Capítulo 9
O Pesadelo de Morgan

Mas onde é que eles estarão?

Já tinham percorrido o castelo todo umas vinte vezes, já tinham ido a todas as salas, a todas as passagens secretas, a todas as torres, à cozinha... e nada! Nem um vestígio de Sirius e James. Desde que tinham ido para os balneários que ninguém mais os vira, não tinham sequer aparecido para jantar, o que devia ser um milagre quando tinha o Sirius envolvido, e já começava a ficar tarde. A noite já caíra há bastante tempo e quanto mais escuro ficava, mais Remus e Peter se preocupavam.

Decidiram voltar à Sala Comum, com um aperto no estômago por ignorarem os motivos daquele desaparecimento dos amigos. Teriam ido até Hogsmeade para comemorarem a vitória?

Mas eles nunca iram sem nós, certo?

Bem, no fundo eles não tinham obrigação nenhuma para com Remus e Peter, afinal de contas estes não pertenciam à equipa de Quidditch. Mas bolas, sempre podiam ter-se lembrado, nem que fosse apenas para os avisar, de modo a evitar que eles andassem ali feitos baratas tontas à procura dos amigos.

No entanto, mal entraram na Sala Comum, perceberam que alguma coisa não batia certo. Passaram pelo retracto da Dama Gorda e deram de caras com uma vasta multidão de Gryffindors, uns boquiabertos, outros a falar muito rapidamente para os colegas e outros ainda a sussurrar para si próprios, como se não acreditassem no que viam.

Avançaram mais um pouco, pedindo licença para passar, e o que viram deu-lhes logo a certeza do que se passara com os amigos. Julia Welling estava por trás do que se passara, mais uma vez. Isso até nem os surpreendia, tantas eram as vezes em que se viam envolvidos em todo o tipo de pranks que já as aceitavam como um facto normal do dia-a-dia.

Por toda a Sala Comum, pendurados nos quadros, nas armaduras, nas janelas, espalhados ao longo dos sofás, das mesas, das cadeiras, encontravam-se boxers de todos os feitios e cores, cuecas, tangas e fios dentais, meias com bonecos, buracos e remendos, calças largas, justas e à boca de sino, camisolas de algodão, lã, e flanela, cachecóis vermelhos e dourados, casacos compridos, curtos, de penas, de esponja, de pele de dragão, de troll, etc.

Era um verdadeiro arco-íris de cor, que parecia mais uma montra de uma loja de roupa com as peças todas em exibição, e estava a criar uma grande comoção na Sala Comum, onde se pareciam ter reunido todos os elementos da equipa, para "fofocarem" sobre a última novidade. Mas Julia, nem vê-la. Provavelmente estaria escondida em algum canto, a divertir-se com tudo aquilo.

Recuperados da surpresa, os dois amigos afastaram toda a gente do caminho, gritando uns "Xô! Xô! Toca a dispersar!" e começaram a recolher a roupa toda, para a levarem de volta aos seus donos, nos balneários. Quando passaram pelo retracto, não passavam de um amontoado de roupa, quase nem se distinguindo os corpos de quem transportava aquela roupa ambulante.

Não tinham encontrado os sapatos, portanto os rapazes teriam de passar sem eles. No entanto, bem ao contrário do que esperavam, mal viraram para o corredor que os levaria à escadaria principal, viram um sapato, abandonado ao "acaso" no meio do corredor. Não havia qualquer vestígio sobre o paradeiro dos outros.

Já com uma sensação esquisita na barriga, com a certeza de que algo desagradável se aproximava, avançaram mais um pouco, guardando o sapato. Foi então que se depararam com um espectáculo impressionante, mas horrendo. Ficaram em estado de choque durante alguns segundos, não conseguindo acreditar no que os seus olhos viam.

Todas as escadas, desde a entrada até ao 7º Andar, tinham sapatos espalhados pelos degraus. Mas isso não era o pior. O grande pesadelo era que a escadaria principal era constituída por mais de trinta lances de escadas, todos a moverem-se em direcções diferentes.

Levariam horas para apanhar todos os sapatos, pois havia dois sapatos por cada andar, e em escadas opostas. Como se não bastasse, os rapazes rapidamente se aperceberam que aquilo não iria ser pêra doce. Conforme desciam um andar, a escada com o próximo sapato movia-se para o lado contrário, obrigando-os a andar a subir e a descer a escadaria pelo menos durante meia hora, isto se tudo corresse bem e eles não parassem nem um segundo para descansar.

— Porra, pá! — resmungou Peter, ofegante, após terem finalmente apanhado os sapatos todos. — Aposto que elas enfeitiçaram as escadas!

— Não digas parvoíces! É impossível... — Remus parou um pouco, dando uma nova olhadela às várias escadas, que pareciam ter finalmente voltado ao normal, movimentando-se agora como sempre tinham feito. — Quer dizer... não me admirava nada que aquela Morgan conseguisse arranjar um feitiço para isso...

— Tudo para nos fazer perder ainda mais tempo! E os rapazes, coitados, nus há tanto tempo nos balneários! Ainda por cima com este frio! — Os dois rapazes começaram a fazer o percurso todo de volta, parando várias vezes para apanhar os sapatos que iam caindo à medida que eles avançavam.

— Mas de que é que estamos à espera, então? Mexe-te! — gritou Remus, já sem paciência nenhuma para aturar aquela situação. Era conhecido pela sua enorme tolerância e perseverança, mas havia limites! Quando pusesse as mãos em cima da Welling... — Eles já devem estar a desesperar!

— Não precisas de falar assim comigo, Remus, a culpa não é minha. Não consigo andar mais depressa! — E nisto caíram mais dois sapatos, um par de boxers e três peúgas de cima do monte de roupas que ele carregava, e o lobisomem soltou um grito de frustração, já quase a trepar pelas paredes.

— Porque é que eu não sou bom a Encantamentos??!! Porquê?? — perguntou para si próprio, um dos primeiros sinais de demência. — Seria tudo tão fácil... Devo ter cometido muitos pecados na minha outra vida, é impossível!

Aquele cenário continuou durante quase todo o percurso, até que finalmente chegaram à entrada principal do castelo, que se abriu silenciosamente à frente deles, ajudando-os naquela missão quase impossível.

Ainda era relativamente cedo, e por isso não conseguiram deixar de ficar espantados ao verem que já tinha anoitecido, o que dava um ar um pouco assustador aos campos de Hogwarts. A única fonte de iluminação era a lua em quarto minguante, que brilhava no céu negro, acompanhada de várias constelações de estrelas. Os ramos das árvores abanavam de forma violenta ao sabor do vento, que uivava a intervalos regulares, criando um clima sombrio.

Ao longe, ouviu-se o piar de um mocho e Peter estremeceu, dando um salto para a frente e deixando escapar um grito de terror, quase fazendo com que as roupas caíssem todas ao chão.

— Peter, acalma-te. Poucas seriam as criaturas que ousariam atacar-nos... — Ao ver o ar apavorado do amigo, Remus tentou sossegá-lo, esquecendo por momentos o seu mau-humor.

— Eu sei, mas... — Peter engoliu em seco, respirando fundo e concentrando-se no caminho. Estava a exagerar, afinal aquilo eram tudo efeitos de elementos da natureza. Não havia lugar mais seguro que Hogwarts, estava certo disso.

Quando finalmente avistaram o pequeno edifício de pedra a que davam o nome de balneários dos Gryffindor, ambos suspiraram de alívio, ignorando todo o cansaço que sentiam e correndo na sua direcção, não fazendo a mínima ideia de como iriam encontrar os amigos.


Entretanto, no interior dos balneários dos Gryffindor, Sirius já tinha esgotado todos os insultos que conhecia e até os que inventara no calor do momento, e agora estava tudo silencioso, aguardando a alma caridosa que os salvaria. Como se diz sempre, a esperança é a última coisa a morrer, e eles não podiam fazer outra coisa senão esperar.

Estavam todos espalhados pelos vários bancos, meio sentados ou deitados, tentando cobrir o máximo possível da sua nudez com as diminutas toalhas que tinham conseguido agarrar antes de toda a roupa suja ter desaparecido devido à magia dos elfos domésticos. A única luz presente era a lunar, que entrava pelas janelas dos balneários, tornando todo o ambiente surreal e quase retirado de um filme.

Ninguém dizia nada, já tinham esgotado qualquer tema de conversa. Esperavam apenas a chegada de alguém, de algum salvador que abrisse caminho no meio da escuridão de focos brancos e lhes trouxesse calor e comida, pois necessitavam de ambos. A temperatura tinha descido para baixo dos oito graus, naquela noite de Outono. Tinham a barriga a dar horas e o estômago há muito que se queixara.

O silêncio era apenas quebrado pelo tiritar de vários pares de dentes, cujos donos se tentavam enroscar o máximo possível em si próprios, na tentativa de não perderem tanto calor corporal. Qualquer pessoa pensaria que eles se ajudariam mutuamente, mantendo-se muito próximos uns dos outros, mas eles eram rapazes e machos e nunca admitiriam tais mariquices. Preferiam sofrer e manter a sua dignidade intacta do que serem acusados de actos depravados e mancharem a sua reputação.

