CAPÍTULO DOIS

Descontrole

-  Interessante... – disse o professor de Poções, enquanto mexia a concha no caldeirão de um aluno – Ao invés de azul ela está...hum...lilás... menos 10 pontos para a Sonserina!

Aquele sexta-feira definitivamente não tinha começado bem para os Sonserinos, pois a primeira aula do dia era do Professor Strict.

-  Como lilás professor? É azul-claro... – protestou o aluno.

-  Está dizendo que eu tenho problemas de visão ou que eu sou mentiroso, Sr. Snape?

-  Estou dizendo que a minha poção está azul! Isso é injusto! – revoltou-se Snape.

-  Pois então retire-se de minha sala. – o professor tinha um tom de voz baixo e forte.

Snape rapidamente levantou-se, jogou todo o seu material na mochila e se retirou, ainda com um olhar de indignação e revolta.

-  Há-há, bem feito... – sussurrou Viviane para Lílian, que lhe deu uma leve cotovelada para que ficasse calada, antes que o professor também lhe tirassem pontos.

Mas Viviane não tinha medo do professor Strict, assim como nenhum outro grifinório, pois ele era rígido, e até mesmo injusto, apenas com os alunos das outras casas, principalmente com os sonserinos.

Tanto que ele nem ao menos reclamou quando a poção de Maddy explodiu, caindo em cima de vários alunos ao seu redor. Estes sim, reclamaram, principalmente Viviane, cujos cabelos agora estavam azuis.

Strict logo fez um feitiço de limpeza, porém o estrago já estava feito: o líquido em combustão estava um tanto quanto quente e perigoso. Vários alunos que até então riam, pararam ao entender a gravidade da situação.

-  A aula de hoje terá de ser adiada. Os que foram atingidos, venham comigo para a enfermaria... Os demais estão dispensados.

Lílian, assim como outros alunos não atingidos, queria ir para enfermaria também, mas o professor os proibiu. Disse que visitassem os amigos mais tarde. Sem poder fazer nada, ficou apenas observando os alunos deixarem a sala. Pôde notar o olhar enfurecido de Vi para Maddeleine. Notou ainda que as amigas tinha fios de cabelo azuis.

-  Se essa poção estragar o meu cabelo eu mato você, Maddy!! – dizia Vi, enquanto saía da sala.

Aos que ficaram na sala restava apenas guardar o material para saírem. Lílian, ao caminhar em direção à porta, notou Potter e Black entre risos. Parou ao lado da carteira deles.

-  Espero que vocês não tenham tido nada a ver com isso. – disse ela por entre os dentes cerrados.

-  Claro que não Evans! – Potter já tinha a mão nos cabelos despenteados – Eu nunca faria nada com uma amiga sua!

-  Espero que isso sirva pras minhas também... – disse Cherr, que havia parado ao lado de Lílian, cruzando os braços.

-  Mas é claro, Cherry!

Potter se levantou e, passando um braço por detrás da namorada, a levou para fora da sala.

-  Bem, você ouviu Black, a aula foi adiada, todos para fora!

-  Cuidado Evans, isso pode parecer ciúmes...

Lílian piscou demoradamente, como quem desacredita no que está ouvindo.

-  O quê?

Black sorriu vitoriosamente.

-  Esquece. Anda, eu não tenho o dia inteiro aqui a sua disposição, Black...

***

-  Ah, Lily, Madame Healery disse que isso pode não ter cura! Eu devo ter pouco tempo de vida... o que eu devo fazer nesse pouco tempo??

Assim que teve uma oportunidade, Lílian tinha ido à enfermaria. Logo que chegara, Viviane nem tinha lhe dado tempo para falar nada, começou logo com o drama.

-  Pois pra mim você já parece curada! Deixa de frescura Vi e sai logo dessa cama!

-  Quem dera que fosse fácil assim! – Viviane voltara ao seu tom normal –  Eu já tentei, mas Madame Healery disse que ninguém sai da ala hospitalar por, no mínimo, 24 horas, disse que estamos "sob observação"... Tudo por causa da "Madly"...

-  Hei! Não foi culpa minha não!! – defendeu-se Maddeleine. – Você viu que eu fiz tudo certinho, minha poção tava até na cor certa!

-  Ela tem razão Vi – disse Lílian sentando-se na cama de Viviane – Eu acho que isso foi coisa dos engraçadinhos da escola...

