A PARÁBOLA DO GAVIÃO - Parte Quatro(final)
Certo dia, um documentarista da National Geographic que havia encontrado numa fazenda um gavião criado entre galinhas, pensando que era uma galinha(essa parte da história você já conhece), subiu numa montanha bem alta com o animal infeliz na mão. Sua carreira estava em risco. A câmera estava às suas costas, e se ele falhasse no que pretendia fazer, ele estaria em maus lençóis como naturalista, como membro da sociedade protetora dos animais e até como astro televisivo. Mas ele olhou para o animal que balbuciou "co-cóó?" debaixo do seu braço.
Ele respirou fundo. Ele sabia o que tinha que fazer naquele momento. Ou isso, ou o pobre gavião viveria como uma galinha para sempre. E a emissora lhe daria um puta esporro por ter gasto dinheiro com aquele bicho ridículo.
- Você é um gavião... o predador dos céus. VOA, FILHO DA PUTA! - e nisso arremessou raivosamente o gavião montanha abaixo como se fosse uma bola de beisebol.
As asas que brotaram com violência nas costas de Carl Tyrrel ainda estavam úmidas e pesadas. Ele se sentia atordoado, mas sua sobrevivência estava em jogo, e procurou se manter de pé. Olhou para baixo. Se viu vestido com uma calça colante verde, duas faixas amarelas em seu torso que não escondiam os pneus de seu ventre e um capacete bicudo em cima de sua cabeça. Podia ver o símbolo vermelho e preto no seu peito.
"Meu Deus!", pensou ele. "Se não fossem as asas eu pareceria um membro dos Thundercats!"
A Lama Azul, irritadíssima, se voltou contra o pássaro - "Seu urubu idiota! O poder dele está perdido para mim! Ele acabou de dar forma ao poder que tinha! Mas você irá pagar por isso! VOCÊS DOIS!" - e nisso ela pegou uma Magnum 44. Porque como ela mesmo disse, ela não tinha mais nenhum poder místico...
A gavião virou sua cabeça para o Gavião Negro - porque Tyrrel agora é o Gavião Negro - E ele não se mexia. Não sabia usar as asas que tinha. Tudo dependia dela agora, e quando Tyrrel se deu conta, um cano se moveu em direção à ave. Podia ouvir o barulho da arma a se engatilhar. Podia ver como nunca, com detalhes que jamais esmiuçaria com uma lupa. Podia ver como uma ave de rapina - e Tyrrel não pensou em nada naquele momento. Deu um salto em direção a Lama Azul e quando viu, havia puxado a mulher pelos ombros.
Ele havia planado.
O corpo da Lama Azul havia sido arremessado para longe com o golpe, e ela derrubava todas as velas e incensórios no chão. O fogo de uma das velas atingiu uma cortina enquanto ela batia com a nuca em cima da quina da mesa de mármore. Ela caiu. A ave passou por cima dela dizendo: "Vamos embora daqui!", e Tyrrel pulou por cima do corpo da Lama Azul enquanto o fogo começou a se espalhar. Procurava a porta com os olhos. Estava tenso.
- Por aqui, Tyrrel, por aqui! - gritava a ave, e ele não pensou duas vezes em correr. Porém, quando ele passou pela porta e respirou agoniadamente, algo lhe bateu na cabeça. Aquela mulher ainda estava lá. "Que morra", pensou. O calor e a atividade física ajudaram a secar suas asas. Não sabia como voar direito, mas aquela planada rápida já havia lhe dado uma idéia de como iria funcionar. Era o bastante para tomar distância, voar para bem longe e...
- Não sabe voar? Tudo bem, você deu uma planada. Isso vai bastar para que a gente vá para bem longe e...
- Não é isso.
Ele olhou para a porta que deixou para trás. "Não, não tenho coragem." E correu para dentro do local. O gavião começou a gritar: "O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?" Tyrrel se voltou para ela e, com a maior calma do mundo, disse:
- Eu quero ter um sono tranqüilo essa noite.
E correu em direção à porta.
- Tyrrel, deixa de ser idiota! Essa mulher te enganou e tentou matar você!
- Depois de falar nesse papo de encarnação e deuses egípcios, ainda quer que eu tenha um fantasma pegando no meu pé? Nem fedendo!
E nisso ele entrou. A ave esperou um minuto na porta. Viu algo caindo ali dentro. Era uma viga de madeira. Pensou em entrar, mas não podia - lá fora, viu que era um armazém velho, e que não teria chances de passar pela viga, pelas chamas e por onde quer que fosse. O terceiro minuto trouxe o barulho de algo desmoronando. O sexto minuto trouxe o barulho de sirenes à distância. Ela estava extremamente tensa.
