A PAIXÃO DOS EDAIN

Capítulo IV - Entre os Guardiães

DE VOLTA À FRONTEIRA

Cabelos Negros era quase da altura de Orophin, e o mais novo dos irmãos ganhou sua amizade imediata pela falta de tato com que declarou que "um banho lhe fizera um bem enorme".

Já Rúmil, embora alegre pelo retorno do irmão, sentia-se entretanto contrariado; tanto pela exigente arrogância com que Haldir se imbuíra na missão de reafirmar sua liderança entre os guardiões, quanto pela presença da estranha entre os três: Mornfinniel os acompanhava aonde fossem, e também se acreditava, com seus óbvios pouquíssimos anos de vida, tão galadhrim da fronteira quanto os demais elfos, com seus séculos de aprendizado.

Contudo, seus passos eram pesados e seus movimentos sem sutileza, e Rúmil freqüentemente repreendia sua impaciência, impaciente ele mesmo com as cobranças rígidas do irmão mais velho após haver-se desabituado delas.

Orophin vinha tentando iniciá-la na arte do arqueiro, quando Rúmil disse a ele que aquilo era perda de tempo, pois sua limitada visão humana nunca permitiria a edain alcançar a maestria dos elfos.

- Mas você está bem próximo Rúmil, e eu o vejo muito bem, e talvez você não veja tão bem depois que eu esmurrar seus olhos élficos.

Rúmil respondeu que ela era um pobre ser rastejante que deveria ter, se não a inteligência, pelo menos a humildade de se colocar em seu devido lugar, bem inferior, na hora de se dirigir a um dos primogênitos.

Seus sensos superiores permitiram ao elfo desviar-se dos punhos, mas as pernas foram um golpe inesperado e desconhecido, e Rúmil se viu no chão, por baixo de Mornfinniel. Seu corpo inverteu a situação antes que ela pudesse cumprir sua ameaça, mas não antes que Haldir os visse se engalfinhando.

- O que é isso? – perguntou o capitão em um tom que fez com que ambos se levantassem imediatamente.

- ...

- Eu fiz uma pergunta.

Orophin também se sentia culpado, pois divertira-se com a briga. Os três olhavam para o chão agora, com as mãos para trás, o corpo rígido.

- Parece que temos aqui três voluntários para montar guarda o mês inteiro.

- ...

- Muito bem, podem ir para a extremidade nordeste, e espero que nem um coelho passe pelas fronteiras de Lórien sem que eu seja avisado. Quando vocês aprenderem o que é ser um guardião da Floresta Dourada, mandarei outro time rendê-los. Vão! Agora!

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Rúmil aproximou-se silenciosamente. Mornfinniel dormira de pé em seu turno, como ele tinha certeza que acabaria acontecendo. Ele designara turnos de 24 horas para cada um, embora Orophin e a moça não estivessem muito dispostos a obedecê-lo à princípio.

- Podemos ficar juntos no talan e nos revezar em turnos de seis horas – argumentara o irmão mais novo.

Entretanto, quando Mornfinniel percebeu que Orophin supunha que ela não seria capaz de fazê-lo, acatou a disposição de Rúmil.

Mas não agüentara muitas noites de vigília solitária na floresta tranqüila, onde o único som que se ouvia era o do pequeno riacho logo abaixo do talan.

Certo, pensou Rúmil, como já dissera Orophin "um banho podia lhe fazer um bem enorme". Rúmil a suspendeu no ar e atirou no riacho antes que ela pudesse esboçar qualquer reação, a não ser agarrar o cabelo do elfo, que caiu na água junto com Mornfinniel.

Dessa vez ela cumpriu o que prometera e acertou-o antes que Orophin terminasse de tirar a roupa e se atirar na água para separá-los.

- Parem! Parem! Só falta Haldir nos ver agora! – Apartou-os por fim o caçula.

- O que Haldir pode fazer de pior do que nos deixar aqui, esquecidos com essa, essa coisa fedorenta?! – xingou Rúmil.

- Fedorenta? O desculpe se ofendi seus sensos tão delicados, princesa. – já que estava na água mesmo, Mornfinniel retirou sua túnica e começou a esfregá-la. A calça teve o mesmo destino. As botas é que talvez levassem mais de um dia para secar.

