Saulo Dourado
PARTE 3 - FINALEle fechou os olhos com as lágrimas descendo na face para poder chutar aquilo. Livrar-se. Era isso mesmo que ia fazer. Em sua cabeça era só: "Preciso fazer isso! Preciso! Qual o problema? É só não olhar! Você não chuta a bola? Aposto que já meteu em pé em várias tão macias quanto um pedaço de carne...só isso...não é uma pessoa...é um pedaço" Nesse último pensamento, sendo companhado pelo olhar de alguns, Gabriel chutou.
Mariana gritou.
- Não pra cá, Gabriel! Não! - gritou Marcos.
Tarde demais. Aquilo que já constituiu um corpo foi em direção aos alunos da oitava série matutina turma D. A carne passou capotando um pouco, deixando alguns fragmentos de si pelo caminho, o couro flácido balançou com o movimento. Rolou até que batesse contra os pés de Lara. A garota abriu os olhos e viu...era...aquilo...oh, meu Deus, era aquilo! OH, MEU DEUS, ERA AQUILO!!!!
Lara berrou com todas as forças de seu pulmão e arremessou os braços para um lugar em que não teve controle.
A parte do compasso que tinha um ferro perfurou o antebraço de Fabrício até ficar cravado. O garoto gritou junto, mas de dor e não de algum sentimento ruim. O sangue borrifou no cabelo de Lara e escorreu até a mão.
O mesmo liquído que lembra a destruição humana e de cor vermelha começou a jorrar de dentro do buraco do ar-condicionado que era onde Fernando tinha sido puxado, onde havia as frestras. Deu-se para ver os braços do garoto saírem por aquela abertura, mordidos com verocidade. Dava-se para ver a articulação do cotovelo, o branco grotesco do osso humano. Isso aconteceu rapidamente. Logo os braços foram puxados novamente, Ele tinha puxado o corpo de volta para si.
Ouviu-se a coisa caminhar novamente pelo ar-condicionado.
Gabriel se escondeu debaixo da mesa do professor. Fabrício caiu no chão e retirou o compasso de dentro de sua carne. Lara desmaiou novamente. Marta e Marcos se abraçaram com força. Mariana simplesmente se paralizou sem saber o que fazer igual a Luciana e Diogo. Samuel aproximou-se ao máximo da janela. Eduardo sentou-se na cadeira e ficou olhando a "caixa" branca com alguns pontos de destruição.
Diogo não tinha que se preocupar apesar de estar paralizado e em pé na cadeira. Sua carteira estava afastado de um possível alcance da coisa.
Dessa vez, ao ouvir o barulho do algo caminhando, ninguém gritou.
Tudo voltou ao silêncio novamente depois de alguns instantes.
Marta caminhou um pouco para trás ao se desenvolver de Marcos, ao fazer isto, seu pé direito pisou com força em algo que lhe lembrou um pouco quando ela pisou no bife do seu pastor belga. Não era muito parecido, mas lembrava. Agora ouvia um osso manifestando de forma agoniante. Saiu mais carne do lugar onde não havia nada como barreiras, o lado que tinha se divorciado do tórax de Gilberto. A garoto sentiu náuseas.
Diogo olhou e pôde ouvir o estômago remexendo, não podia suportar mais aquela situação. Não poderia sentir aquele cheiro e ainda ter que enfrentar o horror de algo desconhecido. Os seres humanos têm medo das incógnitas, seja das coisas que parecem mais estranhas como Marcos já tinha ouvido falar. O interior que ele visitara possui uma história que tinha acontecido há vinte anos anteriores. O caso de haver um coqueiro alto no parque da cidade, onde todos se impressionavam. Pela noite, diz o povo, que houve um velho que ouviu uma voz lhe chamando. Não sabia quem ou que era, só sabia que aquela voz lhe chamava. Procurou até chegar debaixo do coqueiro...um côco desabou em cima de seu crânio, matando-o. Três pessoas morreram assim em uma semana, com o mesmo coqueiro. Isolaram-no, pois ninguém teve coragem de tira-lo dali...mas soa até um tanto ridículo: o coqueiro mal-assombrado, mas é desconhecido! Alguém poderia explicar o que estava havendo? Não com firmeza! Quando algo que não podemos explicar ocorre, sempre nos sentimos abalados ou pelo menos um coração acelerado. Ainda mais quando aquilo traz mortes. O homem tem medo de morrer, esse é o fato. Talvez não tenha exatamente medo da morte e sim medo de enfrentar a morte...observando bem uma rotina, dá para perceber que vivemos para não morrer, como um ladrão que corre para não ser pego.