O sétimo minuto trouxe um barulho fraco de vidro quebrando.
Era a clarabóia, distante demais para que ela pudesse ouvir com uma melhor altura. As luzes dos postes da madrugada conseguiam vagamente iluminar uma mancha clara nos céus negros.
Era o Gavião Negro, carregando uma Lama Azul desmaiada e com um corte na testa. Suas asas batiam - com a elegância de um morcego bêbado, mas batiam. Ele não conseguia se manter completamente ereto. Gemia com a dor do esforço. "Tyrrel", gritou a ave com uma feliz surpresa, mas logo a surpresa deu lugar à apreensão. Ela arregalou os olhos e saiu dali correndo. Tyrrel só não morreu na aterrissagem porque bateu em vários sacos de lixo amontoados na calçada.
A Lama Azul continuava desacordada. As sirenes se tornaram mais altas.
Os bombeiros estacionaram seus caminhões, desembarcaram como uma tropa de choque e invadiram o local. Tyrrel ficou atordoado. Um par deles se voltou em direção a ambos. Uma bombeira, baixinha e meio atarracada, puxou o pulso da moça. "Ela está viva!", gritou. Olhou para ele e arregalou os olhos. "Ei, eu LEMBRO DE VOCÊ! VOCÊ ERA O CARA DA LIGA DA JUSTIÇA!"
Tyrrel não sabia o que fazer. Ele só balbuciou: "Ela... incendiou o armazém... Eu só..."
E saiu voando num impulso. Mas bateu com o ombro no poste ao lado e caiu no chão.
- Você não tá nada bem, Gavião! Precisa de cuidados!
- Eu... vou a pé...
A bombeira jogou um cobertor sobre seus ombros. Tyrrel sentia suas costas ficarem mais leves. Seu capacete estava desaparecendo. Ela percebeu isso e instintivamente jogou uma ponta do cobertor sobre sua cabeça. "Pode deixar, é aquela coisa de super-herói, ninguém pode saber quem é você, certo?"
Tyrrel deu um aceno com uma das mãos e se foi. Dificilmente pareceria mais do que um bêbado.
O gavião desapareceu por um momento após minutos mergulhando no abismo e todos pensaram que ele tinha morrido. Mas foi por um momento só.
Uma mancha escura se projetou ao céu. Era o gavião. Ele voava. E voou para bem longe, como se espera que um gavião deva fazer. Porque o destino de uma ave de rapina não deve ser traçado à curtas distâncias.
Talvez sinta saudades do seu tempo de galinheiro - afinal, a vida era fácil por lá. Mas certas vidas fáceis não valem a pena quando ao fim do difícil se seja recompensado. Talvez ele até desça de vez em quando para tentar comer umas galinhas - literalmente falando, claro. Mas não importa, porque ele assumiu seu destino. Por agora e para todo o sempre, ele sempre será um gavião.
Ah, sim, o documentarista faturou um Emmy por isso. Não antes sem editar o "Voa filho da puta" da faixa de som do filme, claro.
Três horas de caminhada durante a madrugada. Ainda faltava chão para chegar em casa. Fazia frio e sua roupa era um cobertor - e mais nada além do cobertor. A ave caminhava a pé ao seu lado. De repente ela quebrou o silêncio: "Você é o herdeiro do Deus Gavião. Pense no lado bom disso..."
- Cale essa boca! - cortou Tyrrel. A ave se sobressaltou com o rosnado, e ficou quieta. Ele continuou: "Tudo o que eu queria era um bom encontro, poxa! Uma garota legal! Só isso, UMA GAROTA LEGAL! E agora eu estou pelado, com frio, sabendo que daqui para frente vou ser perseguido por um monte de bandido com cueca por cima das calças! 'Pense no lado bom disso?' Vá à merda antes que eu me esqueça!"
- Agora que você pode voar como um gavião, como pode pensar como se fosse uma galinha?
Tyrrel fuzilou a ave com o olhar, mas parou e respirou fundo. Voltou a andar. E começou a cantar, tristemente, enquanto caminhava.
"what would it take
what would it take to wipe that smile off of your face?
are you ready to be, are you ready to bleed?
are you ready to be heartbroken?
are you ready to bleed? (heartbroken)"
Ele respirou fundo e continuou cantando, enquanto desaparecia ao lado de sua parceira de penas noite adentro:
"well you better get ready now baby
ready to bleed, ready to bleed..."
