Disclaimer: não são meus personagens, infelizmente
N/A: Segundo capítulo do que espero ser uma longa história, onde resolvi prolongar "O Senhor das Moscas" de tanto que amei o livro. E como para mim ficou óbvio o amor que há entre Jack e Ralph, logicamente não pude deixar isto de lado. Em outras palavras: SLASH, explícito no futuro. Não gosta, não concorda? Problema seu. Não obriguei ninguém a ler.
Capítulo II
Ralph estava certo. Aproximavam-se do Castelo de Pedra. Com passos forçados e vacilantes, ele seguia pela mata, Roger atrás de si, estranhamente quieto.
Um frustrante silêncio ocupava toda a ilha. Algo estava errado. Fora do lugar. Faltavam os pássaros. Provavelmente, afugentados pelo incêndio gigante, haviam voado para a ilha mais próxima. Em breve, Ralph esperou, voltariam. Quando passasse o perigo.
O garoto louro suspirou. Não havia mais decepção pela miragem desvanecida. Não esperava realmente ser salvo. Não achava que poderia voltar. Não após tudo o que vira. Após o que fizera. Não pensava nisso agora, porém.
Não pensava, absolutamente. Nem conseguiria. A mente de Ralph estava muito quieta. Como se a violenta torrente de emoções que o abalara havia pouco fosse se diluindo gradativamente. E culminou neste nada. Neste seu habitual bloqueio. Estava acostumado.
De onde estavam, já avistavam os selvagens que guardavam a entrada do 'forte de pedra'. Eram formas inquietas com borrões de argila no rosto e no tronco despido. Apenas de perto, distinguiam-se Robert e Maurice com suas lanças apoiadas no ombro.
Maurice declarou satisfeito.
- Já era tempo! O Chefe está impaciente... Já até mandou acender o fogo!
- Ah, claro... Nunca é bom fazer o Chefe esperar – Roger comentou em tom casual. Ralph não gostou do tom. Voltou-se para encará-lo, mas o garoto o pressionou para que seguisse em frente. Tinham de escalar a rocha, ainda. Seria trabalho árduo para Ralph, no estado em que se encontrava. Tentaria ser breve, ao máximo que pudesse. Algo lhe dizia que não deveria testar a paciência de Roger.
Em meio à subida íngreme, já se podia escutar a agitação lá em cima. Os caçadores pulavam e gritavam em torno de uma nova fogueira. Sua costumeira dança.
Começavam-na senhores de si mesmos, agachando e torcendo os corpos. Causava prazer. Seduzia-lhes os sentidos, todos de uma vez. Drogados pelo cheiro, pela consistência do sangue morno no rosto, dançavam. O ritmo acelerava-se. Os movimentos tornavam-se obcecados. Os olhos adquiriam um brilho doentio.
E logo, estavam sendo manipulados por aquele ritual maldito. Não só o corpo. A vontade. Ralph sabia como era isso. Não desejava saber de novo. Tampouco ver de novo.
Mas já chegavam ao topo do Castelo.
Ao fundo, algumas cabanas, todas vazias, cobertas por plantas. Aqui e ali, havia enormes rochas. E alguns troncos que os garotos haviam trazido lá de baixo, da floresta, para usar como lenha. E também com o propósito de empurrar as pedras Castelo abaixo, como haviam feito com Porquinho.
A certa distância dos abrigos, os selvagens moviam-se energicamente em torno do fogo. Não era uma fogueira muito grande. Um nauseante aroma rapidamente achou seu caminho pelas narinas de Ralph, que quase vomitou. Porco. Carne suína estava sendo assada, como de hábito, e alguns dos pequenos já devoravam pedaços meio crus, deliciando-se com o sangue quente que lhes escorria por entre os dentes, pela boca e mesmo pelo pescoço, quando mordiam.
Jack estava sentado num tronco maior, não muito afastado do grupo, mas fora do círculo da dança. A julgar por sua expressão predatória, já havia feito sua parte no ritual. Seu rosto sardento fitava Ralph com descarada ironia.
- Não quer um pedaço de carne, Ralph? Deve estar faminto!
Se a pergunta tivera intenção maldosa, era impossível saber. Mas Ralph recusava-se a respondê-la. Indignado com os acontecimentos, surpreendia-se com a trivialidade da pergunta.
- Responda ao Chefe – ordenou Roger. Jack o encarava com expectativa, e o resto dos selvagens observava a cena sem arriscar uma palavra.
Ralph revirou os olhos.
- Não quero nada. Expliquem logo o que querem – exigiu em seu tom calmo.
O líder não pareceu gostar da resposta.
- É melhor que coma. Vou fazer uma reunião depois e direi o que pretendo.
- Diga logo aqui mesmo.
Jack levantou-se.
- Esqueceu quem manda agora, Ralph? Só vou convocar minha assembléia quando quiser! E antes, você tem que comer a carne!
O garoto louro sentia todo o seu autocontrole se esvaindo.
- Eu não quero a carne que vocês caçaram!
Um cruel sorriso esboçou-se no rosto do Chefe.
- Mas já quis! Pensa que eu esqueci? Naquela noite você também foi um de nós, lembra-se?