-  Potter e Black?? Argh, eu mato aqueles dois se o meu cabelo ficar um diazinho a mais azul!

-  Ai, que desperdício...

-  Olha só, Maddy, a seção de fã-clube definitivamente não é aqui... – disse Lílian.

-  Não sei porquê, eles são tão lindos... – Maddy deu um longo suspiro.

Lílian e Vi se entreolharam. Lílian sabia exatamente o que se passava na cabeça de Viviane, então apenas riu quando ela fez, mais uma vez, sua cara-de-vômito.

-  Ah, fala sério, vai dizer que você nunca achou nenhum dos marotos bonitos??

 -  Eu não disse isso, Maddy... – respondeu Vi.

Viviane foi salva pela Madame Healery, que chegou expulsando os visitantes da enfermaria. Ou pelo menos foi isso o que Lílian pensou, pois não sabia se a discussão continuaria depois entre elas. Provavelmente não, ou Vi desviaria o assunto, ou a enfermeira logo pediria silêncio.

Não foi a curiosidade em relação a isso que a fez ter vontade de voltar à ala hospitalar à noite, mas a falta que sentia de Viviane na sala comunal. Estava sentada numa confortável poltrona, sentindo-se muito solitária. O fato de todos os outros alunos estarem conversando animadamente não ajudava muito.

Olhou para o relógio: 8:35. Apesar de ainda estar meio relutante, resolveu ir até a enfermaria. Inventaria uma desculpa qualquer, utilizando-se do fato de ser uma monitora. E foi isso que tinha em mente durante o trajeto, tanto que quase esbarrou em um garoto que vinha, também distraído, pelo sentido contrário. Ia pedir desculpas quando viu de quem se tratava.

-  Ah, você Potter?

-  Olá, Evans. – disse sorridente.

-  Já está tarde Potter, então vai logo pra sala comunal, certo?

-  E você vai comigo?

-  Não, eu vou pra enfermaria. – disse ela.

Lílian já começava a andar quando foi puxada por Potter para dentro de uma sala. Ao fechar a porta, ele fez sinal para que ela fizesse silêncio.

Ele esperou algum tempo, com os ouvidos próximos à porta, antes de falar.

-  Desculpa, é que a Cherr estava passando, e eu não queria que ela nos visse juntos... sabe como é, ela é muito ciumenta...

-  E desde quando você se preocupa com isso?

-  Desde quando eu tô sem saco pra brigar...– Potter revirou os olhos – de novo...

-  Tá, mas eu não tenho nada a ver com isso e preciso ir indo...

-  Ora, Evans, é tão difícil assim ajudar um pouco??

-  Sim, porque eu odeio essa sua mania de pensar que todo mundo tem que estar sempre a sua disposição... pois fique você sabendo, Potter, que o mundo não gira-

Mas o final da frase ele nunca chegou a saber, pois naquele momento ele silenciou os lábios de Lílian com um violento, porém carinhoso, beijo.

Beijo ao qual ela não se entregou, empurrando-o em seguida. Não sem antes vacilar por um segundo, tempo que foi o suficiente para ficar com o gosto dele pelo resto da noite.

Após empurrá-lo, os dois pareceram ficar sem reação por um tempo.

-  Me desculpa, mas é que eu queria fazer isso há muito tempo... – disse ele, finalmente quebrando o silêncio.

Ela pareceu manter-se num relativo estado de choque, sem reação. Quando recobrou seu raciocínio, a única coisa que conseguiu fazer foi sair da sala rapidamente. 

***

Lílian não conseguiu ir à enfermaria depois disso, foi direto para o seu quarto e lá ficou pelo resto da noite. Também não conseguiu visitar as amigas de manhã e, quando elas saíram da enfermaria à tarde, não contou nada.

Não sabia se o que a incomodava mais era o fato dele ter feito isso apesar de ter namorada, se era porque ela sempre detestara ele, ou se era pelo o que ele tinha dito.

"Me desculpe, mas é que eu queria fazer isso há muito tempo..."

Ao invés de tentar descobrir isso, ela preferiu ignorar, tentar esquecer o que tinha acontecido, e não contar para ninguém tornava o beijo mais surreal ainda.

O que estava dando certo, até chegar no salão principal no domingo, onde todos se preparavam para ir para casa.

Vários alunos estavam parados ao redor do que parecia ser uma discussão. Lílian colocou sua pequena mala no chão e se esticou numa tentativa de ver melhor o que estava acontecendo.