No entanto, o mesmo não acontece em alturas de perigo iminente. Foi assim que os cinco rapazes se viram forçados a mudar de táctica, quando ouviram, ao longe, o ruído de passos a aproximarem-se a grande velocidade.

— Vem aí alguém!! — sussurrou Sirius, sem saber muito bem porque estava a falar em surdina.

— A sério? Grande novidade que nos deste ó Black! — retorquiu Jordan de uma forma mais dura, não perdendo qualquer oportunidade para espicaçar Sirius.

A única altura em que os dois rapazes se davam bem era durante os minutos de jogo, em que esqueciam as diferenças e trabalhavam em harmonia para o bem da equipa. Os outros jogadores, como era lógico, já estavam mais que fartos daquela situação, que começara por causa de uma rapariga e que agora arranjava pretexto em qualquer coisa.

— Olha que eu desfaç--- — ia a gritar um Sirius já em pleno movimento, quando foi interrompido pela voz furiosa do capitão dos Gryffindor.

— Calados!! — exclamou Frank Longbottom de modo autoritário, fazendo com que ambos engolissem as suas próximas palavras. — Não é altura para andarem a discutir. Resolvam as vossas diferenças lá fora, não há lugar para rivalidades internas na minha equipa! Entendido?

Sirius e Kevin trocaram olhares de profundo rancor, cada um tentando expressar ao outro tudo aquilo que não podia dizer por palavras. Após alguns momentos de grande tensão, lá acabaram por desviar os olhos para Frank, que ainda aguardava a resposta dos dois.

— Sim, capitão!! — exclamaram, então, em coro, para grande risota de James e Jordan, que ainda riram mais ao verem Sirius fazer a continência na direcção do "treinador" da equipa.

Frank revirou os olhos àquele gesto, já mais que habituado à estupidez de Sirius Black, e ergueu-se para uma posição mais defensiva, com uma expressão pensativa no rosto.

— Quem é que vocês acham que é? — perguntou Wood enquanto se levantava e se dirigia para a beira da janela, na tentativa de conseguir ver o que se passava no exterior dos balneários. — Merda, não dá para ver grande coisa... Se forem os Slytherin estamos fritos, sem varinhas para nos defendermos.

— Achas mesmo que as serpentes iam sair do ninho a estas horas? Ninguém perfeitamente são abandonaria o quentinho do castelo com este frio.. — foi a vez de James intervir, com um arrepio.

Um silêncio um pouco incómodo seguiu-se às palavras de James, que era apenas interrompido pelos sons de quem se aproximava. Finalmente, todos os ruídos cessaram, e dois vultos pararam mesmo em frente à pequena janela, húmida pelo orvalho nocturno.

— Preparem-se... — murmurou Longbottom com a mesma força de quem lidera um jogo de Quidditch, e ninguém contestou a sua autoridade, mais que habituados a seguir as suas ordens.

Levantaram-se todos sem o mínimo ruído, chegando-se mais perto uns dos outros, na tentativa de se defenderem melhor contra qualquer eventualidade. A maçaneta da porta rodou, e esta deslizou suavemente para a frente, rangendo ligeiramente. A luz da lua iluminava agora toda a entrada, mas as faces dos desconhecidos continuavam ocultas pelas sombras.

Os cinco rapazes trocaram olhares entre si, indecisos sobre como haviam de prosseguir. Uma rajada de vento fez-se ouvir no exterior, atirando os ramos das árvores uns contra os outros e uivando como um lobisomem numa noite de lua cheia.

Durante alguns segundos, ninguém se mexeu, nem mesmo para respirar. Depois, um dos indivíduos deu dois ou três passos para a frente, deixando cair um grande saco ao chão e tirando a varinha do bolso do manto em seguida, erguendo-a na sua frente.

James engoliu em seco, tentando lembrar-se de alguma das lições de defesa que o pai lhe dera quando era criança, mas não conseguia recordar-se de nenhuma. Tinha a mente completamente vazia. A sombra da morte pairava por cima das suas cabeças e eles estavam completamente desarmados, sem qualquer possibilidade de se defenderem.

Lumos... — sussurrou uma voz que lhes parecia vagamente familiar, e em poucos instantes um pequeno foco de luz saiu da varinha do desconhecido, iluminando-lhe perfeitamente a cara, rosada do esforço físico e coberta de suor.

— Remus, és tu!! — gritaram James e Sirius ao mesmo tempo, correndo para abraçar o amigo, enquanto os outros três se voltavam para Peter, que tinha ficado parado na porta a recuperar o fôlego, ainda branco como a cal.

— É claro que sou eu! Mas vocês estavam à espera de quem? — perguntou o lobisomem, perplexo com a recepção dos amigos.

Os dois Marauders trocaram olhares entre si, voltaram os olhos para os restantes jogadores da equipa de Quidditch e em seguida para os dois companheiros de dormitório e desataram-se a rir às gargalhadas, perante o olhar atónito dos outros presentes.

— Xiiii... Nós aqui a pensar que vocês iam fazer uma grande festa... Bando de ingratos é o que vocês são! Se soubessem o que tivemos que passar por vocês... disse Peter com voz rouca.

— Oh Pete, não é nada disso! — exclamou James, ultrajado.

— Nós... hum... — começou Sirius, subitamente embaraçado. — Quer dizer... pensávamos que vocês eram... hum... o inimigo?

Remus soltou uma gargalhada.

— Vocês estavam com medo?

— Oh Moony, não sejas parvo! — foi a resposta de James, que corou um pouco.

Entretanto, os outros elementos da equipa de Quidditch tinham acabado de descobrir que o "saco" afinal não era saco nenhum, mas sim parte das roupas e sapatos que tinham desaparecido. O restante ainda estava nos braços de Peter, que se via e desejava para as segurar a todas.

— Será que já nos podemos vestir? — perguntou Jordan secamente, que tinha perdido a toalha naquela confusão toda e tentava tapar as suas partes íntimas com uma das mãos.

— Podias ao menos agradecer, não achas? — voltou Sirius à carga, não podendo deixar passar aquela oportunidade. — Anormal...

— E pronto... Lá começam eles outra vez! — comentou Wood enquanto remexia na pilha de roupas, procurando as suas.

— Vá, deixem-se disso! Vamos a despachar, estou esfomeado — James estava já praticamente vestido e calçava agora as botas de Inverno, enquanto tentava desviar a atenção de Sirius, falando-lhe em comida.

Remus e Peter esperaram, em silêncio, que os outros rapazes acabassem de se vestir, e quando já estavam todos arranjados, abriram a porta da rua, pela qual saíram todos para o exterior.

— Mas onde é que estavam as nossas roupas? — perguntou James de repente. — Vocês viram a Welling? Tiveram que lutar pelas roupas?

Remus e Peter trocaram olhares de divertimento, rindo um pouco.

— Não foi nada assim tão dramático, asseguro-te... — respondeu Remus, ainda indeciso sobre o que contar.

Mas a decisão acabou por lhe ser tirada das mãos, porque Peter lançou-se numa enorme explicação, contando todos os detalhes, desde que se tinham separado até à viagem até aos balneários, passando pelas aventuras da procura dos rapazes e de apanhar os sapatos nas escadas. Os outros ouviram tudo em silêncio, enquanto se dirigiam para o castelo.

— Quando eu puser as mãos na Welling, eu juro-vos... — Os olhos de Sirius brilharam perigosamente.

Tinham chegado, finalmente, à porta principal de entrada para o castelo, onde se separariam.

— Então Sirius! Acalma-te lá! Quem ri por último ri melhor, não é?

Sirius torceu o nariz, mas acabou por assentir com a cabeça. Sim, Frank tinha razão. A Welling não se ficaria a rir, não ficaria mesmo. Lá por ela ter um sorriso lindo e um cabelo super sedoso, não quer dizer que possa fazer de mim gato sapato! Espera-me, Julinha, espera só!

James, ao ver que o amigo se encontrava perdido nos pensamentos de vingança, tomou o controle da situação.

— Sigam para a Sala Comum. Nós vamos às cozinhas buscar comida e já vamos ter convosco, está bem?

— Mas não demorem muito, ok? Já nem sinto o estômago.

— Não se preocupem. Aposto que ainda chegamos primeiro que vocês... — foi a resposta misteriosa de Sirius, que parecia ter voltado a si, apressando-se a liderar os outros até às cozinhas.


— Tu fizeste o quê?!! Digam-me que ela está a gozar... — Severus olhou de Julia para Lily e depois para Morgan, tentando não mostrar a sua surpresa e satisfação, mas falhando redondamente. Os seus olhos, que estavam ligeiramente mais abertos do que o habitual, e os lábios, que tentavam, em vão, resistir ao sorriso que ameaçava iluminar-lhe o rosto, eram provas mais do que suficientes para esclarecer quaisquer dúvidas.

