervirem na luta. Por um instante, Bruk e os outros pensaram em partir para a briga, mas eles ainda estavam sob a mira de Kaolla e de Sarah.

O veterano oficial e o arrogante mercenário trocam vários golpes. Eldrick mantém-se calmo na defensiva, enquanto Drasius vai se enfurecendo cada vez mais e mais, descuidando-se da guarda. Num golpe de sorte, ele acerta de raspão que faz arrancar um filete de sangue na face de Eldrick.

O condestável sorri e em seguida começa a atacar de forma elegante, como um espadachim consumado. Aos poucos, Drasius vai ficando mais e mais na defensiva, até que é desarmado com um golpe preciso. A sua espada vai parar a mais de três metros de onde estava. E a mão direita do arrogante mercenário começa a latejar de pura dor.

- Agora, Drasius, retire os seus capangas e suma desta cidade, antes que eu mande prendê-lo por abuso de poder, desacato e agressão à autoridade. - Diz Eldrick com um tom imperioso, diferente da calma habitual.

- Vá pro diabo, Eldrick!

Abaixando-se rapidamente, Drasius recorre a um velho e manjado golpe. Ele joga um punhado de poeira no rosto de Eldrick, que fica momentaneamente sem visão. Em seguida - sacando a sua adaga - espera assassinar o condestável, antes que os outros reajam.

Só que antes que seus homens o protejam, Eldrick faz uma esquiva confiando em seu instinto e acerta o arrogante oficial, girando a sua espada. Drasius cai morto, em meio a uma poça de sangue, fazendo a impressionável Shinobu gritar de puro medo.

Os homens remanescentes de Drasius pensam em reagir, só que estão agora em inferioridade numérica e as lanças dos soldados de Eldrick eram um forte fator de dissuasão.

- Peguem o cadáver deste abutre e saiam fora da MINHA cidade! JÁ! - Grita Eldrick colocando a sua espada na bainha, enquanto um de seus homens traz um lenço para estancar o ligeiro corte que sofrera no lado direito do rosto.

- Mas e os cavalos perdidos? - Indaga Bruk, intimidado com a súbita derrota de seu superior. Zinn é o único a manter a calma, dentre os capangas.

- A lei existe para todas. Se quiserem tê-los de volta, que o barão os peça formalmente!

- Você vai pagar caro, Eldrick! Você e estes aventureiros intrometidos! Quando Khazar souber disto, ele vai querer comer o teu fígado! - Grita Marek, louco de ódio.

- Pois espero que ele faça um bom uso dele! Sugiro que temperem com bastante pimenta e limão! - Responde o condestável com um sorriso irônico, sem se importar com o ligeiro corte na face.

Os homens remanescentes de Drasius carregam o seu líder morto e colocam-no num dos cavalos. Em seguida, sem olhar para trás, eles se retiram da cidade a todo galope.

Keitarô, Naru, Motoko e as outras meninas olham estupefatas para a performance do oficial Eldrick. Elas achavam que aquele senhor de meia idade fosse um mero burocrata acomodado, mas se surpreenderam com sua perícia nas artes da espada e a forma como derrotara o experiente oficial de Khazar. Pelo visto, as aparências enganavam.

Somente Yuri sorri discreta, enquanto Naru ampara ternamente em seus braços uma assustada Shinobu, que estava a ponto de chorar, ao ver mais uma morte violenta em menos de 24 horas.

Do telhado, Kaolla e Sarah presenciaram a briga, mas não estavam nem um pouco apavoradas. Elas assistiram a tudo como se fosse uma briga de luta livre e até estavam torcendo pelo Eldrick.

Contudo, não havia tempo para comemorações. Theleus foi levado ao médico da cidade para ser medicado - Shinobu estava muito abalada para fazer isto - e Eldrick ordenou a seus soldados que as carroças e os cavalos pertencentes ao vingativo barão fossem recolhidas às cavalariças do quartel.

- Bem, pelo visto, vocês fizeram novos inimigos. - Diz o condestável ao se guardar a sua espada.

- Não pudemos evitar. Se não fizéssemos nada, aqueles covardes teriam matado o coitado. - Responde Keitarô de cabeça baixa.

- Mas Keitarô, o que você fez foi uma loucura! Enfrentar quatro capangas daquele barão nojento sozinho! Você teria morrido! - Diz Naru, zangada com o fato.

