.:: Vida ::.
Quanto mais eu penso no pedaço de papel que agora adorna minha escrivaninha, ao lado da cama quase intocada, mais me sinto viva. É estranho, é uma ansiedade que se faz presente em mim e que, mesmo ciente de minha vontade contrária, insiste em permanecer ali. Insiste em me fazer fitar o pedaço de papel a todo instante. Talvez por isso tenha me retirado do quarto para a sala mais cedo do que de costume. São nove horas e já me encontro sentada no sofá a ler as manchetes do jornal diário que, conforme ordenado, o prestativo porteiro vem deixar-me todos os dias abaixo de meu tapete. Meus olhos visam o jornal, mas não me ponho a lê-lo. Eles passam pelas manchetes sem a mínima vontade de voltar a prestar-lhes atenção.Sem nem perceber fecho o jornal e ponho-me a fitar a rua. Muitas pessoas ainda vão e vêm a essa hora, presas em seu cotidiano, em seu mundo tão frágil quanto vidro. Me debruço na janela para observá-los melhor. Fito cada rosto, franzino ou suave, preocupado ou alegre, jovem ou idoso, e todos me parecem tão serenos e sutis.
Percebo-me com um pequeno sorriso no rosto, e percebo a ironia da cena. Eu, um ser que tem eras pela frente, que nunca envelhecera, que nunca viverá em um mundinho frágil como o deles, que deveria estar a esbanjar sua juventude eterna e seus problemas que têm séculos para se resolver, na verdade permanecia a observar seres que iam e viam, preocupados em resolver problemas que têm até o dia seguinte para uma solução casual, seres que envelhecem e com isso se preocupam, seres que irão envelhecer e correm contra um tempo que virá incondicionalmente. Eu os invejava por isso, e não sei o por quê. Talvez eu saiba.
Porque eles haveriam de sentir, o que eu senti ao estar no quarto, milhares de vezes em suas vidas. Eles haverão de sentir-se vivos a cada dia que levantarem perante os raios de sol que se esgueiram por suas janelas. Nesse momento eu percebi, mais do que nunca, o porquê daquele pedaço de papel continuar em minha escrivaninha, dobrado e esquecido, como se n fosse minha única ligação com meu passado perdido. Pelo simples motivo de que ele não me liga só a um passado que nunca mais hei de reaver, mas porque ele me liga a uma Vida que, mal ou bem eu não possuí, mas que sempre almeijei. Ele permenaecerá lá até que eu não mais a deseje com tanta intensidade. Até que eu olhe para os seres que passam por minha janela e veja neles apenas o "gado" que meus semelhantes enxergam. Até lá continuarei a ser uma louca, desvairada, uma lunática que prefere a solidão a companhia estilhaçada de seus irmãos, a caminhar só e melancólica pelas ruas, escondida em um sobretudo negro. Adornada por uma beleza sobrenatural.