Estavam as três em volta da cama dele na enfermaria, Julia sentada em cima da cama ao seu lado esquerdo, e Morgan e Lily assentadas em cadeiras, uma de cada lado da cama. Ele também estava sentado, recostado nas almofadas, e ia comendo do tabuleiro preparado por Madam Pomfrey enquanto falava com as amigas.

Elas tinham passado pela enfermaria antes do jantar, ansiosas por saberem noticias sobre o seu estado de saúde, mas Madam Pomfrey informara-as que Severus estava a dormir e que precisava muito de descansar, pois tinha esgotado algumas reservas de magia do seu corpo e tinha que as recuperar. Por causa disso, só teria alta na manhã seguinte, mas elas tinham sido autorizadas a voltar depois do jantar, para lhe fazerem um pouco de companhia.

E ali estavam elas, fazendo os possíveis e impossíveis para o animarem após mais uma derrota dos Slytherin num jogo contra os Gryffindor, mas Severus nem estava tão chateado quanto elas estavam à espera. Já tinha sorrido várias vezes, fizera alguns comentários ao jogo e em particular ao seu voo espectacular, e até tinha aguentado os 20 minutos de sermão que Lily lhe dera por ter sido tão imprudente sem pestanejar.

— Infelizmente é verdade — resmungou Lily enquanto lançava um olhar reprovador a Julia, mas todos puderam ver que ela tentava esconder um sorriso. — Esta rapariga não tem o mínimo juízo, e qualquer dia acaba por se arrepender.

— Oh, vá lá! Também não é preciso dramatizar. Correu tudo bem, não correu? Adorava ser uma mosquinha para poder ver as caras deles quando descobrirem... Porque é que não instalei uma câmara nos balneários?

— Porque isso seria uma tremenda falta de respeito para com a privacidade deles?

Julia encolheu os ombros, começando já a fazer beicinho. Severus abanou a cabeça carinhosamente na sua direcção, fazendo-lhe uma festa terna na bochecha e levantando-lhe a cabeça para cima pelo queixo, para que ela o olhasse directamente nos olhos.

— Perdoa-lhes, Julia, que elas não sabem o que dizem... — murmurou-lhe suavemente com um sorriso. Sabia que ela estava a brincar, como sempre fazia, mas não conseguiu resistir a comentar daquela forma, sabendo que isso tiraria Lily do sério novamente.

— Blasfémia! Severus, já te disse várias vezes...

— Pronto, pronto, eu retiro o que disse... Fogo, já não se pode brincar agora. Julia, love, só tu é que me compreendes — Fez uma pausa dramática, durante a qual Morgan aproveitou para lhe atirar com uma almofada, que caiu mesmo em cima da tigela da sopa, por sorte vazia, e depois prosseguiu. — Falando a sério--

Contudo, foi interrompido pelo ruído abertura da porta que dava para o exterior, pela qual entrou o Professor Orpheus, carregado com frascos e mais frascos de poções de todos os tipos e cores, que se dirigiu para um dos armários, começando a arrumá-los.

Sem meias medidas, Lily levantou-se logo num salto, quase correndo na direcção do professor de Poções, sob o olhar curioso e divertido dos amigos. Daniel levantou a cabeça ao sentir movimento, ficando muito surpreendido com a presença dela, e quase deixava cair os dois frascos de "Dreamless Sleep Potion" que tinha nas mãos, mas conseguindo segurá-los a tempo, felizmente.

— Precisa de ajuda, professor?

Ele pareceu surpreso por momentos, mas recuperou logo de seguida. Apontando para a caixa repleta de frascos, tentou conter o orgulho e admiração que sentia por Lily Evans que, apesar de não ser uma aluna com um talento natural e inigualável a poções como Severus, se esforçava ao máximo por ser uma aluna exemplar.

— Já que oferece tão prontamente, miss Evans, seria uma enorme falta de respeito não aceitar... — respondeu-lhe o professor num tom de voz mais gentil que o habitual.

Lily sorriu timidamente, começando imediatamente a arrumar as poções no armário por categoria e ordem alfabética. Poucos minutos depois, já todos os trinta e oito frascos estavam perfeitamente acomodados nas prateleiras, e Daniel Orpheus agradeceu a colaboração de Lily, caminhando em seguida para junto da cama de Severus.

— Então, Severus, pronto para outra? — perguntou com um sorriso que muito poucos viam.

Severus era o único aluno a quem ele tratava pelo primeiro nome. Era nítida a cumplicidade entre ambos, nascida de uma paixão em comum, que praticavam quase todos os fins de semana num dos laboratórios privados de Hogwarts. Era certo e sabido que o jovem Slytherin continuaria a estudar Poções depois de acabar o seu 7º Ano sob a tutelagem de Orpheus, um dos maiores mestres do seu tempo na arte.

— Perfeitamente, professor. Agora que experimentei não quero outra coisa — Severus sorriu para Lily, que entretanto recuperara o seu lugar junto da cama dele, sabendo muito bem que estava a brincar com o fogo mas não se conseguindo controlar. A Gryffindor em causa lançou-lhe um olhar digno de McGonagall, atirando-lhe com uma das almofadas da cama ao lado.

— Pregaste-nos um valente susto, foi o que foi — foi a resposta do professor, agora no tom que reservava para os verdadeiros desastrados a Poções. Mas vendo Severus baixar os olhos, acabou por prosseguir, elogiando o que merecia ser louvado. — Mas que foi uma grande defesa, isso ninguém pode negar...

— Ah, aqui o Sev é o orgulho da equipa de Slytherin... em muitos sentidos — meteu-se logo Julia pelo meio, nada embaraçada por estar a falar com um professor quase de igual para igual.

— Ao contrário de outros... — e o olhar do professor deslizou de Severus e Julia para Morgan, que tinha estado a tentar desaparecer para dentro da cadeira desde a entrada do seu chefe de equipa.

Um silêncio de cortar à faca apoderou-se da sala após estas palavras. Severus, Julia e Lily queriam muito defender a amiga, mas não tinham coragem de ir contra as palavras de um professor, muito menos o professor de Poções, que era conhecido pelo seu temperamento difícil.

Um olhar de Severus para Morgan revelou-a de olhos muito abertos e com uma expressão assustada. Mordia o lábio inferior e fincava as mãos com toda a força nos braços da cadeira, como se a sua salvação dependesse apenas daquele objecto. Ele nunca conseguira compreender o medo absurdo que a rapariga sentia de Orpheus, especialmente porque ele adorava a pessoa em causa, mas a companheira de equipa ficava branca como a cal, tremendo ligeiramente e a gaguejar, sempre que se mencionava sequer o nome de Daniel Orpheus.

A culpa é daqueles idiotas dos Marauders!, pensou com desprezo. Espero que a prank da Julia lhes sirva de lição, mas duvido. Não há maneira deles aprenderem...

E foi nessa altura que tomou uma decisão. Não podia deixar de defender a amiga, que parecia uma criança com medo dos monstros debaixo da cama, mesmo que para isso tivesse que ir contra o seu professor favorito e mentor.

Contudo, não teve tempo sequer de abrir a boca, porque Morgan, movida por uma força interior que nunca antes sentira, se levantara rapidamente, fazendo com que a cadeira caísse para trás, e fugia já porta fora, gaguejando qualquer coisa parecida com "Te-tenho qu'ir, tra-trabalhos p-pa faze-er", apesar de ser um sábado e não haver aulas no dia seguinte.

Ficaram todos feitos parvos a olhar para a porta durante alguns segundos, que ainda abanava. Morgan saíra da ala hospitalar num piscar de olhos, mal tinham tido tempo de notar o que se passara.

O professor Orpheus foi o primeiro a recuperar, não resistindo ao sorrisinho perverso que teimava em aparecer-lhe no canto da boca. Já não dava para evitar, era quase uma reacção instantânea falar com a Welling dos Slytherin daquela forma, porque a rapariga era um autêntico desastre na sua aula e a coisa que ele mais detestava era falhanços.

Quando os três amigos recuperaram daquela saída supersónica, trocaram olhares entre si ao verem o ar de satisfação que emanava do mestre de poções. Ele parecia tirar grande prazer do tormento de Morgan, como se o medo que ela sentia quando estava perto dele alimentasse qualquer coisa no seu interior. Mas aquela situação só se passava com Morgan, e isso irritava-os profundamente, porque todos sabiam que a culpa não tinha sido dela, mas ela ficara marcada para sempre aos olhos do professor, e agora já não havia nada a fazer.

— Professor... — começou Severus, decidido a terminar de vez com tudo aquilo.

Mas Orpheus ergueu a mão, indicando que ele devia permanecer em silêncio, e ele não teve outro remédio senão obedecer, tão habituado que estava a seguir as ordens do professor ao mínimo detalhe. Seria impossível trabalharem juntos de outro modo, e aquelas aulas ao domingo à tarde eram a maior fonte de prazer na sua vida, e ele não estava disposto a abdicar delas.