Diogo não agüentou-se mais em suas pernas e desabou para trás. Deixou-se. Tentou ignorar o fato do que seu cérebro lhe alertava: iria se machucar! Bateria a cabeça na parede, quebraria algum osso...mas era bom! Quando acontece de forte conosco, esquecemos o fato anterior, pelo menos por uns instantes. Seu corpo caiu.
PRAAAAA
Houve um som de destruição...uma destruição de madeira. Dois buracos se formaram na "caixa" branca e, um segundo depois, dois braços saíram por lá...um em cada buraco. Eram duas coisas horrendas...algo como braços humanos onde já não há oxigênio há muito tempo e com algumas esfoladuras. Lembrava algo como um morto-vivo, mas não era. Era o desconhecido. Era alguma coisa que nunca se esqueceriam na vida, era algo que poderia expressar muito mais terror do que qualquer espírito, fantasma, alma penada...seja o que for, ou até mesmo um ladrão com um revólver. Era uma figura que representava o medo. E ela mesma que agarrou Diogo por seus bíceps.
- AHHHH! - gritou o garoto - Alguém me ajude, por favor! Eu não quero morrer! Eu quero ser médico! Eu quero descobrir a cura do câncer! Eu quero ser alguém, não um defunto! Não um defunto! Oh, por favor! OH, POR FAVOR!
A coisa voltou seus braços com toda força que podia, provocando uma dor em norme em Diogo, pois a sua coluna se chocava contra a quina que possuía metal. Uma das garras direitas da criatura penetrou em seu tríceps no momento do choque. O sangue escorreu...livre para voar. Eu sou liiiiiiiiiivre para descer!!!
O golpe foi repetido.
Leonardo berrou:
- Vamos puxar ele! A gente precisa fazer alguma coisa! Não vamos perder mais um colega nosso pra ele!
Eduardo vociferou em concordância.
Se perguntassem, ela responderia: já estou acostumada. Eu já faço todo dia, não é mesmo? O que é que tem? Um dia tudo se resolve! Lutar na vida é melhor do que ficar parado e sempre estar na mesma. Talvez não com essas palavras, mas era isso que Suzana reponderia se perguntassem o motivo de ela varrer a escola. Gostava do ambiente de lá e os alunos não eram tão idiotas como nas outras que já tinha trabalhado. Olha! Ela tinha já progredido na vida...agora varria na melhor escola da cidade! Mas progrediria mais, tinha apenas vinte e cinco anos e possuía um belo corpo. Casar com o ricaço poderia ser o passe de mágica para isso, mas queria mesmo com o seu suor. Varrendo, varrendo...
- Bom dia, Suzana. - disse a coordenadora passando ali perto dela, no térreo do colégio.
- Bom dia! - disse a moça com um sorriso. O fato de não ser esquecida ali lhe dava forças para continuar. O pior do que não ter uma profissão muito privilegiada é sentir-se isolada. Algo que ninguém liga. Isso é horrível! Um simples bom dia basta para ela chegar a um ponto de alegria.
- E aí? Como é que anda o trabalho? - indagou a coordenadora.
- Tá tudo indo...um pouco cansada de limpar a bagunça desses meninos.
A coordenadora deu um sorriso cordial e indagou:
- Falta limpar mais uma coisa?
- Falta sim! A capela.
- E você limpa todo dia? Poucos vão lá...não precisa muito...
- Eu vou uma vez a cada três dias. Aproveito e faço meus pedidos ao Criador!
- Tomara que Ele atenda!
- Vai! Eu tenho fé.
Conversaram mais um pouco e logo a coordenadora entrou em sua sala logo ali perto.
