EU DURMO

por SAULO DOURADO

Parte 1

As pálpebras se abriram com um pouco de pesar, a luz nem ao menos esperou Mariana "voltar ao normal", invadiu-lhe logo a vista. Ela se levantou e fechou as cortinas de um modo meio irado. Andava apenas de calcinha enquanto as suas roupas continuavam pousadas no chão do quarto, junto com as vestes do rapaz que estava namorando: Breno. Namorando...talvez sim, talvez não...ele nunca lhe revelou o que era realmente. Nunca chegou e falou: "Bem, você é minha namorada" Mas também nunca tinha dito: "Eu só quero você para me matar de prazer à noite". Era um relacionamento estranho: o grau de namoro era de ponto de vista de cada e não algo conceituado. Ah! Mas o cara é bem inteligente, bonito...gostava dele. Não era nenhuma desvalorizada que fica com caras só por prazer...risível. Garotos não são drogas, são um complemento feminino.

A noite anterior foi demais. Breno estava melhor do que nunca. Em falar em Breno...ela sacudiu a cabeça, olhou para a cama, estava vazia. Desorganizada e ainda guardando as heranças do amor do dia anterior.

"Cadê ele?", indagou Mariana para si mesma "Na cozinha!" , respondeu ela antes de qualquer coisa.

Espreguiçou-se, avolumando ainda mais os seus seios firmes. Coçou levemente a barriga e isso lhe deu uma certa sensação de prazer. Encaminhou-se até a porta após encaixar seus pés no chinelo. Logo voltou e colocou uma camisola...agora estava digna de se dar um passo fora de seu mundo particular.

Mariana tinha vinte e cinco anos, recém-formada em direito. Já tinha até emprego garantido numa firma de seu tio. O velho mesmo dissera: "Pode ficar despreocupada!". Como todos falam que devemos seguir os mais sábios, então foi o que ela fizera durante a última semana. Vida de ociosa não é a expressão certa e sim...vida de festeira (ou "reggaeira" como diziam seus amigos). Com Breno, ela tinha saído em vários lugares, shows...sorte dela ele não ser mais um inteligente caseiro. Ele também gostava de sair e saber conversar sobre o quê na hora exata. Certo que, de vez em quando, ele dava uns furos quando comparava uma situação a de algum livro que tinha lido com algumas conhecidas suas que só liam revista de fofoca.

Mariana aproveitou seus últimos momentos. O dia anterior foi de puro romântismo, êxtase e emoção. Agora era só ir até a cozinha com a mesma cara de sono (seu irmão costumava dizer que ela acordava com os olhos esbugalhadas como se tivesse tomada um tiro ou pelo menos ouvido um). O mesmo garoto que pegava suas bonecas favoritas e as colocava em cima do muro, convidava todos os seus amiguinhos para a festa de tiros. Armas de brinquedo com chumbinho era a sensação da época...cada um colocava uma boa quantia de dinheiro numa caixa e quem acertasse mais bonecas (uma vez de cada) ganhava tudo. Tinha virado mania na rua. Mariana, que chorava pelas bonecas perdidas, encontrou-as dilaceradas por chumbo num baú do irmão. Fim de festa para todos!

- Amor? - indagou a menina ainda com um tom fraco na voz.

O silêncio só não reinava por causa dos passos leves da mulher sobre o piso gelado do corredor.

"Será que o miserável saiu sem me falar nada?!", cogitou ela. E sentiu uma fúria dele só em pensar que ele realmente o tinha feito. Começou a ensaiar palavras para o seu bom e belo "esporro" no telefone. Em alguns segundos, a raiva começou a sumir...e se ele teve uma emergência? Iria logo ligar gritando para o celular dele enquanto ele reconhecia o cadáver da mãe em algum inferno que fosse? De repente, lhe veio uma idéia: e se aquele silência representasse que ele queria fazer alguma espécie de surpresa lá na cozinha? Talvez o objetivo de Breno realmente fosse manter um suspense para que pudesse surgir com um magnífico desjejum nas mãos. Uma rosa ao lado do sanduíche...Mariana pôs-se a sorrir com tal possibilidade e até mesmo ficara meio aborrecida por ter pensado nisso, pois assim não poderia haver mais surpresa.

Mariana chegou em frente a cozinha.

A porta da geladeira estava deitada sobre o chão do lugar com alguns borrifos de um líquido vermelho.

"Oh, meu Deus!", pensou a moça, "Alguém destruiu minha geladeira."