-  Ora, não me venha com essa! Você acha que eu não sei quais são os seus planos?? – gritava Cherr – Enquanto eu fico em casa assistindo TV você sai com cada garota que ficar em Hogwarts!!

-  Não, eu não ia fazer nada disso, mas era o que você merecia! – respondeu Potter.

-  Agora eu sou a culpada?? – Cherr tinha uma incrível voz de vítima.

-  Quem foi que traiu quem aqui?? – perguntou um Potter indignado.

-  Traí sim! – sua voz agora parecia prender um choro – Mas porque você merecia! Porque você não me tratava bem, me traía, me usava e, ainda por cima, não me satisfazia!

Lílian pôde notar alguns rirem, outros arregalarem os olhos. Ela, na qualidade de monitora-chefe, pretendia interferir e acabar com a discussão, mas simplesmente não conseguia sair do lugar. Por isso agradeceu aos céus ao ver que Lupin tentava colocar ordem no local.

Quando percebeu que os alunos já se retiravam para pegar a carruagem e, em seguida, o Expresso de Hogwarts, quando viu Viviane e Maddeleine esperando por ela, foi que se deu conta de que precisava sair do lugar. As três então entraram numa das carruagens.

Ainda estava muito distraída, não sabia o que pensar. Ela provavelmente nem saberia dizer depois quem mais entrara com elas no estranho veículo. No trem, apenas uma coisa lhe chamara a atenção: o drama que Cherr fazia para com todos que passavam, fazendo-se de vítima e denegrindo totalmente a imagem de Potter.

Por mais que o detestasse, era óbvio que ela além de estar exagerando, mentia descaradamente. Lílian não estava gostando disso, o que a assustou pois, até pouco tempo atrás, estaria adorando ver Potter perder seu "fã-clube". Ou será que não?

Ela não reparou, mas ficou pensando nisso por toda a viagem. Não trocou uma só palavra com Viviane ou Maddeleine durante todo o tempo. Descer do trem, falar com seu pai, entrar no carro e chegar em casa foram coisas tão automáticas que só se deu conta quando já estava no seu quarto, jogando a mala no chão.

-  Por que diabos eu estou assim?? – perguntou-se.

-  Porque você é uma aberração! – disse sua irmã, como se isso fosse óbvio.

Lílian assustou-se, pois não tinha percebido que Petúnia estava parada na porta.

-  E então, "bruxinha-de-ouro-da-família", percebeu que é uma aberração e não gostou disso?

-  Não é nada disso, Petúnia... – Lílian tinha um pouco de mágoa em sua voz – quando você vai entender que eu sou apenas diferente de você?

-  Graças a Deus eu sou diferente de você!!

Petúnia se benzeu e saiu da porta. O som de pés na escada denunciava que ela havia descido. Lílian jogou-se na cama, tentando limpar sua cabeça de qualquer pensamento referente à escola. Ou de alguém de lá.

***

Um problema maior pode reduzir o anterior a uma coisa sem importância. Talvez não sem importância, mas Petúnia a irritava tanto que quase não lhe sobrava tempo para pensar no beijo ou em Potter.

O que tornava essa aversão que Petúnia sentia por ela um "grande problema" era o fato dela gostar muito de sua família, de gostar de sua irmã. Queria que tivessem orgulho dela, e não vergonha. Os absurdos que Petúnia contava ao seu namorado e aos amigos  magoavam Lílian, e muito. Chegara ao ponto de dizer que ela tinha uma grave doença mental, que a fazia acreditar que vivia em mundo paralelo, um mundo mágico onde pessoas voavam em vassouras.

Mas Lílian não respondia. Não reclamava. Não brigava. Tudo o que ela queria era viver em paz e ter férias tranqüilas e relaxantes. Tentava ignorar o que Petúnia fazia, convencendo-se de que a irmã não tinha idéia do que estava fazendo, simplesmente porque não conhecia o mundo da magia. E estava conseguindo, até a véspera de seu retorno à Hogwarts.

- Pára Petúnia! PÁRA! EU NÃO AGUENTO MAIS!!

As duas discutiam no quarto de Lílian.

-  O que eu fiz pra merecer isso?? – continuava Petúnia, em lágrimas – Por que eu não podia ter uma família normal?? Por que eu tinha que ter uma aberração como irmã???