— Para a próxima Severus... — foi a resposta curta que recebeu, mas Daniel não ficou por ali, vendo o olhar que as duas raparigas presentes lhe lançavam. — Não era minha intenção...

Deixou a resposta no ar durante alguns segundos, caminhando em seguida até à porta. Despediu-se com um pequeno "Boa noite" e no instante seguinte já tinha desaparecido, deixando Severus, Julia e Lily ainda a ferver de fúria e com ânsia de revolta.

— Temos que fazer alguma coisa... — murmurou Julia no seu tom mais fatal. — Isto já está a ultrapassar todos os limites, a Morgan tem cada vez mais pavor ao homem! Temos que arranjar maneira de provar ao prof que a única coisa que a impede fazer as poções em condições é o medo que ela sente por ele. Ela fica completamente paralisada e ele devia saber disso...

— Alguma sugestão? — perguntou Severus, e sorriu ao ver o brilho repentino nos olhos de Lily. Percebeu que a amiga tinha um plano, e os planos dela eram sempre geniais.

— Por acaso até tenho — respondeu Lily com uma expressão de alguém que está muito satisfeito consigo próprio. — Mas temos que a planear muito bem e deve demorar um pouco a ser executada... Tem que ser tudo perfeito!

— Então de que é que estás à espera? Conta, conta! — gritou Julia, já em pulgas, quase saltando da cama de tanta excitação.

Eram raras as vezes em que Lily engendrava alguma coisa, mas quando isso acontecia era mesmo inesquecível. Ela tinha uma grande imaginação e pensava sempre em tudo. O plano correria às mil maravilhas, pela certa.

— Já lá vou, já lá vou... Tenho que aproveitar bem os momentos em que tenho a atenção completa de suas majestades — brincou um pouco enquanto se chegava para mais perto de Severus e acenava a Julia para se aproximar para que pudessem falar em segredo. — É simples, caros amigos... Só precisamos de fazer com que o professor Orpheus veja que a Morgan tem tanta capacidade para poções como nós as duas...

— Lily, sabes muito bem que ela fica em estado de choque sempre que vê o stôr, e nas aulas parece esquecer-se de tudo o que aprende com o Sev. Não sei como provaríamos que é tudo por casa de todo aquele medo irracional que se apodera dela sempre que o Orpheus se aproxima a um raio de cinco metros.

— Bem... Poderíamos usar as "aulas" do Sev para isso. Bastava convencermos o professor a assistir a uma sob o efeito de uma poção que o tornaria invisível e assim poderia observar a Morgan sem ser visto. Ela não saberia de nada, claro, e não ficaria nervosa nem assustada, agindo como faz normalmente nas explicações. Era perfeito!

— Modéstia à parte, Lily, claro... — Severus passou a mão pelo cabelo, um gesto que lhe era natural sempre que estava emergido em pensamentos profundos. — Mas até nem era mal pensando... Pena que agora tenhamos que esperar semanas até que ela se acalme a ponto de se conseguir concentrar em poções sem se lembrar do sucedido.

— Também não é assim tanto...

— Sabes bem que é, Juls. Ela fica sempre num estado de nervos tal que vou passar semanas a tentar acalmá-la o suficiente de forma a aumentar-lhe a autoconfiança.

— Bem, mas então estamos combinados? Daqui por algumas semanas, quando todo este incidente estiver esquecido, atacamos!! — exclamou Lily com um sorriso.

A possível resposta dos amigos acabou por ser interrompida pela chegada de Madame Pomfrey, que com dois ou três olhares duros e umas quantas palavras ríspidas as tinha "expulsado" da enfermaria, alegando que o seu paciente precisava de muito repouso para poder recuperar do choque que tinha sofrido.

Após abraçarem e beijarem Severus, prometendo que voltariam no dia seguinte bem cedo para o acompanharem até ao Grande Salão a tempo do pequeno-almoço, as duas raparigas lá acabaram por se dirigir para a torre dos Gryffindor, ainda a pensar no problema de Morgan.


Nunca uma aula de História da Magia fora tão aborrecida, pelo menos para Morgan. O professor Binns dissertava já há mais de meia hora sem parar, no mesmo tipo de discurso monótono e grave de sempre, como se estivesse a recitar um texto decorado na noite anterior.

Claro que, certamente, aquela não seria a melhor maneira de dar a aula, como se podia comprovar pela falta de atenção geral. Uns jogavam cartas, outros liam revistas, outros faziam os trabalhos de casa da aula seguinte, outros, tal como Morgan, roíam o topo da pena, com a cabeça apoiada na mesa, enquanto desenhavam nas bordas de um pergaminho, com um ar distraído.

Quando estudava a matéria por si, na Sala Comum, Morgan até a achava interessante, mas aquelas aulas eram um suplício. Até já havia gente a dormir! E o professor continuava naquela apatia, sem parar uma única vez para descansar! Nem sequer se parecia dar conta da presença dos alunos e, pelos vistos, nem a sua morte alterara a sua atitude. A aula do professor Binns continuava a ser a mais chata e aborrecida de todas.

— ...e, vinte e cinco mais tarde, Isabella voltou a lutar pelos direitos dos cepa-torta, afirmando que, apesar de não possuírem qualquer poder mágico, deviam ser tratados como o resto dos feiticeiros, alegando o Decreto nº 135, da Declaração dos Direitos do Mundo Mágico Britânico... — continuava Binns, no seu tom monocórdico.

Nós é que nos devíamos juntar e lutar pelos nossos direitos! Credo, nenhum aluno deveria ser obrigado a passar por este martírio!

Soltou um suspiro bastante audível que, no entanto, e para não variar, passou despercebido ao professor. Olhou para a carteira ao lado, onde Severus se entretia a ler um livro de Poções, muito provavelmente a pensar numa nova receita para uma poção prática e útil.

Já tinha saído da enfermaria há três dias, e fora recebido com uma enorme salva de palmas no Grande Salão, que o levaram a encher o peito de orgulho. Até James o tinha aplaudido, com uma grande admiração, não ligando nenhuma aos comentários chateados de Sirius, que ainda não esquecera a humilhação que passara nos balneários.

Nem depois de ter confrontado Julia na Sala Comum e ter descarregado nela todas as suas frustrações (tinham passado meia hora a insultar-se fortemente perante os olhares desesperados dos outros alunos, segundo Lily), se sentira minimamente recuperado daquele trauma a que tinha sido sujeito.

O discurso de Binns continuava, cada vez mais monótono, acerca de decretos, declarações e cepa-tortas, e Morgan começava a ouvi-lo cada vez mais ao longe, bastante distante e muito baixinho. Sentia a cabeça pesada e decidiu pousá-la por uns momentos, aproveitando para fechar também os olhos, que lhe queimavam de cansaço.

Quase sem se dar conta, deixou-se adormecer, entrando num sonho em que ela e Julia estavam em frente a uma estante cheia de livros de Encantamentos, na Flourish & Blotts.

Morgan, não vamos ficar aqui o dia todo, pois não? — perguntava uma Julia aborrecida, que torceu o nariz ao olhar para a quantidade de livros repletos de feitiços expostos à sua frente.

Oh Julia, tem calma! Sabes que tenho que aproveitar. Não é todos os dias que o pai nos dá tanto dinheiro para comprarmos o que quisermos. É preciso ponderar muito bem... Ah! Tenho de levar este! E um exemplar daqueles! E aquele ali!

Morgan saltitava de um lado para o outro, toda entusiasmada, qual criança em frente a caixas de rebuçados, enquanto pegava nos livros mencionados e os colocava num monte em cima dos braços de Julia, que estava encostada a um dos armários, com cara de frete.

Uma vaga de calor tinha assombrado toda a Inglaterra naquele mês de Julho, com a temperatura a atingir os 40ºC em muitas cidades pouco habituadas a tanto sol. No entanto, parecia que todos estavam imunes àquele calor, dando longos passeios por Diagon Alley a comer gelados ou parando para beber um refresco.

A Flourish & Blotts estava lotada de pessoas, que procuravam livros ou apenas uma sombra onde se refugiar. Crianças corriam de um lado para o outro a gritar, ainda com bigodes dos gelados, enquanto as mães discutiam as últimas novidades dos feiticeiros famosos junto aos livros de cozinha.

As duas gémeas tinham aproveitado aquele dia mais fresco (se é que se podia considerar assim, tendo em conta a temperatura ambiente) para irem até à Diagon Alley gastar o dinheiro que tinham recebido na semana anterior, como prenda de aniversário. Os pais de ambas tinham decidido dar-lhes uma quantia em dinheiro que desse para elas comprarem o que quisessem, não correndo assim o risco de lhes dar algo que elas não gostassem.