Ela apressou-se até chegar mais perto do local. Viu pedaços de carne vermelha em cima da porta deitada e golpeada por alguma coisa de metal. O líquido era sangue. Uma coisa repugnante...nunca se esqueceria quando estava brincando na casa da avó, aos cinco anos. Casava sua Barbie com o Ken enquanto a mãe de sua mãe tricotava numa cadeira de balanço. No momento em que pousou seus olhos na velha, viu a mulher colocar a mão no próprio peito e apertá-lo, a outra mão abria e fechava no ar num sinal de desespero que a garotinha não conseguia interpretar direito. Os olhos de sua avó se esbugalharam como se fossem dar um pulo da órbita e cair dentro daqueles panos já tricotados...a língua escapuliu para fora da boca em meio à palidez da idosa e do músculo o sangue escorria até ficar pingando nas agulhas. Mariana não tinha ficado traumatizada, pois apenas saiu correndo. A sua vovó estava encenando igual as mulheres da televisão e precisava chamar a todos para poderem ver.

Uma gota de suor passou entre os seios de Mariana. Uma simples coisinha que provocou um arrepio...ou talvez tenha sido a cena macabra. Uma gota que se desfez no início de sua calcinha, deixando vestígios aquosos pelo caminho, lugares em que muitos ex-colegas de faculdade desejavam, um dia, passar a língua ali. Sexo! Era isso que transpirava de alguns que via pela rua...apenas ao olhar, você nota o grau de um homem. E isso, ela achava repugnante, mas não os culpava...ainda não tinham sentido o amor.

- Oh, céus! O que é isso? - gritou Mariana ao olhar o interior da geladeira em meio a soluços, choro e olhos de choque - Meu Deus! Meu Deus! MEU DEUS!

Havia uma lanterna ligada dentro do eletrodoméstico. A luz, já um pouco fraca, sentrava-se num pé decepado. Mariana podia ver a carne vermelha, o osso partido. Algumas pequenas formigas caminhavam sobre o lugar ferido...outras apenas andavam pelo pé, como se quisessem apenas dar um passeio. As patinhas pisando naquelas veias, agora inúteis; nas unhas crescidas, os pêlos, até mesmo uma cicatriz que Breno tinha adquirido na infância estava ali, no peito do pé.

Os olhos de Mariana foram até o congelador. As mãos. Uma delas estava em destaque...os cinco dedos com a metade para cima como se tivesse segurando uma esfera do tamanho da palma. Várias partes do corpo de Breno estavam espalhadas pela geladeira, brilhando um pouco pelo fato de haver água e sangue misturados em cima de cada parte. A cabeça estava na última parte, os olhos virados para o "fundo" da geladeira, dando à Mariana apenas a visão do cabelo do namorado...e agradeceu por isso. Não agüentaria ver os olhos mortos dele. Não mesmo!

Nesse momento, Mariana vomitou sobre a porta caída e saiu da cozinha com pressa até se deitar, chorando, no sofá da sala. Sentiu o conforto enquanto soluçava, desesperava-se. Era como se o mundo tivesse arrebentado...ou talvez o seu cérebro. Um momento em que tudo parecia negro na mente da moça. Houve uma demora de cinco minutos para Mariana começar a se acalmar. Os soluços cessarem...e os pensamentos voltarem.

"Quem fez isso?" - perguntou ela para si mesma.

Algo sem resposta. Como iria saber quem assassinou seu namorado enquanto ela dormia?

Mariana levantou-se e começou a olhar pela janela enquanto as lágrimas escorriam em sua face. Estava no sexto andar, o último andar de um prédio que tinha acabado de ser inaugurado - construído pelo avô do namorado. Presente do pai de Breno para ele - era um prédio que deveria comportar alguns familiares- . A mudança nem tinha terminado. Por isso, não havia telefone e apenas uma chave. Vizinhos? Apenas um no primeiro andar que só ficava ali nos dias de domingo. Era um local quase deserto, silencioso...aconchegante para fazer amor até se esgotar.

"E se a pessoa que matou ele...", o coração de Mariana disparou. Só em pensar nisso. Ainda teve forças para completar o pensamento: "...ainda estiver aqui?". Quando ouviu essas palavras em sua mente, foi que o seu desespero aumentou gradativamente. Agora além de ter uma visão mórbida e ter algo tétrico dentro de si, sentia o horror se instalar dentro de seu peito.

"E se o louco ainda estiver aqui? Debaixo da cama, dentro de um guarda-roupa, atrás da porta..."

Mariana não sabia o que fazer.