Rúmil resolveu esfregar a própria roupa também, já que não podia esfregar a cara da edain nas pedras do riacho, e recolheu as flores de um arbusto próximo para produzir uma espuma perfumada. Mornfinniel olhou, mas não disse nada.

- Tome aqui, faça alguma coisa direito – disse Rúmil, jogando-lhe um pedaço da planta.

- Varda fará surgir no céu uma nova estrela em homenagem ao seu obséquio. – respondeu Mornfinniel com ironia, mas pegou a planta e começou a esfregar as flores e folhas primeiro nas roupas e depois no cabelo e no corpo.

- Não invoque os Valar nesse tom, edain – retrucou o elfo.

- Parece, entretanto, que as estrelas não brilham apenas sobre a cabeça dos primogênitos. Quem sabe os segundos filhos vieram porque a eternidade não suportava mais conviver com o fastio da sua raça?

- A sua raça deveria ter a humildade de buscar aprender o que não sabe.

- E você deveria ter a humildade de reconhecer que não sabe tudo.

- E o que é que eu não sei que poderia aprender com alguém como você?

- Poderia, por exemplo, aprender a usar a espada melhor do que uma donzela da corte.

- Mas que pretensão!

- Nem tanto – interveio Orophin – ela realmente é excepcional, para uma garota - acrescentou.

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IRMÃOS

Rúmil se surpreendeu. Ela realmente era muito boa: conhecia todos os movimentos e de alguma forma conseguia predizer a ação do oponente. Mais que isso, sabia movimentos diferentes, que o surpreenderam várias vezes. Desse dia em diante, o treino com a espada passou a ser uma constante, intercalado com o treino do arco, com o qual os irmãos lhe retribuíam.

E no verão tépido da Floresta Dourada, o riacho também passou a ser uma parte constante daqueles dias. Rúmil passou a chamá-la de "irmãzinha", como Orophin já fazia, e admitiu que a qualificação de "fedorenta" se relacionava mais com a forte impressão de seu primeiro encontro do que com a realidade presente:

- Mas você mudou muito muinthel. Daquela vez era só pele esticada em cima de osso, com aquela barriga grande e esquisita. Agora está forte e bronzeada. Está quase bonita. – e Rúmil empurrou-a para o fundo da água até que ela estivesse quase sem ar.

- Ora, ora. O que temos aqui? É assim que minhas fronteiras estão sendo guardadas?

- Haldir!

- Mae Govannen, irmão!

- Mae Govannen, meu capitão.

- Ainda bem que vim sozinho. Não quero disseminar a idéia de meus soldados se banharem nas águas de Lórien enquanto nossas fronteiras são invadidas.

- Nem mesmo um coelho invadiu Lothlórien por aqui. Teríamos aproveitado a oportunidade para ir avisá-lo e deixar esse lugar onde você nos esqueceu há bem mais de um mês.

- Agora esqueça seu posto ao menos uma vez, lembre que somos seus irmãos, e venha nadar conosco.

Haldir ensaiou uma recusa, mas os irmãos ameaçaram jogá-lo na água de roupa e tudo, e o elfo acabou preferindo mergulhar de livre e expontânea vontade para abraçar seus irmãos.

- E você, Cabelos Negros, aprendeu alguma coisa sobre ser um guardião da fronteira?

- Oh sim, é preciso fôlego – e os três se juntaram para empurrar Haldir para o fundo.

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Eram agora como uma família, deitados sob as estrelas.

- Onde você aprendeu a arte da espada?

- Não lembro.

- As lembranças estão dentro de você, muinthel, traga-as para a superfície, como fez com a espada.

- Não sei como. Quando Haldir me ensinou as palavras, já havia em mim o desejo de falar alguma coisa, mas até hoje não sei o que é, e só depois entendi que as palavras nem sempre trazem consigo as respostas.

- Mas o esquecimento não lhe pode trazer felicidade.

- Isso nenhum de nós pode saber.

- Às vezes, quando estamos assim, me vem uma lembrança, do céu na amplidão, com muitas estrelas, entretanto...não sei...não é este céu...nem são estas estrelas.