Morgan tentava apressar-se na escolha dos livros, uma tarefa quase impossível devido à grande variedade existente. De cada vez que olhava para uma prateleira encontrava milhentos manuais interessantes, que não podia deixar para trás. Se calhar ainda teria de acrescentar do seu próprio dinheiro ao que recebera, mas se assim acontecesse seria por uma boa causa.

Mana, despacha-te! Ainda queria passar pela Gambol & Japes antes de irmos embora... — Julia estava mesmo a desesperar, querendo refugiar-se na loja de truques e brincadeiras.

Calma, calma! Estou mesmo quase, prometo — foi a resposta vaga da irmã, que só tinha olhos para toda aquela fonte de conhecimento.

A sineta da porta voltou a tocar, anunciando a entrada de mais pessoas, que procuravam proteger-se do sol enquanto aproveitavam para fazer as suas compras. Tinha sido assim toda a manhã, o que indicava não só a grande popularidade da loja, mas a sua importância na vida comercial de Diagon Alley.

Morgan reconheceu vários colegas da escola, que vinham acompanhados pelos pais e irmãos. Cumprimentou-os a todos com um sorriso de orelha a orelha, sentindo toda aquela alegria contagiante espalhar-se pelo corpo, arrastando-a até às nuvens. Olhou novamente para Julia, que parecia distraída a falar com Katherine Johnson acerca das férias e das prendas que tinha recebido nos anos, agora que tinha pousado todos os futuros livros da irmã na mesa em frente ao armário.

Voltou-se outra vez para a estante, fazendo a sua última selecção após verificar todos os livros outra vez, incluindo os que a irmã tinha abandonado em cima da mesa. Tinha que pensar em todos os aspectos, pois só teria outra oportunidade no ano seguinte e aquilo que comprasse teria que ser suficiente para o ano lectivo que se aproximava.

Pronto, mana. Acho que já tenho tudo o que quero — disse para Julia, voltando-se na sua direcção quando se tinha finalmente decidido.

Vamos aproveitar então que não está ninguém na caixa — foi a resposta da irmã, que pegou em alguns dos livros que ela carregava quase sem poder.

Despediram-se de Kat, dirigindo-se para o balcão de pagamento. Porém, não tinham dado mais do que meia dúzia de passos quando foram surpreendidas por uma forte explosão, que abalou a loja e arredores e cobriu a luz intensa que entrava pelas janelas com uma nuvem gigantesca de pó, partindo vidros, destruindo portas e causando o pânico e um verdadeiro caos.

Dentro da loja, imersa numa repentina escuridão devido à mistura de poeira, vidros e armários destruídos, reinava a confusão total, agravada pelo barulho vindo do exterior. Gritos angustiantes, passos de pessoas a correr, a colisão de corpos com matérias sólidas e o súbito som de um trovão, que fez estremecer o chão da loja e a encheu, por momentos, de uma luz verde sobrenatural.

Morgan, que tinha deixado cair os livros ao chão e se aninhara atrás de uma estante com Julia, manteve-se muito quieta no seu sítio, agarrando-se com todas as suas forças à varinha, o único objecto capaz de a ajudar a conter o pânico que a invadia. De todos os lados, ouviam-se vozes preocupadas e passos de pessoas, que procuravam assegurar-se se todos estavam bem.

Julia também continuava agachada, muito encolhida e de olhos fixos na irmã, com uma expressão assustada. Todos se interrogavam sobre o que teria acontecido, mas ao mesmo tempo tinham medo de enfrentar a realidade daquela explosão e dos gritos que se ouviam de fora da loja, a implorar pela vida ou a desesperar por ajuda.

De repente, tudo parou. Do exterior, só se ouviam os constantes trovões de luz verde esmeralda e a chuva intensa, que batia na calçada com toda a força. A súbita mudança do tempo apenas criava um ambiente mais tenso e assustador, intensificando o clima de pavor sentido por aquelas pessoas, que olhavam para todos os lados, em busca de uma saída.

Em alturas de perigo, o único instinto do Homem é a sobrevivência.

Foi então que, como que movidos por uma força invisível, todos se levantaram e correram para a porta principal, numa tentativa de escaparem daquele pesadelo. No entanto, ninguém naquele ataque estava destinado a ser poupado e, mal se aproximaram da entrada, o chão começou a tremer, derrubando livros, estantes e prateleiras, aprisionando algumas pessoas e ferindo outras.

As que escaparam ilesas, entre elas Morgan e Julia, investiram novamente em direcção à porta, movendo-se quase em piloto automático. Contudo, algo extraordinariamente poderoso, a força invisível de um feitiço contra o qual não podiam lutar, empurrou-as contra o fundo da loja, contra as prateleiras e as estantes, deixando algumas pessoas inconscientes e outras gravemente feridas.

Se a confusão antes já era monumental, agora o caos reinava. O chão do fundo da loja transformara-se num grande mar de corpos, uns por cima dos outros, tornando praticamente impossível qualquer movimento. As crianças choravam e gritavam de medo ou dor, os adultos faziam tudo para acalmar o pânico que tomava conta da atmosfera. Por toda a parte, o dilema que se enfrentava era apenas um. A dúvida entre salvar-se a si próprio ou arriscar a vida a salvar outros.

Perdidas no meio da confusão, as duas gémeas tentavam a todo o custo levantar-se, sabendo que não havia tempo a perder. Morgan tentou afastar os pensamentos do grande corte que tinha na coxa, que se juntara às milhares de nódoas negras que lhe cobriam o corpo, concentrando-se apenas num único objectivo. Agarrar em Julia e correr dali para fora, não importava para onde.

Fazendo um esforço quase sobre-humano para se levantar, a gémea de Slytherin não reparou no armário, completamente danificado, à sua esquerda, agora com apenas três pernas, nem no homem que cambaleou lentamente até ele, procurando alguma coisa para se equilibrar. Morgan pôs-se de pé o mais rápido que conseguiu, respirando fundo para controlar a dor na perna. Calma Welling, pensou. A dor não é real, é apenas fruto da tua imaginação.

De olhos fechados, a rapariga não viu o armário desfazer-se completamente, nem os livros voarem na sua direcção. No meio da confusão, os gritos de Julia soaram abafados, não a alertando para o perigo que caía sobre ela. Como instinto, Morgan levantou as mãos para se proteger, esquecendo-se totalmente da varinha, que caiu para o chão.

Pareceu-lhe ouvir um grito que soou na sua voz, seguido das pancadas que sabia que chegariam. Sentiu as pernas falharem-lhe, a cabeça a andar à roda. Do outro lado da sala, ouviu-se mais uma explosão. Tentou erguer-se, apoiando-se nos joelhos, e abriu os olhos, não sabendo quando os tinha fechado. A imagem de Julia surgiu-lhe lá ao longe, como se fosse uma miragem. Os olhos castanhos cheios de lágrimas, a cara suja, coberta de cortes e sangue.

Morgan tacteou o chão, procurando o pedaço de madeira que lhe poderia salvar a vida. Sentiu uma ponta, depois a outra. Não pode ser!! Oh, por favor... Olhou para baixo, mal conseguindo abafar um grito. A sua querida varinha, a sua salvação. A melhor amiga de todos os feiticeiros encontrava-se partida ao meio, não passando agora de um pedaço de madeira inútil.

A partir daquele momento, soube que não havia saída possível, que acabaria por morrer ou, pior, ser torturada durante tempos infinitos. Sentiu as lágrimas queimarem-lhe os olhos, deslizando pela face até ao queixo e perdendo-se no pescoço. A cabeça latejava de dor, no local onde poucos segundos antes tinha caído um exemplar pesadíssimo. Levou a mão à ferida para avaliar os danos, apercebendo-se que devia ter uns cinco centímetros de comprimento. Quando olhou para os dedos, viu que estes estavam ensopados em sangue, escuro e viscoso, o que só podia ser mau sinal.

Conteve um vómito, tentando ignorar as dores que se espalhavam por todo o corpo, e procurou levantar-se novamente, sentindo o tempo a escassear. Qualquer coisa lhe dizia que eles estavam muito próximos, apesar de não saber muito bem quem eram. Quando estava finalmente em posição vertical, encostou a cabeça ao móvel mais próximo, um dos poucos que ainda se mantinha firme.

Focou o olhar na irmã, posicionada a poucos metros de distância, que tentava esconder a sua expressão de pavor, procurando manter-se calma. Percorreu-lhe todo o corpo com os olhos, examinando a sua condição física. Nada de grave lhe saltou à vista e Morgan soltou um suspiro de alívio, tentando chegar-se para o pé dela. Queria tanto assegurá-la que estava bem, que conseguiriam escapar dali ilesas, dizer qualquer coisa, mesmo que fosse mentira, só para a conseguir acalmar. Mas nenhum som saía da sua garganta, parecia ter perdido a capacidade de falar.

Julia tentou ajudá-la a manter o equilíbrio, segurando-a com tanta força no braço que ela não conseguiu conter um uivo de dor. Mas a irmã não a largou, muito pelo contrário, apertou-a ainda mais, deixando de conter as lágrimas, que lhe escorriam pela face em dois rios infinitos. Olhar para os olhos dela era como se se estivesse a ver ao espelho. Toda a angustia e desespero que sentia estavam reflectidos naquelas duas íris cor de chocolate.