"Ele pode surgir agora mesmo."

Ao pensar nisso, olhou de um lado para o outro freneticamente. Não sabia se deveria correr ou ficar ali. Apenas se petrificou em meio aos seus pensamentos terríveis.

Num súbito instante, ela se moveu até a porta. Toda vez que passava por uma, lembrava do cantor predileto de seu pai: Roberto Carlos, o rei. Muito superticioso, o músico disse que quando ele entra por uma porta na casa, ele tinha que sair pela mesma. Não gostava de se retirar em outra e nem mesmo gostava dessa sua mania, mas a obedecia. Naquele momento, porém, Mariana não pensou no cantor, talvez não tivesse pensado em nada exatamente.

Vácuo.

Mariana girou a maçaneta, mas a porta não se abriu, apenas aquele barulho metálico que poderia dizer "Está fechado, senhoras e senhores" numa língua estranha. Um calafrio percorreu a espinha da moça quando viu que estava presa no local já que não sabia onde estava a chave.

Voltou a chorar.

"Ai, o que eu vou fazer? Eu não quero morrer.", nessa última frase explodiu em soluços ao mesmo tempo em que caía de joelhos no chão. Começou a pensar na família e momentos felizes na vida. Quando seu irmão ganhou um concurso de poemas(de atirador a um novato escritor) com o nome dela, ela o abraçou com orgulho, fora apenas algo escolar e de pequena proporção, mas tinha sido simplesmente incrível. Lembrava de quando o pai dela a pegou beijando na escada do prédio. Aquele era o seu primeiro, quando ela tinha treze anos. O pai - ela não sabia se ele tinha sido brincalhão ou miserável - jogou um pedaço de peixe congelado (estava com algumas compras na mão) no pé do garoto. Pegou um gato que passava ali pela garagem e colocou-o em cima da escadaria - o homem tinha sido bem rápido, pois fizera sua travessura em segundos. O felino negro dera um susto tão grande nos dois que o garoto se desequilibrou e saiu rolando pela escada em meio às gargalhadas do homem. Quando o jovem ficou perto dos pés do pai da namorada, ouviu as palavras:"Esteja lá em casa, hoje, às oito horas da noite. Quero ter uma conversa de homem para homem." A mãe era uma figura afetuosa e aconselhadora...uma família incrível que se distanciava em sua mente a medida em que o horror aumentava dentro de si.

"Há uma chave, não?", falou a garota para si mesma, "Claro que há uma chave!"

Esse pensamento lhe retornou um pouco a esperança.

Ela deveria procurar a maldita chave, apenas isso. Provavelmente deveria estar num local acessível, um lugar em que Breno tivesse lançado assim que chegou, em meio aos beijos. Para pegá-la, entretanto, tinha que procurá-la... fazer isso, significava ficar vulnerável ao assassino...

"Se esse homem o matou, pegou a chave, trancou a porta e se foi?", indagou ela começando a sentir uma ponta grande de medo de novo, "Sem pensamentos pessmistas, Mariana! Por favor!". Tinha falado uma outra "ela" dentro da garota...todo mundo tem uma espécie de Cara das Digressões como diria o grande escritor Breno Fernandes Pereira.

Mariana caminhou em direção ao corredor com passos lentos, mas estagnou-se no meio do caminho. Seria bom levar algum tipo de arma? Uma faca, por exemplo? Lembrava-se que havia pouca coisa no apartamento, por isso seria muita sorte dela achar uma faca para carnes ali. E outra coisa! Não atrevassaria mais ali! Não agüentaria mais ver uma gota de sangue...

Uma porta se bateu no fim do corredor.

Essa história eu fiz, há um bom tempo, de encomenda para uma bailarina e ex-metaleira amiga minha chamada Mariana Almeida. Breno também aparece no conto, mas não de uma maneira agradável... Eu gosto de fazer história quando me pedem, eu geralmente faço com mais empolgação. Mas também não é qualquer um na rua que eu faço isso, bem que eu já criei vários contos observando pessoas totalmente desconhecidas. Enquanto eu não recebo 17 milhões pra escrever um livro, o valor que Stephen King recebeu antecipadamente para escrever Saco de Ossos – o que eu acho que valeu cada centavo da editora -, vou postando histórias gratuitamente, tentando acreditar que não existe alguém ridículo ao ponto de plagiar textos da web e torcendo por alguns comentários. Espero!! E não se preocupem...a segunda parte de Eu Durmo já está escrita. Ela estará aqui no próximo sábado.

Valeu!!

Saulo Dourado