Suzana encaminhou-se para a capela com o pensamento limpo. Não encontraria mais problemas, pois o grupo de garotos que se masturbava ali no intervalo com revistas de mulheres peladas já tinham, por preferência dos pais, mudado-se do colégio.
A jovem abriu a porta da capela e, antes que pudesse benzer-se, viu um corpo caído. Viu o sangue coagulado em Jesus e por outros cantos, borrifado na parede como se alguém tivesse espirrado o líquido ali. Os olhos do menino estavam petrificados nas órbitas, a garganta aberta...ele tinha se degolado! Havia um menino suicida dentro da capela.
Suzana fechou a porta bruscamente e correu. E como o fez rápido! Não é possível! Lembrou do rosto daquele menino...era o mesmo que andava sozinho pelos intervalos. Sentia pena dele, por isso memorizou seu rosto. Agora ele estava morto no lugar onde deveria haver mais paz no colégio, não era paradeiro para suicida. Um filme sem muita importância passou pela cabeça da mulher enquanto ela corria até o andar da oitava série. Não falaria com a coordenadora, ela era legal, mas não tinha pulso forte para agüentar uma coisa como essas. A única pessoa que tinha certeza que lhe ajudaria era Dora.
Passou pelas oitava séries com velocidade, teve até impressão de ouvir alguém gritando "Vamos pegar ele", mas não deu importância. Alguma apresentação ou algo assim. O que lhe importava era que havia algo de terrível dentro da escola, algo que mudaria tudo!
Suzana abriu a porta com toda sua força.
Dora abriu os olhos e levantou sua cabeça com os olhos esbugalhados em direção a quem a tinha acordado.
- Que susto, Suzana! Quer me matar do coração? - falou Dora.
- Mulher, você tem que me acompanhar!
A auxiliar franziu as sobrancelhas em um gesto de preocupação e disse:
- Você parece estar muito tensa! Estou ficando com medo...o que é?
- Só me acompanhe. Eu não posso falar em voz alta. Já pensou se alguém ouve?
Dora sorriu maliciosamente e fez um gesto do dedo médio erguido, e o polegar e o indicador juntos formando uma "roda na outra mão. Dora colocou o dedo dentro da "roda", entrando e saindo, entrando e saindo...
- É disso que você está falando?
- Não! É sério! - então sussurrou - Estou falando de morte.
Dora se razão. As palavras saíram da boca de Suzana de forma macabra demais.
O telefone foi estridente ali perto.
- Alô? – atendeu Dora.
Enquantos os colegas tentavam retirar Diogo das garras do algo, Sandro telefonava do seu celular para o telefone do gabinete da auxiliar de disciplina. Que sorte a sua mente ter saído do estado de coma temporário e ele poder lembrar que possuía um telefone. E sorte dele ser um pouco indisciplinado às vezes e ter uma mãe preocupada, pois ela anotara o número de Dora para que pudesse sempre saber como anda o seu filho. Ela anotou no celular de Sandro porque o telefone dela a pequena agenda estava lotada de telefones importantes.
- Alô? – repetiu Dora.
- Oh, meu Deus! Ainda bem que você atendeu, ainda bem...meu Deus.
- Quem é?
- É...é...o Sandro da oitava série D.
- Olha, Sandro, eu estou muita ocupada no momento, muito mesmo...pode ligar mais tarde?
- Eu também tenho uma coisa muito importante pra dizer! É...é...ouve os gritos?
- É sério, Sandro. Sem brincadeiras, preciso ir.
Dora e Suzana desceram até a capela.
- Oh, minha nossa! Oh, minha nossa! Eu preciso vomitar – gritou Dora.
A besta batia Diogo cada vez mais no metal enquanto as pessoas ficavam em volta, gritando e pedindo pelo amor de Deus. Nas outras salas, quem conseguia ouvir, muito desconcentrado na aula, achava que fazia parte da apresentação de Português, alguma encenação dramática.
- Solta o Diogo! – berrava Luciana.
- Não adianta, o bicho não vai largar – choramingava Samuel.
Num grito quase gutural, Leonardo chegou com uma cadeira nas duas mãos e num esforçado golpe, acertou o braço esquerdo da coisa. Viram a madeira colidir numa consistência morta e quase ouviram um guincho, mas talvez fosse só imaginação. A besta apenas recuou os braços e deixou Diogo, cair, chorando no leito escolar.