Durante momentos, Diagon Alley esteve submergida num silêncio quase total. Apenas se ouvia a chuva, que diminuíra de intensidade, caindo suavemente do céu. A calma antes da tempestade, o aviso final.

Na livraria, agora praticamente em ruínas, todos pareciam estar à espera de um milagre, pedindo apenas misericórdia. Mas ninguém ouviria as suas preces, nem mesmo o Deus dos muggleborns. O fim estava próximo e não havia nada a fazer para além de aguardar uma morte digna e rápida.

E foi então que uma sombra negra se abateu sobre a entrada destruída da loja. Eram eles. A hora tinha chegado. Um a um, com uma calma e frieza temíveis, foram entrando e posicionando-se numa espécie de ordem esquemática. As pessoas não conseguiam tirar os olhos daquela visão hipnótica da morte, inconscientemente conscientes da força invencível que se apoderara do ambiente.

Nunca tinham visto uma imagem tão pavorosa, aquela combinação perigosa entre o bem e o mal, as trevas e a luz. Longos mantos escuros como a noite contrastavam com máscaras brancas, que ocultavam rostos cruéis, com sede de sangue e lágrimas. Talvez por isso, as pessoas permaneciam estáticas, sem saber muito bem o que fazer, para onde ir, ou o que esperar deles.

Bebés choravam e eram embalados pelas mães, que tentavam, em vão, acalmá-los. Crianças pequenas, que mal andavam, agarravam-se às pernas e à cinta dos pais, ou de outras pessoas que lhes pudessem proporcionar protecção, gritando e tremendo como varas verdes. Outros continuavam à procura de familiares perdidos nas ruínas e a salvar as pessoas que conseguiam de debaixo das pedras e armários.

Morgan reconheceu-os. Eram os Devoradores da Morte, os servos do Senhor das Trevas. Sabia do que eram capazes, do terror que provocavam. E, apesar de tudo, manteve-se atenta a qualquer movimento, alerta, mas ao mesmo tempo como que hipnotizada por eles, num encanto macabro e incompreensível. Sentia-se como que puxada para eles, como se a chamassem e ela não se importasse de os seguir.

Mas este transe acabou quando os feiticeiros negros atacaram sem piedade. De repente, toda a loja tornou-se palco de uma luta tremenda, uma batalha colossal entre a vida e a morte. De um lado estavam os sobreviventes, indefesos e em pânico, e do outro os Devoradores da Morte, que destruíam tudo à sua passagem e lançavam as três maldições imperdoáveis em todas as direcções, atingindo crianças e adultos, sem a mínima compaixão.

Gritos de toda a parte, de dor, angústia, desespero, misturados com as vozes frias e cruéis dos atacantes, que se divertiam com o horror e sofrimento que causavam, fizeram Morgan acordar para a realidade e levantar-se imediatamente, agarrando na mão de Julia e puxando-a, por entre os destroços, até às traseiras da loja, onde poderiam pedir ajuda.

Pelo caminho, imagens angustiantes e deploráveis ficaram gravadas para sempre na mente das duas raparigas. Mulheres que sob o efeito da Maldição Imperius torturavam os filhos e maridos e, depois de os deixarem à beira da morte, eram libertadas do feitiço e obrigadas a enfrentar a realidade. Pessoas a contorcer-se de dor, como se lhes estivessem a tirar todo o interior para fora, e a rasgá-lo aos pedaços, sem dó nem piedade. Outras já mortas no chão, de olhos brancos, vidrados, sem vida, o corpo numa posição pouco natural, sangue por todo o lado...

Morgan não queria olhar, só queria sair dali o mais depressa possível, salvar-se a si e à irmã, poupá-la daqueles horrores, daquelas memórias dolorosas. Não queria que uma das Maldições Cruciatus caísse sobre Julia, daria a vida para a poupar daquele sofrimento.

Sabia que sem a varinha a única hipótese que tinham de sobreviver era fugir, o mais rápido possível. Manter-se fora do alcance dos feitiços e da visão dos monstros encapuçados.

Conforme os ataques iam ganhando intensidade, o chão cada vez tremia mais, o tecto da loja ameaçava ruir, e as paredes não aguentariam muito mais tempo.

Estavam quase a chegar à porta das traseiras, já não faltava muito, mais uns passos e estariam a salvo... Sem tirar os olhos da porta e sem largar a mão da irmã, Morgan correu o mais depressa que pôde para alcançar a salvação, mas a sorte não estava do lado delas. Sentiu um estrondo enorme atrás de si, seguido de um puxão e de um grito de dor alarmante.

A mão de Julia fugiu-lhe e ela própria se desequilibrou com o constante tremor do chão. Caiu no solo, juntamente com os armários, livros e pedras, sentindo todas as dores do seu corpo voltarem com toda a força. Estava exausta, não queria ficar ali, queria apenas morrer depressa, acabar com tudo de vez.

Fazendo um esforço sobre-humano, devido à grande preocupação que sentia pela irmã, levantou a cabeça e procurou-a com o olhar. Estava poucos metros à sua frente, imóvel, debaixo de uma estante repleta de livros. Tinha a cabeça ferida, sangue a jorrar-lhe pelo nariz e estava de olhos fechados.

Desesperada, Morgan arrastou-se até à irmã, que estava semi-consciente, por baixo de um armário enorme e rodeada do entulho provocado pela caída do tecto. Ao chegar lá, ouviu Julia a gemer baixinho, sinal de que ainda estava viva. Deixando-se cair à beira do corpo dela, Morgan suspirou, aliviada, contendo as lágrimas. Apesar de tudo, a irmã estava viva, e isso era muito mais importante do que tudo o resto.

Julia...? — sussurrou baixinho, com medo de lhe tocar, sabendo que ela estava ferida e não a querendo magoar mais.

Mana... — foi a única coisa que Julia conseguiu dizer, antes de desatar a tossir, e gritar com as dores.

Oh não... Não... Calma, fica calma Julia, eu vou tirar-te daí... Não fales, não te mexas, não faças nada que piore as dores... — Morgan sabia que o estado da irmã era preocupante. Tinha a certeza que se não a tirasse dali depressa, Julia acabaria por...

Não! Nem sequer penses nisso! Ela vai sobreviver! Vais tirá-la daqui e levá-la a alguém que possa tratar dela!

Levantou-se, contorcendo o rosto com o esforço, e tentou levantar o armário que estava por cima de Julia. Sem a varinha era muito pouco provável que conseguisse levantá-lo. O peso do armário era pelo menos o quádruplo do de Morgan e ela só o conseguia abanar, fazendo com que Julia gritasse com as dores.

Morgan, pára! Tenho costelas partidas e assim ainda me está a piorar... Estou a ficar cada vez mais com falta de ar... Por favor, pára...

Morgan ficou imóvel por uns momentos, a olhar para a irmã, como que a pedir-lhe ajuda, a pedir-lhe para lhe dizer o que fazer. Estava a perder o sangue-frio, tinha de arranjar maneira de salvar a irmã, não podia ir embora sem ela e correr o risco de a perder.

Como que seguindo os seus pensamentos, ouviu uma voz gélida na sua direcção e virou imediatamente a cabeça, assustada. Não... Aquilo não lhe podia estar a acontecer... Tinha-se passado há tanto tempo...

Não! Por favor, não me faça mal! Largue-me! — a voz de uma mulher gritava, entre soluços, completamente desesperada.

E perder o divertimento todo de te ver a chorar, gritar por ajuda? Nem pensar... sons de roupa a ser rasgada eram ouvidos ao mesmo tempo que a voz divertida de um Devorador da Morte sussurrava aquelas palavras de tortura.

Por favor... Deixe-me ir... Ou pelo menos deixe ir o meu marido, não o obrigue a assistir a isto...

Uma gargalhada soou nos ouvidos de Morgan, ao mesmo tempo que os gritos da mulher se tornavam mais agudos e a voz de um outro homem implorava misericórdia.

Vais gostar, minha cabra... E ainda vais pedir mais...

O grito infinito da mulher trouxe Morgan de novo para a realidade, que reparou que era ela própria que gritava. Aquilo era apenas uma lembrança, não fazia parte do presente. Tinha estado a relembrar o passado, o dia Verão em que tinha perdido para sempre a sua inocência e deixara de conseguir sorrir despreocupadamente...

O grito tinha chamado a atenção de um Devorador da Morte, que reparava agora nas duas raparigas, escondidas pelo armário. Com um sorriso sinistro, começou a avançar na direcção delas, empunhando a varinha, como quem já marcava território.

Tanto Morgan como Julia sabiam que tinham sido vistas e que pouco tempo lhes restava de vida. Os relâmpagos no exterior enchiam toda a loja de uma luz verde ofuscante, que se confundia com as Maldições Avada Kedavra, que caiam sobre os corpos quase desfeitos dos condenados, sendo encaradas quase como uma bênção.

