A PARÁBOLA DO GAVIÃO - Parte Um

Certo dia, um fazendeiro encontrou um filhote de gavião perdido. Sim, era um filhote de águia no texto original, mas vamos fingir que era um gavião, ok? Bem, o fazendeiro não quis saber: criou aquele gavião com as galinhas, o que era melhor do que estrangular o bichinho antes que ele crescesse e as devorasse, como bom gavião. E ele meio que foi recompensado: contrariando qualquer senso de instinto que nos é ensinado em uma aula de biologia, o gavião cresceu que nem uma galinha, dando vôos do chão para o poleiro, do poleiro para o chão, comendo milho ao lado delas e até dando umas ciscadinhas para cima das galinhas que o achavam um pervertido... aí chegou um daqueles documentaristas da National Geographic e chegou a conclusão de que ele tinha que interferir naquilo. Porque não era certo que um Gavião, uma ave de rapina, tivesse que viver como... uma galinha.


"... Bom, Carl... eu tenho que dizer isso. Eu sei que você gosta de mim... e na boa, isso faz muito bem ao meu ego. Mas sinceramente... olha, isso é muito difícil para mim de dizer, me deixa parecendo a vilã da história... você não é meu tipo de homem. Sim, eu admito... quando eu saí com você eu pensava em mim mesma como se estivesse ficando mais madura, como se deixasse de pensar em um homem por causa da aparência e procurando beleza interior... mas sejamos honestos, você não é o tipo de homem que me deixa ligada, entende? Tipo... de que adianta a gente pensar que fica mais madura se essa maturidade não te dá satisfação? Sim, eu devo estar parecendo uma monstra, uma mulher que troca um rapaz pacato por um grandalhão peludo e tatuado de um metro e oitenta e três... que lava o cabelo com shampoo pantene... que malha três horas... não, quatro... hummm... você nunca reparou em como ele é atlético, não é mesm"CLICK!!!!

O barulho do click foi de um rapaz de aparência comum chamado Carl Tyrrel, que correu do bar da esquina para o interior de uma livraria ao perceber uma aglomeração esquisita na porta da mesma. Ele recebeu essa fita no dia anterior e ouviu ao fim do expediente, quando todos tinham ido embora. Seu erro foi tê-la deixado no aparelho de som - e pior, quando agora ele estava conectado aos alto-falantes da loja. A primeira pessoa que ligasse a fita ouviria...

- O SHOW ACABOU! XÔ! ISSO NÃO É REALITY SHOW! QUEM NÃO FOR CLIENTE QUE SUMA!!!

Os curiosos se retiraram. Adeline, a caixa da livraria, olhava sem jeito para Tyrrel.

- Desculpe, Carl... tinha a fita, pensei que fosse uma fita de música...

- E porque não desligou quando ouviu "Carl, desculpe por dizer isso dessa forma...", falou tentando inutilmente cochichar.

- Bem... a gente acaba ficando com curiosidade mórbida... foi deslize meu mesmo... me desculpe...

Ela tinha dificuldade de respirar quando ficava nervosa. Carl se irritou. "Trabalha. DEPOIS vamos falar sobre isso." A mulher ficou mais tensa ainda, mas o próprio Carl sabia que não adiantaria se empombar com ela. Não iria demitir a mulher no seu oitavo mês de gravidez, ainda mais quando o dinheiro do seu pobre marido não seguraria a peteca sozinho. Pegou um cd qualquer da pilha e colocou para rodar, sem olhar o que iria ser. Novamente deu azar. Era Lloyd Cole and the Commotions. "Are you ready to be Heartbroken?". A sorte não estava ao seu lado. "Adeline, toma conta da loja. Eu vou voltar ao bar da esquina mesmo."

Saiu em passos duros. Estava irritado. Havia passado a noite insone, vendo filmes velhos na televisão e surfando atrás de pornografia na internet, tentando esquecer "a prostivagabunda", como carinhosamente ele se referia à sua atual ex - "se é que a gente teve mesmo alguma coisa", pensava ele.

looking like a born again

living like a heretic

listening to arthur lee records

making all your friends feel so guilty

about their cynicism

and the rest of their generation

not even the government are gonna stop you now

but are you ready to be heartbroken?