Lara apertou-lhe a mão enquanto ele tentava respirar no chão.
Diogo se debatia porque acima dele a coisa poderia ser vista, pelo menos os seus olhos.
Quando direcionaram os olhos para lá, não havia mais ninguém.
O garoto espancado continuava no chão apertando os próprios olhos com as mãos.
Lara apertava mais as mãos dele e cantava baixinho, sem razão em especial, mas era uma música que lhe acalmava (O Bêbado e O Equilibrista):
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua, tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens, lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas, que sufoco
Louco, o bêbado com chapéu-côco
Fazia irreverências mil pra noite do Brasil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete
Chora a nossa pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarices no solo do Brasil
Mas sei, que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente, a esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista tem que continuar
As meninas ao lado abraçaram Lara, emocionados. Os garotos ficavam parados, olhando para os lados sem saber o que fazer se queriam realmente aquele afeto. Mas no fundo achavam incoveniente gostar de alguém em frente a algo maligno.
Sandro continuava no canto da sala.
Dora voltou aos prantos até a sala dela com Suzana ainda perplexa.
O telefone tocou de novo.
- Alô? – disse ela chorosa.
- Por favor, Dora. Tem uma coisa muito errada acontecendo na oitava série D. Tem gente morta aqui...não desliga não! Mas não entra na sala, pode ser perigoso pra você. Apenas saiba que tem algo muito ruim aqui... – Sandro também estava começando a chorar.
- Não sabia que você era tão mau, Sandro. Um colega seu se suicidou dentro da capela! Oh! Por que eu estou dizendo isso?
Um silêncio entre os dois se prevaleceu.
Nem Samuel poderia permitir esse pequeno vácuo de diálogo temendo que ela desligasse, nem Dora poderia desligar por ter ainda que tentar se redimir, redimir-se perante a tolice que fizera.
Até que a voz de Samuel brilhou:
- Eu tenho uma idéia, Dora. Você tem que me ouvir. Se eu estou mentindo, quero me ver morto amanhã. Estirado debaixo de um caminhã! Por favor, acredite. Tem uma coisa no ar-condicionado matando a gente...ele esquartejou o professor Gilberto. Mas ninguém pode passar na porta, se não ele pega.
- E se eu estiver acreditando em você, o que você quer que eu faça?
- Jogue o corpo desse meu colega pra cima assim que entrar. Nós todos vamos correr enquanto a coisa agarra o morto.
- Eu não acredito que estou ouvindo isso.
- Não quero fazer chantagem, mas se não quer se sentir mal pro resto da vida por não ter salvado vidas, faça isso.
Dora nunca sentiu uma voz tão convincente em sua vida. Como ela estava já emotiva, decidiu colaborar:
- Eu vou fazer isso, mas se for mentira, você não vai estudar nem aqui e nem mais em canto nenhum.
- Eu já lhe disse. Se for mentira, eu estarei morto. E sim!! Abra a porta com uma vassoura...nunca se sabe. E dê um toque em meu celular quando estiver tudo preparado.
- Ei, todo mundo! Ei, todo mundo! – gritou Sandro dentro da sala enquanto as colegas estavam abraçadas.
- O que foi, Sandro? – perguntou Eduardo, totalmente impaciente.
- Nosso problema parece que vai se resolver.
- Como? Vamos voar pela janela? – ironizou Gabriel.
- Sabe o Tadeu? Ele foi o único que não voltou para a aula hoje.
Marcos e Marta estavam abraçados, ouvindo o que Sandro tinha a dizer.
Continuou:
- Parece que ele se suicidou na capela. E a gente vai ter que cometer uma loucura. Eu liguei para Dora, vocês ouviram, certo?
- Eu ouvi! – disse Mariana – Ele pediu para que Dora jogasse esse corpo para cima assim que abrisse a porta da sala.
- E ela aceitou. – completou Sandro.
- Então temos que está preparados para correr? – perguntou Marta.
- Sim! Assim que ela der um toque para o meu celular...
Todos olharam para a mão dele.