Mana... — Morgan olhou para a irmã, com lágrimas nos olhos e deu-lhe a mão. Estava tudo acabado. — Oh mana...

Morgan vai-te embora, não sejas estúpida! — Julia mal conseguia falar, tentando respirar o mais lentamente possível, pois sentira um pulmão a ser rasgado por uma costela, devido a um dos puxões da irmã.

És minha irmã, não te posso abandonar aqui! — O desespero de Morgan estava bem patente no seu tom de voz, apesar das suas tentativas em manter a calma.

Morgan, vai! Não faz sentido ficarmos aqui as duas quando te podes salvar... — Julia sentiu-se sufocar, voltando a cabeça para o lado e tossindo, com a mão na frente da boca.

Salpicos de um líquido vermelho pastoso caíram para o chão e Morgan, horrorizada, reparou que a irmã estava a cuspir sangue.

Julia!! Julia...

Morgan, olha para mim... — Morgan ergueu a cabeça, movendo os olhos da mão ensanguentada de Julia para os olhos desta.

O que viu no meio de todo aquele castanho (medo, angústia, dor, sofrimento, amor e até mesmo uma réstia de esperança por ela) atingiu-a como um balde de água gelada. A realidade de tudo o que estava a acontecer estava espelhada naqueles olhos, que podiam ser os seus, e não havia maneira de a alterar.

Estou prestes a perder a minha irmã... Oh, por favor... Por favor, ajudem-nos!! Não a Julia... Troquem-me de lugar com ela...

Não te atrevas a ficar... — a voz doce da irmã trouxe-a de volta à realidade. — Foge!! Vive por mim, mana.

Não!! Não me peças isto... qualquer coisa menos isto...

Morgan fechou os olhos, respirando fundo. Voltou os olhos para a saída, que se encontrava deserta, e depois novamente para a face da irmã, que se contorcia de dores e não parava de lhe suplicar com o olhar para sair dali.

Vai!!!

Morgan foi. Quando estava muito próximo da porta ouviu a gargalhada do Devorador da Morte, que tinha finalmente chegado ao pé de Julia. Os olhos da irmã estavam cheios de uma resignação que nunca a tinha consumido antes. Resignava-se com o destino que lhe fora imposto e as dores eram tantas que só desejava que aquilo acabasse o mais depressa possível.

Só tinha pena de deixar a irmã sozinha... Gostava tanto dela... E agora Morgan ia ficar sozinha e enfrentar os horrores da vida sem ninguém com quem contar...

— Avada Kedavra!!

Adoro-te, mana... — os lábios de Julia formaram silenciosamente estas palavras, e Morgan sentiu um vómito subir-lhe à boca e uma sensação de sufoco apoderar-se dela.

Quando a luz verde atingiu Julia em cheio no peito, um raio gigantesco iluminou todo o céu negro, como que manifestando uma mensagem divina. A Morgan, pareceu que também ela tinha sido atingida por aquela maldição tão poderosa e cruel, e o coração desfez-se-lhe em mil pedaços, traduzindo toda a agonia que sentia com a perda da única pessoa que a completava.

Ouviu alguém a gritar desesperadamente, a sua voz ecoar durante segundos infinitos. Morgan acordou com um salto, sentindo as costas baterem com toda a força contra o chão frio e húmido. A sensação de humidade espalhou-se rapidamente por todo o seu corpo, provocando-lhe arrepios de grande intensidade que, juntamente com o bater acelerado do coração, faziam tudo menos acalmá-la.

Começou também a sentir um par de braços a segurá-la, e uma voz a chamá-la, lá muito ao longe. Tentou focar o olhar e viu a face de Severus, que gritava por ela, com uma expressão preocupada, mas não lhe conseguiu responder. Lentamente, foi voltando à realidade, ao espaço e ao tempo em que se encontrava.

Encontrava-se no chão da sala de aula, com Severus a segurá-la, e o resto dos colegas à volta dela, uns a comentar, outros simplesmente calados, a olhar para ela. A cara do professor Binns distinguia-se no centro da multidão, olhando de Severus para Morgan, sem saber muito bem o que fazer.

Ao mesmo tempo que Morgan começava a acalmar-se e a perceber que tinha dado espectáculo na aula de História da Magia, começou a captar os cochichos das colegas de dormitório, que se encontravam um pouco à parte, a falar com o resto dos rapazes do mesmo ano.

— É mesmo para chamar a atenção... Até me admira que não tenha feito isto mais cedo — sussurrava Parkinson, com a sua voz aguda e maliciosa.

— Realmente, lembras-te no primeiro ano? Do terror que era passar a noite com ela no dormitório? Sempre aos gritos e chamar pela irmãzinha... Ainda bem que aprendeu a usar feitiços silenciadores. — reclamou Bulstrode, sempre pronta a meter a sua colherada quando era para dizer mal da Welling.

Morgan abriu imediatamente os olhos, sentindo lágrimas de embaraço encherem-lhe os olhos e tentou levantar-se, apoiando-se em Severus. Este olhou para ela, desesperado por uma explicação para tudo aquilo. Sim, ele também tinha ouvido os comentários de Parkinson e Bulstrode, mas nada fazia sentido. Morgan, a gritar? A chamar pela irmã? A ter pesadelos daquela intensidade? Há já quatro anos? Não era possível, ela não podia ter escondido aquilo dos amigos por tanto tempo...

— Morgan, que se passa? – perguntou-lhe, ao vê-la levantar-se rapidamente, com uma expressão de pânico.

Oh não..., pensou Morgan. Ele sabe agora. Vai ficar a pensar naquilo... Como é que isto aconteceu? Eu tenho sido tão cuidadosa...

Não suportando mais olhar para a cara de Severus e ouvir aqueles comentários maldosos dos companheiros de equipa, pegou nas suas coisas e correu em direcção à porta, furiosa consigo própria por ter demonstrado aquela fraqueza à frente de toda a gente. Com certeza que seria gozada eternamente, a história passaria de boca em boca e toda a Sala Comum dos Slytherin saberia do sucedido.

Que vergonha... Tenho de pensar numa explicação para dar ao Sev... Ele não pode saber a verdade... Seria demasiado humilhante...

E com isto, saiu da sala, deixando para trás um Severus curioso e preocupado, que tentava ouvir mais alguns comentários das raparigas. No entanto, elas já tinham voltado para o lugar, sentadas nas carteiras a mando do professor Binns, que tentava pôr alguma ordem na aula. Aquilo tinha sido um desvio radical na sua rotina, deixara Welling sair sem lhe exigir uma explicação, nem sabia para onde ela tinha fugido. Decididamente, aquele era um dia para esquecer.

Mas não para Severus, que iria tirar a limpo toda aquela história.


— E pronto, meus caros alunos, o primeiro capítulo termina por aqui. Não se esqueçam de ir treinando de vez em quando, para manterem sempre estes feitiços úteis na vossa cabecinha. Nos tempos que correm, qualquer feitiço vos pode salvar a vida. E se tiverem alguma dúvida, podem sempre vir ter comigo, que estou à vossa disposição. Claro que para vocês isto é conversa da treta, a vossa única preocupação é o Quidditch, não imaginam sequer o que vos espera lá fora. De qualquer maneira, tudo o que aprenderem é bom! Portanto, toca a estudar, e a aprender o máximo possível, para me deixarem muito orgulhoso de vocês!

O som do toque da campainha assinalou o final da aula de Defesa Contra as Artes Negras dos Gryffindor do 4º Ano, e terminou os extensos meses de aprendizagem de escudos protectores. Finalmente passariam a coisas mais úteis e interessantes e que lhes poderiam salvar a vida no futuro.

— Estava a ver que a aula não terminava nunca — sussurrou Sirius para James, o seu companheiro de carteira de sempre. — Agora passamos ao ataque! Ninguém nos pára agora, Jamy-boy, ninguém nos pára!

— Por falar nisso, treino hoje depois das aulas, no sitio do costume. Andamos a desleixar-nos... — foi a resposta murmurada de James, que se voltou para trás e comunicou o mesmo aos outros dois elementos do grupo.

Julia abanou a cabeça, sorrindo um pouco e trocando olhares com Lily. Aqueles Marauders, mesmo falando em surdina conseguiam fazer-se ouvir quase no fundo da sala.

— Como trabalho de casa, — a voz do professor soou novamente, ligeiramente mais alta do que o habitual para voltar a cativar as atenções, e Potter e Black voltaram-se imediatamente para a frente. Tinham aprendido bem a lição, não queriam voltar a repetir os mesmos erros do passado. — quero 35cm de pergaminho sobre as grandes diferenças entre os vários feitiços de protecção e as alturas em que cada um deve ser usado. Na próxima aula, iremos começar alguns feitiços de ataque mais simples. Podem sair...