"Era só o que faltava" - pensou ele enquanto ruminava no bar em frente ao balcão, tomando seu terceiro ou quarto café. "Logo essa música na minha cabeça. A música oficial de dor-de-corno da minha vida. Que puxa. Are you ready to be..."

are you ready to be heartbroken?

are you ready to be heartbroken?

are you ready to bleed?


Se você fosse um gavião místico e fosse procurar um ser humano no meio de uma grande cidade como Austin, Texas, o que você faria? Ela - porque se tratava de um gavião fêmea - voou por entre os prédios e um garoto com uma camiseta com a bandeira confederada decidiu brincar de tiro ao alvo com a coitada usando uma espingarda de chumbinhos. Esquentada por natureza, a gavião voou bem alto, calculou a direção do vento, soltou um pequeno trolete de bosta e acertou na cara do moleque. Ela tinha uma pontaria muito boa. Após uma pequena gargalhada, a gavião voou e mirou em direção a um rato no chão, bem gordinho. Gaviões gostam de comer ratos. Um filete de sangue fresco escorreu do seu bico e ela decidiu voltar a sua busca. Não imaginava porque tinha sido despertada, mas se ela estava de pé é porque alguma coisa tinha dado MUITO errado e ela teria que consertar. A última vez que despertara foi... ah, sim, ela encontrou o apartamento. É um rastro místico meio informe, mas ela foi criada justamente para segui-lo. As janelas estavam fechadas, mas de dentro - porque seu alvo não fora esperto o suficiente para fechar as cortinas - e, de dentro, dava para ver que o teto era iluminado por uma clarabóia. Dava para ver também que o apartamento não tinha mais paredes, com tantos livros e porta-cds. "Gosta de ler, o que é um mau sinal". Significa que o que ele gosta de fazer, gosta de fazer sentado. Tinha que entrar para ter uma idéia mais clara de com quem teria que lidar, apenas não sabia como.

Restou a basculante. Geralmente as pessoas não a fecham por um motivo simples: a usam no banheiro e ele precisa de ventilação para não ficar fedendo. Além do mais, quem imagina que uma ave vá entrar dentro de casa pelo basculante? Ela se espremeu para entrar e caiu dentro do vaso, que estava aberto, perfumado a Pato Purific. Ficou molhada demais para efetuar um pequeno vôo, mas isso não lhe pareceu problema: era só uma questão de puxar a tal corda com o bico para ajudá-la a subir...

Definitivamente não era o seu dia.


Tyrrel sempre teve dois consolos na vida. Um era a leitura, o outro eram os amigos. Notadamente Nick Bronski, seu colega de quarto na faculdade e melhor amigo desde sempre. Como Nick não tinha físico de atleta e jamais entraria para um time de futebol, seria um mistério como ele conseguiu mesmo ter a chance de fazer uma faculdade decente não fosse o fato dele mesmo ter contado o segredo a ele: Nick não era inteligente, mas era criativo - e colou de mil maneiras diferentes em anos de vida escolar. Para que? Decidiu ser dono de bar, como seu pai o foi, apenas com o cuidado de saber se colocar na localização certa e ser frequentado pelas pessoas certas. E prosperava. Havia quem pensasse que era por conta de seu diploma de administração na parede do bar. Ledo engano.

Mas Nick era um grande sujeito, e jamais faltou a ele tempo para os problemas dos amigos. E como Tyrrel tinha muitos problemas, ele já tinha cadeira cativa. "Carl", dizia ele paternalmente e com voz baixa enquanto lhe servia um café - "leva a mal não, mas essa mulher fedia a piranha a uns trinta quilômetros de distância. Eu envernizava ela todinha com uma catapulta ao lado, e jogaria no meio do mar assim que fizesse o serviço. E fumaria um cigarro, DUPLAMENTE feliz."

- Ah, me diz uma mulher que você não fosse fazer isso...

- As outras eu só chutaria mesmo. Cara, você não desconfiou não? Quando você olhava para o lado, ela olhava para o volume das calças de todos os homens por perto.

- A gente tem que dar um crédito de confiança em uma relação, sabia? Além do mais, eu sempre fui fiel e nunca deixei de olhar para a bunda das mulheres... como a bunda daquela latina ali...

- Uau...

- Fala mais baixo... mas é um monumento não é?

- Que rabão... um brinde aos méritos e atributos daquela mulher.

- Um brinde!

- Esse sai por minha conta.

- Valeu cara...

- Olha também aquela chinesinha mignon gostosinha ali... ela sempre passa do outro lado da rua lá pelas cinco e meia da tarde, voltando da academia com a malha de ginástica, acho que dá para ver da sua vitrine...