-  Pelo menos me RESPEITA! Eu NÃO sou uma aberração! Eu sou uma BRUXA!!

-  Xiiiii!!! Como você fala isso assim?? – Petúnia fechava as cortinas da janela, vendo se não havia alguém olhando – Alguém pode escutar!!

-  Dane-se os vizinhos! Eu sou uma BRUXA e você precisa entender isso!

-  Eu nunca vou entender, eu nunca vou aceitar e, quando sair daqui, começarei uma vida nova, na qual não terei irmã alguma.

-  O que eu fiz pra você, Petúnia?

-  Você nasceu. Eu só vou me lembrar de que tenho uma irmã no dia em que você morrer, pra eu pisar sobre o seu túmulo. E vou rir muito pois o seu velório vai estar vazio. Até lá as pessoas já vão ter percebi o que eu sempre soube: que você é um monstro!

A mágoa que Lílian sentia estava se transformando em raiva. Todos os sentimentos reprimidos até então pareciam querer se libertar. O olhar de ódio que sua irmã lhe lançava mexia com algo dentro dela, algo estranho, mas forte, muito forte. Sentia-se quente, seu sangue estava fervendo e seus punhos haviam involuntariamente se cerrados. Com os olhos fechados fortemente, tentava não dar ouvidos a sua irmã, mas as palavras penetravam ferozes em sua mente.

-  Eu te odeio – continuava Petúnia – , odeio mais do que à qualquer coisa e a cada dia desejo que você morra naquela escola de aberrações e não volte NUNCA MAIS!

Aquilo foi a gota d'água para Lílian. Sentia tanta raiva que parecia que iria explodir. Queria gritar, queria jogar tudo no chão, queria partir pra cima de Petúnia, mas não se moveu nem um centímetro. Permaneceu ali, parada, do mesmo jeito: punhos cerrados, sangue fervendo, respiração acelerada e olhos fechados.

Foi então que começou a sentir um cheiro estranho. Logo em seguida, ouviu um grito histérico de sua irmã.

-  Eu não disse?! Ela é um MONSTRO! Ela está tentando me matar!! – gritava Petúnia, descendo desesperadamente as escadas. – ELA QUER ME MATAR!!

Ao abrir os olhos, Lílian viu seu quarto todo em chamas. As cortinas já haviam se reduzido à pó, assim como alguns livros que estavam em cima da cama.

A fumaça a fez tossir. Desesperou-se. Podia ter matado sua irmã! Como maior de idade, tinha permissão para fazer mágica fora da escola, mas quase havia MATADO sua irmã! Levou as mãos, que não parava de suar nem de tremer, até o rosto.

Ouviu passos na escada. Como poderia olhar para sua irmã agora? E para seu pai? E para sua mãe?? Não, não podia, não iria conseguir, ela era uma aberração que quase matara sua irmã! Precisava sair dali. Não para fugir, mas porque não queria ver a decepção de seus pais nos olhos deles. Não, não queria ver sua mãe. Sentia-se a pior pessoa do mundo.

E foi por isso que o quarto foi encontrado vazio pelos bombeiros. Foi por isso que ninguém mais viu Lílian. Ela havia desaparecido.

***

-  Boa tarde, minha querida, em que posso ajudá-la? – perguntou uma bruxa baixa e rechonchuda, de cabelos roxos e com um pequeno óculos na ponta do nariz, que parecia que só não caía por mágica.

-  Eu...eu queria um quarto... o...er...o mais barato...

A bruxa sorriu.

-  Não se preocupe, todos os preços estão baixos ultimamente, afinal, viajar não é mais seguro...

-  Como assim? – Lílian ainda não raciocinava direito.

-  Como se ter segurança se há Comensais por toda parte? Em que mundo você tem estado, criança?

-  No dos Trouxas...

-  Ah, sim, o Ministério sempre tenta protegê-los, sempre escondendo tudo deles... – ela balançava a cabeça em discordância – Mas sim, qual o seu nome?

-  Evans. Lílian Evans.

-  Por favor, querida, me siga…

Lílian seguiu a bruxa, cujo enorme cabelo roxo balançava de um lado para o outro a cada passo, até a última porta do extenso corredor. A bruxa abriu a porta, lhe entregou as chaves e voltou para a recepção.

