Cap.I
Faces sarcásticas, troncos ardendo em trêmulas labaredas, tudo rodava. O calor agora era uma entidade sólida que o abraçava por completo.
Parecia-lhe que os rostos queimavam e a floresta gargalhava. Ambos debochavam de sua situação. Lanças eram apontadas para si enquanto o resto dos caçadores, vindos das entranhas da selva, alcançavam o grupo.
Ralph buscava em cada um daqueles rostos algum velho traço de sanidade. Não inocência. Esta esperança estava morta. Já não eram crianças perdidas numa ilha, mas bichos em seu habitat natural.
Em cada par de olhos, só enxergou fúria, injustificável e insaciável. Já a sentira, uma vez... Recordava, com mais nitidez do que desejaria. Simon...
Uma fúria que aos poucos deu lugar a medo e respeito, à vista de alguém que se aproximava.
Roger, com seu sorriso azedo, adiantou-se.
- Ei, Chefe. Perdeu a cena. O coitado delirou.
De algum modo, Jack vinha do coração do incêndio. Sem pressa. Sem qualquer cautela aparente. Era provável que sua agilidade lhe permitisse andar e saltar por entre as chamas, desafiando-as a tocá-lo sequer.
Fez-se silêncio com sua chegada.
Ralph não sabia se se tratava de silêncio por respeito, ou pela expectativa das atrocidades que Jack lhes ordenaria cometer agora.
Seu medo já era pânico. Nem o calor escaldante unido ao fogaréu infernal impediu o arrepio gélido que lhe subiu pela espinha.
O comentário de Roger foi ignorado. O círculo em torno de Ralph abriu-se para o líder passar. Ele seguiu em frente sem desviar sequer os olhos de seu alvo. Passos ligeiros e inaudíveis. Cabelos desajeitadamente crescidos. Lança em mão. Olhar atento, ensandecido. Um autêntico predador da selva.
Postou-se em frente a Ralph. Este, mesmo caído ao chão, ousou encará-lo. Não abaixaria a cabeça para fitar os pés de Jack.
- Então decidiu se render para nós? Porque tão rápido? Me admira você, sempre disposto a lutar, mesmo sabendo que não há chances! Hein, Ralph?
O menino franziu a testa, mas foi Roger quem respondeu.
- Você não entende, chefe. Ele avistou a salvação!
O comentário arrancou risadas dos garotos e um triunfante sorriso do Chefe.
Engolindo o ódio, Ralph calou-se.
Jack apontou a lança para ele. Era agora. O brilho demente nos olhos azuis o desafiava a arriscar um único movimento.
- Levante-se. Virá conosco!
Uma exclamação muda fez-se no ar. Ninguém ousava contestar o Chefe. A curiosidade do grupo era óbvia.
A decepção de um deles era evidente.
- Como é isso, Chefe? Não íamos...
- Não. Tenho outros planos. Vamos, Ralph! Levanta daí!
Teria sido um choque para Ralph. Afinal, Jack não cedera à selvageria. Dispensara a chance de arrancar sangue. Jack o poupara.
Mas o rapaz já testemunhara as mais abomináveis atrocidades naquela ilha. Com certeza, seria exigido um preço por sua vida. E não seria barato. Naquele momento, Ralph não acharia vantajoso pagar preço algum para estar vivo, simplesmente.
- Acabe com isto de uma vez, como já fez antes, Jack. Não me importa.
'Como nós fizemos antes', completou para si. Engoliu em seco, na garganta um nó de inútil remorso.
- Ninguém pediu sua opinião aqui. Ande logo!
Dito isso, pressionou a ponta da lança contra o pescoço do garoto. Como este ainda resistisse, Jack perdeu sua pouca tolerância. Não era um rapaz de palavras ou negócios. Além disso, haviam de deixar logo aquele lugar. O incêndio se alastrava com rapidez assustadora, estava quente, quente feito o inferno.
Agarrou o braço de Ralph e o arrancou do chão. E o menino voltou a cair.
'Nem eu imaginava que estivesse tão fraco...quando foi que cheguei a este estado?', pensou.
Jack ajoelhou-se, emitindo um grunhido, agarrando seus braços e sacudindo-os violentamente.
- ANDA LOGO, ESTÁ BRINCANDO COMIGO?! PERCO A PACIÊNCIA E VOCÊ VAI SOFRER! – gritava, sem soltá-lo. Os dedos apertavam sua pele já esfolada por galhos. O olhar alucinado junto ao seu rosto causava semelhante pressão.
Levantou-se e o trouxe junto, mas Ralph cambaleou, suas pernas tremiam sem controle. Pior do que a fraqueza, era a expressão de absoluta inércia. Ralph não se movia. Estava enfurecendo o garoto ruivo.
Então, Jack o esbofeteou com força no rosto.
- Um de vocês aí traga o coitado. Nem andar sozinho ele pode.