Roger resmungou satisfeito.
Ralph encarou Jack como se pudesse assassiná-lo da pior maneira possível, e realmente o faria, se estivesse em condições. Não sabia por que, mas a verdade dita pela boca de Jack parecia duplamente inexorável.
Tão poderosa era a tensão no ar, que alguns pequenos haviam cessado a mastigação e observavam tudo com olhos arregalados. Sameeric estavam encolhidos num canto distanciado da fogueira, escutando com atenção.
Roger havia se afastado de Ralph. Aproximara-se da lenha, chutando as tripas do porco em seu caminho. Apanhara um pedaço já frio do bicho, que agora engolia com gosto. Era o único que aparentava tranqüilidade.
O líder teria sustentado o olhar acusativo de Ralph sobre si por muito mais tempo. Coragem não lhe faltava. Paciência sim. Suas últimas palavras carregavam uma tonalidade óbvia de ameaça.
- Posso forçá-lo a aceitar o porco, Ralph!
Um desafiador silêncio foi sua resposta. Num movimento assustadoramente preciso e veloz, lançou-se sobre o garoto. Ralph caiu sem chances, Jack sobre si, pressionando-o contra o chão duro, de rocha. Instintivamente resistiu, usando os braços para afastar o outro. Mas o garoto ruivo agarrou seus braços e os manteve presos contra o chão.
- Alguém aí! Tragam carne! – gritou.
Ralph lutava para recuperar o fôlego e controlar sua revolta. Lágrimas de frustração umedeciam suas pálpebras.
Seguiu-se um arrepio. Pelo corpo inteiro. Um calor no rosto, inexplicável. Inesperado. Ruborizou-se a face pálida. Estava intrigado. E mais irritado do que nunca.
- Sai de cima de mim, Merridew!
Jack visivelmente se divertia com a situação. Parecia adivinhar o quanto o garoto louro estava fraco. Os olhos inquietos faiscavam de triunfo puro e atravessavam os de Ralph, como se procurassem algo lá. Sentindo a respiração acelerada colada ao seu rosto, Ralph corou.
Um dos caçadores apressara-se em cumprir as ordens do líder e trazia um pedaço meio queimado de porco. Jack pegou e aproximou a carne do rosto de Ralph. O cheiro gorduroso e forte do animal provocou ânsias de vômito no garoto, mas também o deixou com água na boca. Esquecera-se do quanto estava faminto, privado de qualquer alimento havia horas e horas.
- Então, não vai aceitar, Ralph?
Jack lhe sorria ferozmente, e Ralph virou a cabeça para o lado. Evitava encará-lo. Mal podia se mexer com o peso do corpo em cima do seu. Sem hesitar, o ruivo forçou o pedaço contra a boca do garoto, sem gentileza, sem tolerância.
Ralph resistiu. Sua fome o tentava. O líder puxou seu rosto pelo queixo, para que o encarasse.
- Vamos, mastigue – mandou.
E nada mais foi necessário. Nenhum incentivo. Mordeu a carne e a mastigou com voracidade, enquanto Jack o observava. A humilhação, momentaneamente posta de lado, subordinara-se ao instinto.
Pondo-se de pé, o Chefe anunciou a reunião. Imediatamente, todos os selvagens largaram o que faziam e aglomeraram-se em volta do líder, aguardando obedientemente suas palavras.
Ralph ainda assustava-se com a estranha autoridade que Jack Merridew exercia, sempre exercera sobre todos. Jogado no chão com as mãos engorduradas de carne, lutando contra o peso do sono, também ele esperou para saber o que seria feito consigo.
- Ouçam todos! Capturamos nosso último inimigo! Ninguém mais se opõe a nós!
Houve forte vibração e gritos de vitória e contentamento.
- Querem saber por que não o matei, não é isso?
Fez-se um silêncio confirmatório, e até mesmo Roger demonstrou interesse, inclinando-se para frente em seu tronco.
O Chefe semicerrou as pálpebras e fitou sua vítima. Assim ficou por um tempo, uma eternidade para Ralph. Não era o habitual olhar predatório que todos já conheciam bem. Era decidido, e...frustrado? Que frustração poderia abater Jack Merridew, o líder, cujos planos corriam em magnífica perfeição?
- Vamos torná-lo um de nós.
O choque pairou no ar acima deles assim como as densas nuvens, vindas do calor excessivo.
Ralph sentiu-se tremer por inteiro e um pavor inominável dominou todas as células de seu corpo, enquanto tomava consciência do que acabara de ouvir. Em um remoto canto de suas memórias, viu um rosto que lhe sorria. Era um rosto humano. Ria para ele. Ele também ria para o rosto. O rosto sardento. E gentil. Ambos se divertiam. Exploravam a ilha juntos. Aquela mesma parte da ilha...
Aquela mesma parte onde estava agora. Em frente ao mesmo rosto. Talvez humano. Não se sabia, não se via. Só sangue. Argila. As sardas se faziam tão incertas quanto a gentileza. Não tão improváveis quanto a mesma.
- Sim, é o que ouviram. Ele será feito mais um selvagem!