Após entrar e trancar a porta (que era magicamente à prova do Feitiço de Abertura), jogou sua mala e sua varinha no chão. Mal tinha dado ouvidos à bruxa. Ainda estava em estado de choque, ainda sentia suas mãos tremerem, ainda sentia-se um perigo para a humanidade.

Antes que os passos na escada tivessem atingido a porta do seu quarto em sua casa, Lílian agira rapidamente, pegando sua mala, que já estava pronta debaixo da cama, e sua varinha e desaparatando. Seria melhor se estivesse no mundo bruxo, onde seria um risco menor, do que perto de trouxas desprotegidos. Por isso havia aparatado em Hogsmeade, onde pretendia ficar até o dia seguinte, quando voltaria para Hogwarts.

Na verdade ela ainda não sabia o que faria, mas esse "plano" lhe confortara. Talvez alguém na escola pudesse ajudá-la. Talvez ela precisasse de tratamento.

A garota andou lentamente até o banheiro, sem nem ter notado o quando aconchegante, apesar de humilde, era o quarto em que estava. Assustou-se com o que viu no pequeno espelho pendurado na parede ladrilhada, logo acima da pia. Estava branca, muito pálida, e seus olhos permaneciam arregalados.

Foi então que deu um pulo para trás. O espelho rachou-se sozinho. Ou melhor, ela  fez o espelho rachar. Agora podiam-se ver duas ruivas, de cujos olhos verdes saíam inúmeras lágrimas silenciosas, acompanhadas por uma respiração descompassada, ofegante, amedrontada. Seus reflexos estavam distorcido. E era assim que ela se sentia agora.

Correu para a cama e lá sentou encolhida na cabeceira, abraçada aos seus joelhos, chorando. Após horas de choro, sentiu-se extremamente cansada. Acabou adormecendo e, inconscientemente, deitando na cama.

Acordou já tarde da noite. Desejou mais do que qualquer coisa na vida que tudo não tivesse passado de um sonho. Mas não havia sido sonho. Infelizmente. Foi até o banheiro lavar o rosto. Continuava sentido-se horrível, mas seu reflexo, apesar de distorcido, já estava melhor.

Uma brisa entrava no quarto pela janela. Aquele vento refrescante a fez se sentir bem, nem que por apenas um segundo. Resolveu sair, dar uma volta para pensar.

A noite não estava estrelada, tampouco nublada, apenas escura. Porém, a lua cheia sobressaía-se, iluminando a cidade apagada. Ela andava pelas ruas, sem destino, apenas seguindo o luar. Foi quando percebeu que estava bem longe da pensão, em frente a um casarão abandonado: a Casa dos Gritos.

Sabia das estórias de terror que acompanhavam a casa, mas não teve medo. Seu medo era dela mesma, não conseguia pensar em nada além disso. Mas essa coragem, ou talvez indiferença, durou apenas até ouvir uivos. O mais estranho foi ouvir, além dos uivos, latidos ferozes.

Tinha certeza de que vinham de dentro da casa e isso, ao invés de fazê-la se afastar, fez com que ela se aproximasse do portão da casa. E lá parou, pois uma das janelas frontais foi estraçalhada e um enorme lobo pulou para fora da casa.

Medo.

Seguindo-o, pulou um grande cão negro.

Temor.

Os dois animais lutaram. Patadas, uivos, mordidas, latidos. Outro animal surgiu: um cervo.

Espanto.

O lobo conseguiu desvencilhar-se do cão e, com um pulo, parou em frente à garota.

Pânico.

Entretanto o lobo, de orelhas pontiagudas, grandes olhos amarelos e caninos ferozes, parecia estar imobilizado, não podendo atacá-la. Apenas emitia um som que lembrava um rosnado.

Surpresa.

Então, o cervo colocou-se entre os dois e, usando seus chifres, ameaçou o lobo. Com um forte rosnado, o cão demonstrou que estava pronto para outra luta. O lobo uivou e começou a correr na direção contrária, sendo logo seguido pelo cão de pêlos negro e brilhantes. O cervo, antes de acompanhá-los, virou-se para ela, olhou dentro de seus olhos e fez uma referência, abaixando sua cabeça.

Admiração.

Então Lílian viu um quarto animal correndo em direção aos outros três, um pequeno rato, que guinchava sem parar.

Confusão.

Sentia-se mais cansada do que nunca, como se tivesse gastado muita energia. Foi então que entendeu que fora ela quem impedira o ataque do lobo. Novamente sentia-se num estado de choque. Não saiu do lugar. Não se moveu.