- Vai dar tempo?
- Vamos apostar na sorte.
- Mas, Dora, como vamos subir dois andares com um corpo na mão? – indagou Suzana.
- É um caso de vida ou morte, agora não há explicações.
As duas estavam dentro da capela.
- Quem vai pegar o corpo? – perguntou Suzana.
- Você!
- De jeito nenhum!
- Mas você não tem que fazer isso...eu já vou me arriscar abrindo a porta. Parece que têm meninos em perigo dentro da sala. Você pode ver por Tadeu: há algo de errado por aqui.
Suzana olhou para um lado, olhou para o lado e demonstrou estar convencida. Observou o garoto morto enquanto pigarreou. Com os olhos fechados, agachou-se e o segurou. Sentia um sexto elemento no corpo do menino, o elemento morte e quase sufucou a si mesmo com esse pensamento.
- Agora vamos correr! Corre!
Suzana correu com o menino nos braços com a impressão que a qualquer momento ele poderia envolver as mãos no seu pescoço e dar um apertão. Só para assustar. E sorrir !
Dora quase tropeçou três vezes nos degrais, mas chegou inteira na sua sala e parou perto do telefone. Ficou parada.
- Vamos logo, Dora! Eu não posso ficar o dia todo com esse menino no colo! Ai, minha senhora...
Dora continuou a encará-la tristemente.
- O que foi, mulher? Quer me deixar com mais medo ainda?
- Eu não sei o número do celular de Sandro.
- Vocês acham que ela está demorando? – indagou Marcos para todos.
- Não. – disse Samuel, que ficara mudo por um tempo por ali – Tem que ter cuidado para passar com corpo pelo colégio.
- E se ela só fingiu acreditar? – sugeriu pessimamente Eduardo.
- Vira essa boca pra lá! – disse Mariana.
- Vocês já pararam pra pensar que tudo é muito fácil de perder? – perguntou Leonardo, sentado numa carteira, ainda ofegando.
- Como assim, Léo? – indagou Luciana.
- A gente tava numa apresentação bem alegre, cheia de vida. Pô! Nem começamos a vida adulta ainda. Nem o Fernando, nem o Arthur. E de repente... vem uma coisa que nem no jornal aparece, sabe? É um perigo que não dá pra imaginar.
- Não podemos pensar que tudo está perdido. – falou Marta – Certo que mesmo que a gente saia desse lugar, talvez nunca mais vamos querer entrar de novo nessa sala. Nós vamos viver em pânico, achando que tem uma coisa dessas debaixo da cama, dentro da geladeira ou escondido atrás da porta. Vamos viver sempre em alerta. Vamos criar nosso filhos muito perto de nós, temendo que a besta seja um devorador de criancinhas também. Mas eu não quero e nem vou servir de alimento de ninguém.
- Você já pensou que tudo isso pode ser uma vingança? – indagou Fabrício que ficou totalmente calado por aqueles tempos.
- Que tipo de vingança, Fabrício? – perguntou Samuel.
- Pelo homem ter mania de devorar a todos?
- Não, não creio. – disse Mariana – Creio em algo com muita fome. Talvez nem coma todos os dias...talvez acorde uma vez ou outra para achar alimentos.
Quando Diogo fez menção de falar, ouviu-se uma batida na porta.
- Sandro! Sandro! Estamos aqui. – gritou Dora. – Com o que você pediu.
Quase olharam para o celular para ver se aquela voz saía do telefone, como fora combinada. Mas era impossível! Ela estava à porta, fora do combinado, mas isso não afetaria totalmente o curso do plano.
Sandro avisou para que todos ficassem em posição de corrida. Assim que o monstro apanhasse o corpo.
- Eu não vou! Isso não vai dar certo! – gritou Fabrício – É muita gente para escapar.
- Cala essa boca! – exclamou Leonardo.
- Corram agachados! – bradou Marcos.
Com o barulho, a coisa começou a bater-se contra a madeira, numa sonoplastia assustadora.
Dora abriu a porta com um chute e não com a vassoura sugerida. A porta se escancarou e Suzana prepareu-se para jogar.
