A PAIXÃO DOS EDAIN

Capítulo III - A Missão de Haldir

SEM RESPOSTAS

Haldir refletia sobre as palavras da Senhora Galadriel numa das varandas do palácio. Amava Caras Galadhom, contudo amava ainda mais sua floresta, e devotara a vida à missão de protegê-las, o que absolutamente não sentia estar fazendo agora.

O Senhor Celeborn, entretanto, não escondera seu desagrado ante o questionamento da missão delegada pela Rainha.

- Mandarei mensagem a Rúmil que assuma a liderança dos guardiões, pelo tempo que a sua presença em Caras Galadhom se faça necessária. A ausência de comando não os assaltara mais – dispensara-o de sua presença o Rei.

Haldir podia sentir o sangue lhe subindo às faces novamente à lembrança daquela cena, quando Niéle veio ao seu encontro com Mîleithel no colo. Haldir segurou-o como se nunca houvesse feito outra coisa na vida, as preocupações retiradas de sua mente, e contemplou o seu tithen, que crescera ainda mais nas últimas semanas, beijando-lhe a cabeça e aspirando seu perfume.

O coração de Niéle se enchia de ternura ao observar a cena do guerreiro dominado pelo menino:

- As crianças fazem falta em nossas vidas – disse por fim.

- A edain deveria dá-la a nós, já que parece ser o único ser vivo em toda Caras Galadhom indiferente a ele. Até os ramos das árvores parecem se aproximar para acariciá-lo – respondeu Haldir.

A consciência da mulher finalmente despertara, mas quando a criança lhe fora levada, simplesmente se afastara.

- Não sabemos o que se passa na mente dela, Haldir, talvez nem saiba que o filho é seu – ponderou Niéle.

Haldir respirou fundo, e recebeu as preocupações de volta. A mulher não pronunciara uma palavra, nem mesmo em alguma língua desconhecida. Na verdade, sua atitude não era diferente da do pequeno, percorrendo tudo à sua volta com olhares curiosos. A busca seria longa, e estava apenas começando, Haldir precisava aceitar isso.

Não sem resistência, Haldir entregou Mîleithel às suas muitas apaixonadas e se dirigiu ao quarto da mãe. A mulher tentava se levantar do chão. Aparentemente tentara sair sozinha da cama.

Haldir a amparou até a varanda, em cuja balaustrada ela se apoiou, olhando fascinada para a cidade nas árvores.

- Caras Galadhom – os olhos do Elfo também reverenciaram a Capital de Lothlórien.

- Ca-Cars Gartom? – uma voz áspera e insegura saiu da garganta da jovem.

- Caras Ga-la-dhom – replicou o elfo olhando para a mulher agora.

- Caras Galthrom – sua voz procurava um caminho.

- Caras Ga – la – dhom. – disse Haldir bem pausadamente.

- Caras Galadhom – sua voz era grave e rascante, mas Haldir a olhava com intensidade agora.

- Caras Galadhom – repetiu ela com mais firmeza, quase com alegria.

- Haldir, que maravilha! – Niéle viera ao aposento.

- Niéle – Haldir a chamou para a varanda com um gesto.

- Ni-ér – repetiu a edain.

- Ni-é-le – disse Haldir.

- Ni-é-le – repetiu a moça, tocando no ombro da dama. – Niéle!

- Raaldir – disse tocando no peito do capitão.

- Hal-dir.

- Hal-dir – repetiu então – Niéle. Haldir. Cars Galdrom – a moça apontou cada um dos nomeados, e então pousou a mão em si mesma, como se perguntasse quem era ela.

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CABELOS NEGROS

A jovem melhorara muito nos últimos dias, e agora caminhavam pela relva, abaixo dos talans que constituíam a cidade.

Haldir a acompanhava nomeando aquilo que ela apontava, e a moça apontava tudo que via. Surpreendentemente, retinha quase todas as palavras, renomeando no caminho de volta aquilo que aprendera na ida, durante esses passeios.

Haldir percebia que, embora procurasse não demonstrar, ela estava cansada, mas dessa vez pensara numa lição especial, por isso continuou até chegarem numa clareira afastada das luzes de Caras Galadhom. Lá, Haldir estendeu sua capa na relva e sentou sobre ela.