Pareceu voltar à realidade somente quando um homem, vestindo um sobretudo negro esvoaçante, aproximou-se dela. Pela luz do luar, via que o bruxo era alto, loiro e mantinha seus profundos olhos azuis concentrados nela.

Lílian, tomada pelo medo, começou a correr.  Estava tão assustada, confusa, chocada, que não reparou que, ao invés de correr de volta para a pensão, estava indo em direção à cidade trouxa. Procurou por sua varinha, mas não estava com ela. Havia saído sem pegá-la.

Entrou em um beco escuro, entre duas casas. Podia ouvir os passos, sem pressa, do homem. O que parecia apressado, eram as batidas do seu coração.

-  Não tenha medo, minha doce criatura – sua voz era fria – não quero machucá-la... pelo contrário, quero você do meu lado. Venha, quero apenas conversar...

Os minutos pareceram passar como horas. Estava cansada e sem a sua varinha. O desespero aumentava à medida em que os passos se aproximavam do beco. Porém, ele passou direto e os passos começaram a se afastar.

Aproveitando essa oportunidade, Lílian saiu em disparada, mas não correu por muito tempo, pois o bruxo a imobilizou com um feitiço. Imóvel, não pôde fazer nada enquanto ele se aproximava.

-  Finalmente... Agora venha comigo para um lugar menos... um lugar onde não hajam tantos "sangues-ruins".

Ele a segurou pelo braço e começou a guiá-la, então Lílian gritou com toda a sua força enquanto tentava lutar contra o feitiço. Um grito tão estridente que pareceu acordar toda a rua. As janelas da casa à qual estavam em frente se quebraram, se partindo em vários cacos de vidro.

Ao que as luzes interiores de algumas casas se acenderam, o bruxo desaparatou. A garota então percebeu que já não estava mais imobilizada, e isso provavelmente não se devia apenas pela fuga dele, mas por sua luta contra o feitiço. Antes que os moradores chegassem às janelas e portas, ela também desaparatou.

Aparatou em frente à pensão, já que não se podia aparatar dentro dela. Tentando acalmar-se, andava em direção à porta, quando foi parada por dois homens, vestindo ternos brancos, com as gravatas também brancas, que aparataram a sua frente.

-  Nós somos os Ordenadores. Sinto muito, mas a senhorita precisa vir conosco.

-  Como assim? Ir pra onde? – perguntou ela, a voz trêmula.

-  É uma ordem do Ministério. Lá lhe explicarão tudo o que a senhorita precisa saber.

Os três entraram na pensão, onde acenderam o fogo da lareira e, usando o Pó de Flu, os homens a levaram para o que lhe pareceu ser um hospital. Então a entregaram sob os cuidados de uma bruxa de cabelos curtos, azul-claros.

-  Você está bem? – perguntou a mulher, olhando-na de cima à baixo.

-  Sim. – Lílian ainda não entendia o que estava acontecendo.

-  Então venha comigo.

As duas andaram por vários corredores, desceram inúmeros andares de escada e atravessaram dezenas de portas, até a última porta de um corredor branco. Por detrás desta porta, havia um corredor de "celas", separadas e fechadas por grades brancas que, como Lílian pôde notar, eram feitas de borracha.

A bruxa abriu uma das celas e indicou que Lília deveria entrar.

-  Isso não é uma prisão, é apenas para a sua proteção e a dos outros. Essas celas são magicamente isoladas para que nenhum feitiço tenha efeito aqui dentro. Com o tratamento, você logo vai sair daqui...

-  Tratamento? – perguntou ela, incrédula.

-  Por Mérlin, ninguém te explicou nada ainda?? Aqui é o Departamento de Uso Descontrolado de Magia! Você não andou se descontrolando em território trouxa?

De repente, de uma vez só, Lílian se lembrou de tudo o que havia acontecido nesse dia, que mais tinha parecido uma semana. O "acidente" em casa, sua fuga, os animais da Casa dos Gritos, a fuga para a rua trouxa, a luta contra o bruxo... Mas a pior cena em sua cabeça ainda era a do seu quarto em chamas, ouvindo a voz da Petúnia ecoando.

Então, cabisbaixa, ela entrou na cela sem mais perguntas.

-  Você deve retirar qualquer objeto perigoso. Até mesmo relógio, brincos, qualquer coisa pontiaguda... – dizia a bruxa de cabelo azul enquanto trancava a cela.