Encarou Roger significativamente antes de completar.
- Não o machuquem...demais.
Girou sobre os tornozelos e em segundos havia desaparecido por entre troncos e trepadeiras. Deixou para trás seus atônitos subordinados, que se entreolhavam receosos.
Haviam caçado e perseguido Ralph continuamente por incontáveis horas. E agora, chegado o momento de pôr de fato as mãos em seu antigo líder, ninguém se manifestava.
As bárbaras pinturas nos rostos faziam impecavelmente o trabalho de ocultar suas dúvidas. Seu pânico. E principalmente, o respeito que no fundo ainda nutriam por Ralph.
Timidamente, os gêmeos surgiram dentre os meninos. Por trás da tintura que lhes cobria inteiramente o rosto, Ralph distinguiu seus traços assustados. Em silêncio, dispuseram-se a levantá-lo. Uma voz os deteve.
- Não precisam se incomodar – declarou o tom irrefutável de Roger – Voltem vocês dois. Deixem comigo, sim?
Era como se o tempo congelasse para Sameeric, não havia floresta em chamas, barulho de ondas contra as rochas, calor insuportável. Não havia Ralph caído à sua frente. Tudo parava, tudo sumia.
Apenas a voz, eles e o dono da voz. Apenas o terror.
A obediência foi instantânea. Ainda arriscaram uma olhadela para o menino esgotado, antes de correrem para juntar-se aos outros garotos da tribo.
Roger fixou-os em vicioso silêncio até que desaparecessem em meio à selva.
Ralph acompanhou o olhar, que lhe despertou vaga lembrança.
Você não conhece Roger. Ele é terrível. Eram as palavras dos gêmeos, que ele não soube bem como interpretar. Não quis.
Apertava montes de areia quente que lhe escorregavam por entre os dedos. Suas frustradas tentativas de se erguer causaram um resmungo de deboche no outro garoto.
Num gesto brusco, hábil, Roger estava à sua frente. Levantou-o pelos braços sem se incomodar em ser gentil. Ralph sufocou um gemido, trincando os dentes. De pé, irritado, semicerrou as pálpebras inchadas pelo cansaço. Encarou ofensivamente seu oponente.
- Não pense que vou carregá-lo. Ande.
E encostou a ponta afiada nas costas do garoto louro. Sua expressão não era de alguém que mataria. Havia uma sombra nos olhos negros que fez Ralph tremer de súbito calafrio.
Fechou os olhos e procurou o controle sobre seu corpo, sobre suas pernas. Precisava firmá-las sobre a areia fofa. Buscava equilíbrio. Os primeiros passos foram os mais difíceis. Os mais pesados. Seus pés feridos hesitavam. A lança pressionava sua carne queimada, sem furar. Espetando, apenas. Torturando. Frustrando.
O garoto louro gostaria apenas de abandonar-se ali mesmo, sobre folhas queimadas e galhos caídos. Que a inconsciência viesse levar embora seus sentidos, sua razão. Não dormir, simplesmente. Desmaiar, para evitar pesadelos inimagináveis e sonhos impossíveis.
Mente e corpo gritavam por um alívio, e ainda, Ralph forçava-se a um estado de alerta. Precisava ordenar seus pensamentos, por mais absurda que lhe parecesse esta idéia. Não houve, nunca haveria ordem alguma na ilha. Ou em seus habitantes. Nem mesmo quando Porquinho ainda vivia. Porquinho. Que há poucas horas, estivera vivo, ao seu lado.
Distanciavam-se agora da parte incendiada da ilha. Ali, a brisa vinda do mar, livre da quentura do fogo, soprava sobre sua face. O contato, ainda que suave, incomodou a pele esfolada. Ralph não sabia para onde, nem porque estava sendo levado. Presumia que fossem para o 'forte' que os selvagens habitavam...mas por qual motivo? Fariam dele um escravo? Torturar-no-iam até que implorasse pela morte sem um pingo de dignidade? Ou poupariam sua vida miserável a cada dia, torturando-o para sempre? Ter-se iam tornado cruéis a este nível?
Sim. Todos nos tornamos.
De repente, a lança arranhou fundo suas costas, da nuca à espinha. Ralph apertou os olhos, consciente do regozijo de Roger atrás de si. Sim, se dependesse deste garoto, estaria morto. Era provável que o martirizasse antes. Atormentá-lo-ia por diversão, então acabaria com ele de vez.
Jack. Por sua culpa, estava vivo. O que pretendia, afinal? O que queria dele? Não o odiava, por ter sempre representado a única ameaça ao seu poder? Não o queria ver morto, livrando assim a ilha de seus inimigos para sempre?
Por mais que possibilidades viessem e voltassem, era absolutamente impossível. Para alguém que só age por força dos instintos mais primários, não há previsão. Não há lógica.
Teria que fazer o que mais odiava e temia: esperar.