- Vi sim. É assustador, a gente volta aos quatorze anos de idade... - e nisso fechou o punho no ar como se segurasse alguma coisa tubular e rapidamente, para não deixar de ser discreto, balançou a mão para cima e para baixo umas poucas e rápidas vezes. "Graças a deus as espinhas já se foram embora há muito."

- Lembra de quando você tinha espinhas na época do colégio? Parecia até um leproso...

- Fala baixo...

- Tem grilo não, e eu tô falando mais baixo do que você. Além do mais a essa hora a clientela que iria ligar para isso tá lá em cima, no mezzanino. Aliás você deu mais bandeira batendo uma no ar do que com todo esse papo...

- Oh merda...

- Olha, faz o seguinte... vai cuidar da tua loja e tenta pensar em trabalho. Isso sempre ajuda. Mais tarde vai pra casa, vai ver tv, fala com as mulheres na internet... se pintar uma, não importa se for baranga, vai lá e desafoga o ganso. Mas não fica parado. Isso só piora tudo... - e a conversa foi interrompida quando uma mulher muito bonita apareceu. Ela se sentou ao lado do banco onde estava Carl e olhou para o espelhinho de bolso. Se vestia de forma casual - ainda nem era meio dia. Tinha longos cabelos ondulados, uma tez amulatada e muito lisa, e um par de olhos verdes visíveis de longe, como um farol - você não esquece de um par de olhos verdes como aquele. Usava brincos de argola. Era um velho fetiche de Carl. "Oi, tudo bem?"

Quando Carl se deu conta, Nick foi atender alguém no balcão.

- Olha... eu vi o que aconteceu... quer dizer hoje, na livraria... eu trabalho por aqui, passo por uma calçada na ida e outra na volta.

Carl abaixou a cabeça.

- Bem, eu só posso dizer que acontece. Você supera. Um café? Eu pago.

Não é muito frequente uma mulher bonita surgir do nada e te oferecer um café - normalmente esse papel é dos homens. O que resta a um homem numa situação dessas?

- Eu aceito, obrigado... seu nome é?

- Me chamam de Abbie. Abdala Lama, dá para acreditar? Em alguns países eu poderia processar meus pais por um nome desses - e nisso ela deu uma risada. Os dentes, perfeitos.

- Ahn... o meu é Tyrrel. Carl Tyrrel.


É incrível como o humor de um homem pode mudar da água para o vinho em um mero dia. Tyrrel demorou a voltar ao seu trabalho e ela, provavelmente, demorou para voltar para o dela. Como ele era o dono de sua loja, ninguém reclamou - até porque Adeline havia pisado na bola mesmo e já havia estourado demais a boa vontade de seu patrão. Mas foi uma surpresa para ela quando ele voltou com um humor melhor - aliás muito melhor. Quando ele voltou para casa, estava tilintando. Tinha um telefone e um encontro marcado. Rápido demais, diriam alguns, mas quando um milagre acontece, não se faz perguntas, apenas se aproveita o momento.

E quando ele entrou na sua casa, pôde ouvir sua televisão ligada.

"Assalto. Tudo bem, o bandido ainda não percebeu que eu entrei", pensou Tyrrel. "Tava tudo dando certo demais hoje, não é? Certo, certo. Cadê meu rifle?" e nisso se deu conta que o rifle nada mais era que um enfeite. Ele não tinha o menor traquejo com armas, e vindo de uma família de broncos sulistas, isso era quase um atestado de viadagem - por isso o calibre da arma ser tão grande, para evitar implicância de parentes chatos. A arma estava cumprindo sua função na parede da sala, e provavelmente o bandido estava brincando com ele. Iria ser morto pela própria arma...

- OLÁÁÁÁÁÁÁÁÁ!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

O susto o desnorteou quando um par de asas começou a estapear seu rosto. Ele tentou esticar as mãos para se apoiar mas foi inútil. Enquanto caía, a ave deu um pequeno vôo para cima e esperou Tyrrel parar de se debater.

- Pelo Deus Gavião... o que fizeram com você?

A situação era surreal demais para Tyrrel. Um urubu(ou o que fosse) falante dentro de seu apartamento vendo televisão.

- Vamos ter muito trabalho aqui...

(CONTINUA)

A seguir: A PARTE DOIS, naturalmente.