Mas Lílian não tinha nada para tirar. Havia fugido, sem tempo para se preocupar em se arrumar. Nem mesmo o relógio que tanto gostava estava consigo. O deixara em sua mesa-de-cabeceira e, agora, provavelmente estava quebrado, queimado.

Quando a mulher de distanciou, Lílian olhou ao seu redor e notou uma cama encostada à parede. Parede esta que, assim como o chão e o teto, parecia feita de almofadas brancas. Com as costas nas grades, sentou-se no chão fofo e não pôde resistir a novas lágrimas. Estava cansada, exausta e desesperada. O que iria ser dela agora?

Não ligou nem mesmo para a dor que sentia, devido a um arranhão em seu braço esquerdo que tinha conseguido enquanto se escondia do Comensal.

-  Era tudo o que eu precisava, uma sangue-ruim do meu lado!

Lílian assustou-se com a voz masculina ao seu lado, tinha achado que estava sozinha, mas então viu que havia alguém deitado na cama da outra cela. Alguém de cabelos oleosos.

-  Snape?! O que você tá fazendo aqui?

-  O mesmo que você, sua idiota. Preso.

Como não estava com cabeça para discutir, ela não disse mais nada. O pouco que restava da noite e a manhã passaram-se em silêncio, embora nenhum dos dois tivessem dormido.

Após um almoço, servido numa bandeja de plástico, com pratos e talheres de plástico, Snape foi chamado a uma sala particular. Uma sala ao fim do corredor, cuja porta não era uma grade, era uma barreira de borracha, como que para isolar a sala do resto do mundo.

Lílian andava de um lado para o outro. Levava as unhas à boca, as mãos aos cabelos, olhava para todos os lados. Sentia-se numa verdadeira prisão. Prisão não, um hospício. Não havia ninguém, nenhum contato com o mundo, com absolutamente nada. Era como se fosse uma louca perigosa que precisava ser isolada. Talvez ela fosse. E esse pensamento não a ajudava. Iria enlouquecer.

Algumas horas depois, Snape voltou. Estava do mesmo jeito em que havia saído. Nenhuma melhora, nenhuma piora. Lílian não teve tempo para lhe perguntar nada, pois a bruxa de cabelo azul já estava abrindo sua própria cela, provavelmente para levá-la à sala.

Tudo branco, tudo isolado. Teto, chão, paredes, a porta e as duas cadeiras. Parecia tudo feito de uma substância fofa. Parecia que nenhuma magia funcionaria ali. A bruxa sentou-se na cadeira de costas à porta e indicou a outra, a sua frente, para Lílian.

-  Sinto muito Srta. Evans... – começou a mulher, olhando para uns jornais que trazia consigo – Precisamos começar o seu tratamento o mais rápido possível.

O silêncio de Lílian deve ter feito a mulher perceber que a garota não estava sabendo de nada. Ou talvez tenha sido o olhar assustado da garota, o olhar perdido dela. Por isso, a bruxa lhe entregou os jornais.

-  O primeiro é um jornal trouxa inglês...

Este falava sobre um incêndio, cujas causas eram desconhecidas, que havia destruído metade de uma casa e ferido uma garota. Abaixo, uma foto da casa em chamas com os bombeiros à frente, tentando apagar o fogo. Os olhos lacrimejantes de Lílian mal conseguiam reconhecer a garota na maca que estava sendo carregada por dois bombeiros.

-  O segundo é o Profeta Diário...

Lílian per correu os olhos sobre este, lendo palavras soltas como "Tragédia", "se auto denominam" e "Morte", mas logo focalizou a mesma foto do outro jornal, porém em movimento, sob o título "Uso descontrolado de Magia causa acidente em residência trouxa".

As chamas balançavam de um lado para o outro, enquanto o jarro de água partia das mangueiras dos bombeiros. A maca era levada para dentro de uma ambulância.

"A vítima contou aos bombeiros que o incêndio foi causado por uma bruxa na tentativa de mata-la, por isso o Ministério teve de intervir para apagar suas memórias. Fora o trauma emocional, a garota, Petúnia Evans, está bem e não corre risco de vida. A bruxa culpada está desaparecida."

A bruxa pegou os jornais das mãos trêmulas de Lílian e os dobrou.

-  Sei que você também usou magia ontem à noite. Entende porque é importante começarmos o quanto antes com o seu tratamento? – ela então se levantou – Amanhã voltaremos a conversar sobre isso, por hoje já foi o bastante...