- Urashima, o que você fez foi um ato idiota! - Comenta Motoko enquanto dá um croque na cabeça do rapaz.

- E o que poderia fazer? Deixar o cara ser trucidado? - Embora habitualmente ele assimilasse as broncas sem questionar, Keitarô surpreende as meninas dando uma resposta contundente e incisiva.

- Mas você poderia pelo menos ter-nos avisado! - Exalta-se a jovem Narusegawa, tando um tapa na face direita do rapaz, embora um bom observador notasse que ele nem de longe se comparava aos socos que costumava dar no jovem Urashima.

- Era uma questão de vida ou morte! E depois ninguém estava para ajudar o infeliz. - Até Keitarô se surpreende pela resposta que havia dado. Afinal de contas, o que estava acontecendo com ele? No dia-a-dia da pensão, sempre ele tinha que assumir as culpas de tudo que acontecia de errado, mesmo se não fosse o responsável.

- Mas... Mas... - Se estivessem sozinhos, Naru iria falar umas verdades para o Keitarô, só que a presença de Eldrick e de todas a deixa inibida.

- Mas em todo caso, ele fez o que um homem de verdade deveria ser feito. Muitos desta cidade calam-se e fingem que as arbitrariedades dos barões não são com eles, permitindo que eles ajam de forma impune... - Intervém Eldrick, dando um tapinha nas costas de Urashima.

- Mas, Eldrick, havia necessidade de tirar a vida daquele infeliz? - Pergunta Naru, que havia ficado tão impressionada com o incidente quanto a Shinobu, embora não demonstrasse.

- Bem, fui obrigado a agir em legítima defesa. Se Drasius não tivesse a tola idéia de tentar me esfaquear usando o truque da poeira, talvez estaria vivo. - Responde Eldrick.

- Você o conhece? - Pergunta Motoko, que até então estava apenas ouvindo.

- Sim. Drasius era um dos capangas de Khazar e um dos mais cruéis. Vivia maltratando os empregados e se metia em duelos aqui quando estava bêbado. Sem contar que se dependesse da vontade do barão, ele estaria no meu lugar como condestável. - Comenta o oficial de justiça, embora não aparentasse ressentimento com relação ao seu adversário.

- Mas o senhor não acha que estes mercenários não vão querer vingança? - Pergunta Naru.

- É óbvio que sim. Infelizmente estas coisas somente acabarão quando um ou ambos os nobres tiverem as suas "asinhas" cortadas pela corte de Brightstone. O condestável anterior a mim tentou ser o mais conciliador e pacífico possível, mas no final acabou sendo assassinado. - Explica Eldrick.

- Mas como estes dois caras ficaram tão poderosos assim? Não tem ninguém que os fizesse parar? - Continua Naru a perguntar.

- É uma longa história... Tanto Khazar como Strongald são descendentes dos cavaleiros que lutaram numa grande batalha há 80 anos atrás, que fez os orcs abandonarem nosso reino e serem escorraçados para além da fronteira. Se não me engano, um deles conseguiu matar Dralok, o legendário rei orc. - Responde Eldrick, forçando a memória para se lembrar destes fatos.

- Dralok? - Estranha Motoko.

- Era o nome de um poderoso e carismático líder de guerra que unificou as tribos orcs e goblins, iniciando uma campanha de conquista contra o nosso reino e os dos elfos e anões, até chegar até as portas de nossa capital. Ele foi derrotado na chamada Batalha das Nações e suas forças tiveram que recuar esta região. Aí, os orcs foram atacados e mortos pelos cavaleiros, e os sobreviventes expulsos para além da fronteira. - Conclui o condestável.

- E como recompensa, os antepassados dos dois brigões ganharam terras... - Exceto quando estava envolvida emocionalmente com o Keitarô e consigo mesma, Naru era bem perceptiva e fazia jus à sua fama de ser a primeira aluna do Japão.

- Sim. Só que infelizmente os seus descendentes não herdaram a coragem e a nobreza dos cavaleiros de outrora. Mais tarde, as famílias de ambos os nobres começaram a brigar, começando uma série de invasões de terras, roubos e assassinatos. Foi por este motivo que a cidade livre de Smallville foi criada. - Responde o condestável de maneira didática.

- O que não foi nada bom para os moradores. - Comenta amargamente Motoko, enquanto Shinobu enxugava suas lágrimas.