- Estamos quase lá. – falou Gabriel ao colocar rapidamente uma cadeira na ponta da porta, onde a coisa não alcançava, para que a porta não se fechasse.
Foi um desespero mudo em meio à vários sons. Muitas vezes, quando olhamos pela janela, assistimos a algum tipo de desespero mudo. Coisas como uma mulher andando com um homem, poderia significar um breve rapto, não? E quando, no deserto da rua, um mendigo caminha com uma sacola cheia de latas nas costas e um rapaz bem arrumado anda logo a frente? Há um desespero mudo em que algo pode acontecer.
A faxineira do colégio sentia isso inconscientemente e preparou o impulso dos seus braços para uma possível última chance dos estudantes.
Suzana não conseguiu forças e o corpo acabou caindo e rolando até debaixo do buraco feito para apanhar Gilberto.
- Droga!!! - vociferou Eduardo.
Mais batidas na madeira.
Soluços de Suzana.
Desespero agitador.
Num ato de coragem, Marcos, agachado, puxou o corpo pela mão. A mão da coisa ergueu-se em sua direção, mas apenas fez vento perto de seus cabelos. O garoto conseguiu puxar o corpo para si.
- Samuel! Você que é bom em arremessar bola...jogue esse corpo na altura certa.
Primeiramente, Samuel não compreendeu muito bem o comando, mas logo pegou o corpo e o posicionou como se fosse arremessar uma bola.
Seria o maior ponto de sua vida ou o menor ponto de sua morte.
- 1...2...3! Já! – gritou Samuel.
Ele lançou Tadeu-cadáver pelo ar e logo ele agarrou enquanto os alunos saíam apressados, chorando e agachados. A coisa devorava a comida entregue, dando tempo para que fugissem. Pedaços de carne caíam em cima das pessoas, mas eles nem mais ligavam para isso.
Um por um conseguiu sair. Menos Fabrício que começou a gritar:
- Eu não vou passar por aí! Eu não consigo! Acho que ele vai me pegar, vai me pegar!
- Vem!!
- Não!
Eduardo voltou para a sala da mesma forma e derrubou o amigo, agarrando-o pelo pé. Fabrício bateu o crânio com força no chão e preocupou-se mais em gritar pela dor do quê com a emoção.
A coisa deixou a orelha de Tadeu cair, sem querer. Certeiramente na garganta de Fabrício que vomitou no corredor mesmo.
Os alunos da oitava série D não quiseram ficar mais um instante perto daquele lugar. Correram escada abaixo, enquanto alguns professores estavam perambulando pelo corredor para saber que barulho era aquele. Surpreenderam-se ao ver aquela correria e gritaria. Nem ouviram a coisa irritada começar a cortar os fios do ar-condicionado. Um por um!
Ainda bem que ninguém estava na porta da sala quando o ar-condicionado explodiu.
Quando foram fazer a perícia no local, não acharam nada sobrehumano queimado.
Na porta do colégio, os alunos ainda se recuperavam do choque, respirando o fundo de seus pulmões, dois pulmões que pareciam ter unido a um só.
As autoridades sendo avisadas do ocorrido e todos os alunos sendo dispensados.
O beijo de Marcos e Marta em frente ao colégio teve gosto de lágrima.
Eu quis permanecer esse lance da coisa de forma bem kafkiana mesmo. Nem me dei ao trabalho de descrever esse mal ou de dar uma explicação plausível para que ele estivesse ali. Não importa o porquê de ele estar ali, pois ele já estava ali. Da mesma forma que não interessa como você veio parar no universo, você está no universo e não vai poder sair dele se quiser, só se você pular da janela do seu quarto até o solo rigído do seu pátio.
Confesso ter gostado de reutilizar meus contos antigüíssimos, mas claro que não vou colocá-los todos aqui. Não quero me perder na tosquidão! Eu até pretendia colocar algo mais bonitinho no próximo sábado, mas os contos com ar "bonitinho" são pequenos ou são utilizados o suficiente para escaparem da web.
Bom, daqui pra lá eu resolvo.
Estou ansioso por comentários!!
"que a noite caia
de repente caia
tão demente
quanto um raio
que a noite traga
alívio imediato"
Engenheiros do Hawaii
Saulo Dourado