Ela abriu a porta e esperou que Lílian recuperasse seu controle para sair da sala. Depois voltou a trancá-la na sua cela.

-  Não se preocupe, ninguém morreu e você não será acusada de nada, afinal, não foi intencional.... – disse antes de partir.

Lílian e Snape não se falaram pelo resto do dia. Mal se olhavam. Mal sabiam que tinha alguém ao lado.

Até a bruxa do cabelo azul entrar em compania de outra garota. À princípio Lílian pensou que ela fosse colocar a bruxa de cabelos e olhos negros em outra cela, mas o andar firme e a postura superior dela denunciavam o contrário. As duas pararam em frente à cela de Snape e, após a grade ser aberta, a garota entrou. Lílian a reconheceu como sendo aluna de Hogwarts, mas isso era tudo o que sabia sobre ela.

Ao que a bruxa saiu, a garota retirou um pequeno objeto de dentro de seu robe negro e o entregou a Snape.

A conversa, Lílian não pôde escutar, mas viu o triunfo nos olhos dela enquanto saía, quase uma hora mais tarde, assim como a esperança nos olhos dele.

Quando já estava tarde da noite, Lílian despertou de um cochicho ao ouvir seu nome, chamado por um sussurro.

-  Evans!

-  O que é? – perguntou, ainda sonolenta.

-  Vê se acorda, nós vamos sair daqui.

-  O quê?? – a frase absurda a havia acordado por completo.

-  Anda, vem até a grade.

Lílian andou até a grade branca que dividia as duas celas. Snape estava de pé, do outro lado, com um estranho objeto em mãos.

-  O que é isso?

-  Vamos voltar no tempo.

-  Como assim?? Eu não quero voltar no tempo!

-  Não? Então por que está aqui? Não fez nada de errado? Não se arrepende de nada? Não gostaria de que tudo isso não tivesse passado de um sonho?

Aquelas palavras a penetraram ferozmente. Lembrou-se da foto no Planeta Diário. Era óbvio que queria. Mas não via como um vira-tempo podia ajudá-la. Para evitar tudo aquilo teria que, no mínimo, falar como o seu eu do passado para alertá-la. E sabia que isso sempre causa grandes problemas.

-  Não adianta! – disse ela, desespero em sua voz –  Um vira-tempo não vai adiantar!

-  Isso não é exatamente um vira-tempo, é um tipo diferente... é um anula-tempo... você não vai encontrar o seu eu do passado, você vai viver de novo...

Lílian parou por um tempo pensativa, tentando assimilar aquela informação. Parecia uma proposta tentadora, não fosse por uma coisa:

-  Você não pode fazer isso sozinho? – perguntou ela, desconfiada – Por que tá me chamando pra ir com você?

-  Porque um anula-tempo – dizia ele, com sua voz grossa – precisa de muita energia pra funcionar. É perigoso usar sozinho.

-  Então por que você não usou esse troço com aquela garota?

Ele respirou fundo, como quem busca paciência.

-  Porque só vontade não basta, você precisa querer muito usá-lo, precisa ter um bom motivo pra voltar no tempo, e ela não tem nenhum. Nós dois temos. Então, Evans, você vem ou não??

Agindo por impulso, sem deixar seu lado racional pensar nos riscos, nas conseqüências, em nenhum dos problemas que logo veria, ela acenou com a cabeça afirmativamente. Determinação em seu olhar.

Snape aproximou-se o máximo que pôde da grade de borracha. Colocou o estranho objeto na palma da sua mão esquerda. Lílian agora podia ver que se tratava de uma pequena ampulheta, cuja areia, que tinha uma coloração azul-celeste, escorria da parte superior para a inferior da ampulheta.

Entendendo o que Snape queria que ela fizesse, ela colocou sua mão por cima da ampulheta, de modo que o objeto agora estava entre as mãos deles. Nada aconteceu. Lílian pensou que não tivesse funcionado. O que mais faltava fazer?

Então, quando o último grão de areia azul passou pelo estreito meio, ela sentiu como se tivesse sido jogada para trás, fazendo com que ela rodasse várias e várias vezes para trás, sem chão, sem teto, sem cores definidas, sem nada.

De repente, sentiu-se sentada, com a cabeça apoiada nos braços. Ouviu chamarem seu nome.