- Em um primeiro momento até que não. Eles aparentemente haviam se conformado. Só que à medida que a cidade foi crescendo com o comércio além-fronteira, a cobiça e a inveja despertaram rancores antigos. Mas ainda assim, o máximo que a gente enfrentava era alguma briga de bar entre os mercenários deles e as intrigas de costume.

- Mas pelo visto, eles decidiram partir para tudo ou nada. - Intervém Yuri, que estava escutando tudo sem comentar até aquele momento.

- Bem, quanto ao Barão de Khazar sim. Apesar de ser daquele jeito que viram, o velho Marius Strongald somente irá lutar se Khazar ou um de seus capangas agir primeiro. Bem meus jovens, estou tomando o tempo de vocês. Agradeço o fato de terem salvo Theleus, que estava cumprindo ordens minhas e espero-os na reunião hoje à noite. Tenham um bom descanso! - Responde Eldrick, notando que o sangramento estava estancando.

- Até mais, Eldrick. - Responde Yuri.

- Tenham uma boa tarde.

Despedindo-se do pessoal, o veterano oficial retorna ao quartel acompanhado dos seus soldados. Keitarô é o primeiro a dar meia volta e a se retirar daquele palco sangrento, com uma expressão concentrada e angustiosa no rosto.

- Ei, Keitarô, espere! Temos muito o que... - Grita Naru, irritada com o que considerava descaso da parte dele. Diferentemente das outras vezes, Keitarô não pede desculpas.

- Shhhh, Naru... - Yuri percebe a reação da ruiva e segura discretamente no braço dela.

- Mas Yuri! Ele tem que ouvir umas verdades! O que ele fez foi...!

- Naru-sempai, concordo que teremos que conversar com o Urashima, mas não a esta hora. Apesar dele ter agido como um... amador... ele fez o que tinha que ser feito - Comenta Motoko.

- Mas Motoko-chan, ele!...

- Naru, vamos ter tempo de sobra amanhã para conversar, vamos... a gente vai ter que descansar bem, pois pelo visto a nossa aventura não terminou. - Comenta Yuri, bocejando pela primeira vez.

- "Era isto o que eu temia!" - Pensa Narusegawa, enquanto olha para os seus pés novamente empoeirados. Pelo visto, elas teriam que tomar outro banho.

- Sempai... Murmura Shinobu.

Ela sofria por dentro, tentando imaginar o que estava acontecendo com o seu amor. Nunca tinha visto Keitarô atormentado daquele jeito e o comportamento demonstrado por ele na discussão não era habitual. Embora intimamente ela não concordasse com muitas das coisas que a Naru e a Motoko faziam com ele, a pequena Shinobu Maehara ficou surpresa ao ver Urashima-sempai daquele jeito. Se ao menos ela pudesse ser menos tímida...

***

Enquanto isto, na vastidão desolada da Fronteira Sul de Arkadia, uma figura rude vestida com trajes de peles de animais caminhava com dificuldade no chão recoberto de neve e gelo. Ela parecia estar um bocado cansada, pois estava andando há horas, com pausas mínimas para matar a fome e a sede naquele inferno branco.

- Alicia-chan, quando nós iremos... - Pergunta uma voz fina e delicada, logo atrás da figura que caminhava cautelosa e vagarosamente pelo terreno traiçoeiro.

- Descansar? Para dizer a verdade, a gente era para ter encontrado os malditos... - Responde baixinho a figura vestida de peles e tatuada com tinturas exóticas que a faziam parecer uma shaman de alguma tribo bárbara primitiva.

- Eu... estou tão... - Tenta comentar, ofegante, a jovem Mieko, que acompanhava com dificuldade a sua "amiga", estando em forma etérea e flutuando a alguns centímetros acima do solo.

- Não pare, Mieko-chan. Estamos tão próximas de conseguir o que queremos que desistir seria... - Diz Alicia, lutando penosamente para impedir que o vento frio e a neve acabassem congelando suas pálpebras.

As duas se conheciam há pouco tempo e entraram no jogo virtual de Fantasy por motivos diferentes. A estudante japonesa, como uma espécie de válvula de escape para esquecer a desilusão de ter sido rejeitada pelo objeto de seus desejos, a jovem Motoko Aoyama. E a ambiciosa americana, pelo amor ao risco e pela ganância de se sair bem, fazendo uma alta jogada.