Sem qualquer sutileza, Mornfinniel praticamente atirou-se no chão, revelando no contentamento externado com a parada a exaustão que procurara esconder de seu guia.

Haldir riu-se, divertido de seus dois pupilos: o pequeno que estava ensinando a andar, e o grande que estava ensinando a falar o sindarin. Recostou a cabeça sobre um dos braços e buscou sua atenção:

- Mornfinniel – Cabelos Negros, assim ele a chamara, por sua característica mais marcante, a massa negra que nem os pentes élficos do Palácio da Senhora Galadriel eram capazes de prender, e que só podia ser domada por uma trança grossa e firme, como a que Mornfinniel usava agora.

Ela olhou para ele e para seu braço esticado, apontado para o céu.

- Olhe, Cabelos Negros, as estrelas de Elbereth.

- Gil Elbereth?

- Elbereth, Varda Elentari, Rainha das Estrelas – explicou Haldir.

- Varda Elentari – repetiu Mornfinniel.

- Carnil, Luinil e Elemírë – apontou Haldir.

- Carnil?

- Carnil. Luinil.

- Luinil.

- E Elemírë.

- Elemírë?

- Elemírë.

- E a mais brilhante de todas: Eärendil.

- Eärendil...

O vestido verde claro de Mornfinniel retornou sujo da noite sob as estrelas.

- Dê-me este vestido, Cabelos Negros, vou-lhe providenciar outro – disse Niéle.

- Vestido? Outro? – indagou Mornfinniel.

- Vestido, vestido como o de Niéle – e a dama abriu a roda de sua saia em uma reverência – roupa nova para Cabelos Negros.

- Niéle, Mornfinniel roupa Haldir – falou a jovem.

- O quê, minha querida? – perguntou Niéle sem compreender.

- Roupa Haldir – Mornfinniel gesticulava tentando se fazer entender. As próprias limitações a irritavam, e seu rosto foi ficando vermelho, para pesar da dama élfica. Após um grito rouco de impaciência, a mulher respirou com esforço e tentou se explicar mais uma vez – Roupa como Haldir. Mornfinniel roupa como Haldir.

- Você quer usar roupas iguais às de Haldir? Calça, túnicas e capa? São roupas dos guardiões, minha querida, não são para moças.

- Calça-túnica, calça-túnica, Mornfinniel roupa como Haldir – repetiu Cabelos Negros com firmeza.

Niéle então providenciou peças pequenas para o corpo magro. Mornfinniel pediu também botas (roupa pés, ela disse).

– Você parece ainda mais magra com essas calças, minha criança, tem certeza de que não quer usar o vestido que eu lhe trouxe? – insistiu a elfa

- Não, Niéle. Mornfinniel roupas guardiões – respondeu a jovem lutando contra o cabelo. Seus cachos negros eram uma entidade à parte, que parecia recuperar o vigor com muito mais velocidade que o resto do corpo. Apesar de sedosos, eram grossos e não se deixavam desfazer por nenhum pente; e quando aquela juba estava solta, parecia totalmente desproporcional à figurinha mirrada, cuja magreza as calças justas e a túnica larga evidenciavam ainda mais.

Quando conseguiu por fim aprisionar suas melenas numa severa trança, Mornfinniel plantou um beijo no rosto da filha de Lórien e saiu sorridente do talan.

A roupa dos guardiões lhe liberava os movimentos, e a garota descia as escadas da cidade suspensa aceleradamente, explorando-os. A figura agitada e morena de longa trança negra atraindo as atenções ao pular os degraus.

A distância entre o último nível antes do solo e este foi vencida de um salto. Mornfinniel testava a força que suas pernas reencontravam correndo e saltando pelos caminhos que percorrera com Haldir.

Distanciando-se nos limites da cidade das árvores, os olhos negros curiosos de Mornfinniel divisaram uma construção de pedra, mas tão integrada à paisagem formada pelos altos pés de Mallorn – a árvore característica da Floresta Dourada - que passava sem chamar a atenção.

Mornfinniel aproximou-se lentamente do edifício, pois embora já fosse perceptível que não se deixava intimidar facilmente, sentiu uma certa reverência pelas linhas simples que irradiavam uma perfeição de outras eras, ou outro mundo.