Com aquelas palavras, foi como se um relâmpago tivesse passado pela sala, seguido por um furacão, que levou tudo à sua passagem. Em poucos segundos, já todos os alunos tinham atirado tudo para dentro das mochilas atabalhoadamente, correndo porta fora a falar do almoço que se aproximava.

Lily, que se despachara a terminar os apontamentos e a anotar o trabalho de casa, também se apressou a arrumar as suas coisas, coisa que era pouco habitual. Julia, que ainda conferia uma lista de pranks e verificava o stock de foguetes explosivos que tinha na mochila, lançou-lhe um olhar inquiridor, fazendo contas de cabeça ao mesmo tempo.

— Prometi à Madam Pince que a ia ajudar a seleccionar e arrumar uns livros na biblioteca — respondeu-lhe a amiga, que pegava na mochila e caminhava para a porta. — Acho que vai chegar uma encomenda para a escola e tem que estar tudo catalogado e dividido por secções para depois ser só pôr os livros novos no sítio.

— Espera lá... Onde é que vais?!! Ofereceste-te para ir ajudar? — Julia olhou para Lily de forma incrédula, não acreditando no que estava a ouvir. — Estás doida? E o almoço?

— Oh eu depois como qualquer coisa, não te preocupes.

— Mas Lily--

— Vá, tenho mesmo que ir. Vemo-nos nas aulas!

— Espera!! Lily!! — mas a amiga já corria porta fora, deixando-a sozinha na sala deserta de Defesa Contra as Artes Negras. — Great... Ajudar a bibliotecária, onde é que já se viu? Só mesmo a Lily...

Julia continuou a murmurar para si própria enquanto acabava de arrumar as coisas na mochila, suspirando e abanando a cabeça de vez em quando. Quando se preparava para sair da sala foi surpreendida por alguém a entrar disparado, que quase a deitava ao chão.

— Severus! — exclamou, quando viu que a pessoa em questão era, afinal, o melhor amigo.

— Ah, ainda bem que te consegui apanhar. Estava preocupado, a pensar que já não ter iria encontrar aqui — foi a resposta esbaforida de Severus, que tentava recuperar o fôlego.

— Mas o que é que se passa, Sev? Aconteceu alguma coisa? — preocupada, Julia puxou-o para uma das mesas, empurrando-o gentilmente para uma cadeira.

— É a tua irmã...

— A Morgan? Ela está bem? Mas vocês não tiveram aulas?

— Tivemos História... — começou o Slytherin, sendo logo interrompido novamente por Julia, que fez um ruidinho em sinal de enjoo, mas depressa se apercebeu da seriedade do assunto e lhe fez sinal para continuar. — A Morgan adormeceu durante a aula.

— Eu passo as aulas todas a dormir. Sabes disso. Não me digas que o Binns resolveu começar a preocupar-se com quem está ou não atento nas suas aulas? Devia ser a primeira vez...

— Jules, não interrompas! — Severus já começava a ficar irritado com a rapariga.

— Desculpa, desculpa. Pronto, não falo mais, prometo. Continua lá.

— Como eu estava a dizer, a tua irmã adormeceu durante História da Magia. Isso por si só não tem nada de mal, só Slytherin sabe como conseguimos aturar as aulas do fantasma, mas a pior parte vem agora — Severus engoliu em seco. — Ela, aparentemente, teve um pesadelo e acordou aos gritos, acabando por cair no chão, em pleno discurso do Binns. Nem imaginas a situação. Parecia que a estavam a torturar e, quem sabe, matar da forma mais dolorosa possível.

— Mas toda a gente tem pesadelos de vez em quando...

— Julia, tu não estavas lá. Acredita em mim. Se estivesses não dirias isso, porque aquilo foi tudo menos normal. E depois, ouvi uns comentários das companheiras dela de dormitório... aquilo não me cheirou nada bem.

Ao ouvir mencionar as ditas cujas, a expressão no rosto de Julia endureceu.

— Severus, elas odeiam a Morgan! Não perdem nenhuma oportunidade para a humilhar. É natural que usem todos os pretextos e mais alguns para dizer mal dela e fazê-la sentir-se mal.

— Mas não foi isso... Não eram apenas fofocas mal intencionadas, elas estavam apenas a comentar entre elas. Estavam a ser maliciosas, como sempre, mas já faz parte delas lançarem sempre muito veneno.

— E então? O que é que elas disseram?

— Que a Morgan já tinha deste tipo de pesadelos no inicio do 1º Ano e que a tiveram que ouvir durante muito tempo, até ela aprender a usar feitiços silenciadores.

Julia levantou-se de um salto, mal conseguindo acreditar nas palavras de Severus. Não podia ser... Morgan a ter pesadelos daquela intensidade durante mais de quatro anos? Mas porquê? Não havia qualquer motivo...

— Mas tens a certeza que isso é verdade?

Severus acenou com a cabeça, o rosto contraído de preocupação.

— Também pensei que estava a ouvir mal ou que elas estavam apenas a arranjar motivos para estarem no centro das atenções. Mas quando olhei para a Morgan e vi a expressão no rosto dela, de puro terror ao ter sido descoberta, percebi que é verdade e que ela nos tem andado a esconder uma coisa muito grave. Temos que fazer qualquer coisa. Foi por isso que vim falar contigo, para ver se sabias de alguma coisa.

— Como vês, não sabia de nada.

Severus levantou-se e começou a andar de um lado para o outro na frente de Julia, coisa que fazia sempre que estava preocupado ou nervoso.

— O que é que vamos fazer? — perguntou de repente, olhando-a com olhos penetrantes. — Temos que arranjar maneira de a encostar à parede, fazer com que ela nos diga o que se anda a passar...

— Oh Sev, até parece que nem a conheces... É obvio que ela não nos vai contar nada, vai passar todo o tempo que conseguir a esconder-se de nós e o resto a inventar desculpas sem nexo, só para ver se a deixamos em paz. Temos que lhe dar espaço, mostrar-lhe que estamos aqui e que a apoiamos mas sem a pressionar.

— Estás a sugerir... — Severus não conseguia acreditar no que estava a ouvir.

— Que não lhe perguntemos nada — respondeu Julia calmamente.

— Mas tens a certeza? E se ela depois não disser nada e ficar a guardar aquilo lá dentro, sem conseguir ultrapassar?

— Severus relaxa. É uma situação critica, mas não acho que se a pressionarmos a estamos a ajudar. Ela precisa de apoio. E nós vamos apoiá-la. Temos é que a respeitar. Nem toda a gente consegue partilhar tudo, ou se sente à vontade para falar sobre os seus problemas. Por exemplo, há muitas coisas que nunca contei à Morgan...

— Como o facto de teres implorado ao Chapéu Seleccionador para te pôr em Slytherin? — perguntou Severus com satisfação, esquecendo por momentos o tema fundamental da conversa.

— Sim... — Julia corou. — Entre outras coisas. O facto é que há coisas que só te contei a ti, enquanto que outras me sinto mais à vontade para desabafar com ela e com a Lily. Outras ainda, guardo-as só para mim. Acho que não há ninguém no mundo que não guarde segredos, seus ou de outros.

— Mas então não fazemos nada? — Severus não gostava nada da ideia de esperar até que as coisas viessem ter com ele.

— Quando ela estiver preparada para contar o que se passou vai faze-lo, disso não tenhas dúvidas. Sei que é preocupante... Quatro anos com pesadelos é muita coisa. Mas sei que ela antes de Hogwarts não tinha pesadelos, porque dormíamos no mesmo quarto e nunca vi qualquer sinal disso. Quando viemos para Hogwarts começamos a ter quartos separados...

— Mas achas que vocês não a ouviriam? Se ela gritar tanto como gritou hoje na aula...

— A nossa casa é enorme, Sev. E as paredes são muito sólidas. Além disso... Se ela pedisse a um dos nossos elfos domésticos para lhe pôr um feitiço silenciador no quarto eles provavelmente faziam-no, sem contar nem aos meus pais nem a mim se ela pedisse segredo. Especialmente a Twinky. Ela sempre teve um carinho especial pela minha mana.

— Bem, se tens a certeza então... Ela é a tua irmã, deves conhecê-la melhor do que ninguém.

Julia sorriu e, agarrando-lhe numa das mãos, puxou-o para a porta.

— Absoluta. Este fim-de-semana vamos divertir-nos imenso em Hogsmeade, ajuda-la a abstrair-se de tudo o que se passou. Quando ela estiver preparada vai contar-nos, Sev. És um querido por te preocupares, mas vais ver que vai correr tudo bem. Mas agora vamos mas é comer, que estou esfomeada.

Severus sorriu finalmente, deixando-se levar por Julia, que rapidamente o distraiu com outros assuntos. Quando chegaram ao Grande Salão, a amiga surpreendeu-o mais uma vez, sentando-se na mesa dos Slytherin com ele, para não ficarem os dois sozinhos nas mesas respectivas. Julia era um espanto, seria impossível imaginar Hogwarts sem ela.