Como todo jogo de RPG online, o Fantasy possuía artefatos raríssimos e objetos únicos que davam poderes inimagináveis aos personagens jogadores.

Porém o mesmo atrativo é que tais artefatos poderiam ser vendidos em leilões virtuais na internet a valores exorbitantes, como acontecia no famoso game Everquest. Sempre teria um nerd rico mas frustrado que seria capaz de fazer loucuras para ter um mero arquivo de poucos megabytes de memória.

Só que diferentemente do obsoleto jogo de videogame, o Fantasy permitia um nível de interação nunca visto num game online entre seus participantes. Mal o jogo tinha sido lançado e ele causava polêmicas em sites da Rede Mundial de computadores e em revistas especializadas.

Alguns acusavam-no de alienar e fazer isolar as pessoas do mundo real enquanto que outros diziam que os relacionamentos entre os personagens do jogo acabavam influenciando na vida offline, sendo capaz de originar desde um caso de fim de semana até um casamento.

E isto era verdade no caso da dupla. Caso nunca tivesse jogado, talvez ambas nunca iriam se encontrar, muito menos se relacionar. Contudo, a carência de uma e o oportunismo de outra fizeram com que uma aliança se concretizasse - ainda que ditada pelas contingências.

Após andar por alguns instantes, Alicia volta-se para trás e observa que Mieko não estava mais por perto. Para piorar, ela estava agora diante de um vale cercado por montanhas de puro granito e a visibilidade estava péssima. Pelos seus cálculos, era para elas terem encontrado os homens de gelo. Estes primitivos seres seriam a peça chave para a dupla de aventureiras invadir a câmara de tesouros guardada há milênios pelos anões.

Só que isto de nada adiantaria se a jovem japonesa de traços delicados e óculos de aros finos não estivesse presente. Seria ela e não Alicia a responsável para fazer com que os homens de gelo acreditassem que estavam diante da legendária Karelia, a lenda viva que um dia liderara aquela raça bárbara.

O máximo que Alícia poderia fazer seria fingir ser a profetisa do retorno da divindade dos homens da neve, o que era um plano insano e desesperado, mas que tinha alguma chance de dar certo.

Praguejando a si mesma, a guerreira tenta vasculhar aonde aquela bobinha tinha se metido. Mieko não estava muito longe dela, então não poderia ter sumido sem mais sem menos. Alicia interrompe a sua caminhada e começa a procurar de forma silenciosa a sua colega e amante.

Ela não podia pensar sequer em chamar Mieko ou gritar alguma coisa, porque por mais que fosse hábil com as espadas, a americana não seria páreo para dezenas de bárbaros primitivos que sobreviveram durante séculos em lutas amargas contra os anões.

Alicia iria murmurar um palavrão quando apenas tem tempo para se jogar ao chão. Foi tudo muito rápido e por pouco uma lança de ponta de osso não atravessa a sua coxa direita, passando de raspão.

Ao cair no chão,ela sente uma dor intensa espalhar-se pelo membro atingido. A sua segunda impressão no milissegundo seguinte é a de sentir-se uma idiota perfeita. Ela poderia gritar, xingar ou mesmo tentar sacar as suas armas numa inútil e desesperada tentativa, mas sabia que se fizesse isto, o seu disfarce iria por água abaixo.

Como pôde ser tão burra, pensava ela? Durante todo aquele tempo, elas estiveram sendo observadas! Isto que dava em subestimar criaturas supostamente "inferiores".

Para seu azar, os homens de gelo - apesar de serem primitivos - eram mestres em se ocultar na neve naquele lugar inóspito. Depois, diferentemente dos humanos comuns, eles possuíam uma espécie de membrana transparente que protegia seus olhos do frio cortante e das tempestades de neve, dando-lhes grande vantagem sobre os membros de outras raças.

Com o canto do olho e erguendo-se com uma dificuldade enorme, a aventureira loira vê uma, duas, três... mais de doze silhuetas atarracadas e carregando armas feitas de pedra e de ossos saírem de seus esconderijos na neve, aproximando-se dela como se fossem lobos diante de sua presa.

Era uma péssima maneira para terminar o dia. Mesmo assim, Alicia Silverstar se levanta, pronta para encarar o seu destino.

Escrito por: Calerom

E-Mail: myamauchi1969@yahoo.com.br

Última Versão: 15/03/2004.