O som de uma voz familiar, entretanto, fê-la finalmente atravessar o umbral do prédio:

- Mestre Ferreiro, a arte dos Noldor sobrevive em suas mãos – dizia Haldir.

- Jovem e bravo Capitão, somente alguém que não viveu os tempos antigos poderia dirigir tais palavras gentis a um velho, que apenas se esforça para manter viva a última chama de uma tradição que há muito deixou esta Terra Média – respondeu um elfo cujas mãos calejadas davam testemunhos de muitas eras – Mas que dia afortunado é esse que me trouxe dois visitantes?

Haldir voltou-se para os passos que chegavam e encontrou o mesmo sorriso cativante de Mîleithel no rosto de sua mãe.

Mornfinniel não aguardou convite para dirigir-se à obra que o Mestre Ferreiro exibia a Haldir, uma espada cuja lâmina larga era tão longa quanto o cabo trabalhado.

- Sua edain, Haldir?

- Esta é Mornfinniel dos cabelos negros, mestre das forjas, pelo menos assim a chamei.

- Ela é diferente; exótica e vivaz – a moça não prestava atenção às expressões em noldorin que desconhecia, mas seu sorriso agora buscava permissão para tocar as armas, e o mestre ferreiro lhe estendeu uma espada menor, ligeiramente curva.

- Prove esta, filha dos sucessores. Vestiu-se como um dos guardiões, talvez faça jus às suas armas também – disse o artífice, observando a postura de Mornfinniel ao empunhá-la e experimentar seu peso.

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A DURAÇÃO DA JORNADA

De uma informação ao menos Haldir passou a dispor: Mornfinniel, mesmo pesando a metade do peso do Elfo, era um oponente respeitável com uma espada na mão.

As pistas sobre sua história, entretanto, continuaram escassas. O progresso de Haldir com a memória de Mornfinniel fora inversamente proporcional ao desenvolvimento de Mîleithel, que já andava e falava e acabara de ganhar sua primeira pequena espada de brinquedo.

A garota já quase dominava o sindarin, e recuperara a saúde, mas tentar lembrar sua origem ou seu verdadeiro nome revelaram-se apenas fonte de uma angústia que nem a benção de Lórien mitigava totalmente.

As estações cobriram Lothlórien de folhas douradas e depois de flores douradas. Mais de meio ano se passara, e Haldir começou a pensar se a busca proposta pela senhora Galadriel não se acabaria revelando longa demais para a existência de um edain.

Os guardiões traziam das fronteiras notícias de que tudo corria bem sob o comando de Rúmil, mas tais notícias não contribuíam muito para acalmar a inquietude que começava a ganhar corpo em seu verdadeiro Capitão.

Conhecedor da resposta do Senhor Celeborn, Haldir decidiu-se por fim a procurar a Senhora Galadriel.

- Pode voltar à fronteira, Haldir – o coração dele se encheu de alívio e gratidão à Rainha – Mas não pode abandonar sua missão. – acrescentou Galadriel.

- Virei sempre a Caras Galadhom ter com Mornfinniel, Senhora.

- A alma dela encontrou paz e quietude aqui, Haldir, guardião da fronteira, mas talvez não seja disto que ela precisa para lembrar. Sua memória não está em Lothlórien ou Caras Galadhom. Leve-a com você.

- A fronteira pode ser um lugar perigoso, Senhora.

- Mornfinniel pode ser mais perigosa ainda, Haldir.

Mîleithel, pensou Haldir.

Tithen milui, Pequeno querido - escutou o guardião em sua mente - Mîleithel fica.

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Ao fim deste 3º capítulo, a parte introdutória da narrativa está concluída.

Àqueles que sentiram falta de aventura, peço desculpas, espero que não tenham morrido de tédio. Tentei avançar da forma mais ágil possível, mas não podia prejudicar a apresentação dos personagens e o estabelecimento do "cenário afetivo" do enredo.

Àqueles que sentiram falta de romance, peço só mais um pouco de paciência, em breve vai ser possível começar a sentir um perfume no ar...

Agradecimentos especiais a Sadie Sil (VIDAS E ESPÍRITOS) pelo estímulo e elogios extravagantes. Apesar do tanto que ela maltrata o Legolas, sua saga () é apaixonante, e seu conto curto "AFETO ROUBADO, VERDADE DECIFRADA" () definitivamente um must read.

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