Seu terceiro sorvete na sorveteria, nem sentia mais os lábios - que deviam estar num tom nada sutil de roxo - , e nem por isso estava querendo parar de tomar aquele sorvete... queria se intoxicar de sorvete, dos sabores, odores, de tudo enfim que o Beco Diagonal podia proporcionar a uma bruxinha de 11 anos.

Ela merecia isso, seu último ano tinha sido uma romaria entre médicos, apenas seriedade e comedimento... palavras ponderadas e profundas, terapias e estudos, tratamentos e decepções... estava enterrando todo seu desgosto nesse terceiro sorvete, ele merecia morrer definitivamente naquela montanha gelada de alegria. Sentia seu avô ao seu lado disfarçadamente olhando o movimento, fazendo questão de não ficar olhando diretamente para ela, mas ela sabia internamente que o seu querido avô não via nada, nem ouvia o que não fosse um som produzido por ela.

- Vovô ?

- Sim ?

- Me dá mais um sorvete ?

Suspiro...

- Não saia daí.

- Tá.

Gerard foi até o balcão sem desviar uma única vez os olhos da neta, tão sorridente e feliz, olhos fechados sentindo o sol bater em sua face e aquecer seu rosto... tão jovem e tão linda, era o retrato vivo de sua mãe, a não ser pelos cabelos... Mas algo - além do gênio - ela tinha que puxar do pai, maldito seja ele onde estiver !

Voltou rapidamente à mesa onde estavam, depositou o sorvete em frente à neta - não imaginava como ela aguentava tanto sorvete, seus lábios estavam roxos, até parecia tremer de frio... mas estava lá, devorando o sorvete como se toda sua vida dependesse disso. Ella era tenaz, como sua mãe, mas algo lhe dizia que aquela teimosia em fazer as coisas até o fim - independentemente das condições que se apresentassem não era propriamente de sua filha tão amada... Eles tinham errado. Ella precisava do mundo, mesmo sendo como era. E precisava do pai, estivesse ele onde estivesse... Teria de resolver isso, e rápido.

Ella não era uma menina de desistir, mas aquele quarto sorvete foi impossível de tomar... então, virou-se para o avô, tão "concentrado" no movimento das ruas do Beco e falou, meio baixinho e com a voz meio funda (o gelo já estava fazendo efeito, era quase certeza uma maravilhosa dor de garganta chegando) : vovô ?

Perdido em pensamentos sobre o pai de Ella, Gerard quase pulou da cadeira ao ouví-la falar, e perguntou ansioso, sem se aperceber disso :

- O que foi, querida ?

- Vamos buscar o restante do material ?

Após o suspiro profundo do seu avô, Ella esperou... sabia que era AGORA que ele iria abrir de verdade seu coração.

E esperou... e esperou. Ouvia claramente sua respiração a seu lado, e um pouco apreensiva esticou a mão, para tocar a mão dele. Fria. Coração Fervente, boca fechada e mãos frias, esse era Gerard McDuff. Ele não ia falar, nem agora, nem depois... talvez um dia. Talvez.

- Vamos. Não solte minha mão.

- Não soltarei. Nunca.

.........

- Bom dia, Olivaras !

- Gerard McDuff, que alegria ! Não nos vemos há muito tempo !

- Sim, meu caro amigo, muito tempo... Esta é Ella, minha neta. Ela vai este ano para Hogwarts - disse Gerard numa voz dura, num misto de desenvoltura e brusquidão de quem não admitia réplicas.

- Hummm... então ESSA é Ella... você cresceu, querida, está mais linda a cada dia que passa !

Mesmo se tivesse visto seu rosto Ella teria sorrido : o tom da voz de Olivaras, falsamente jovial, não deixava dúvidas sobre o que ele aparentemente considerava uma mentira inocente. Mas Ella já tinha prática demais para se deixar apanhar. Mas iria prosseguir na brincadeirinha do "politicamente correto", para ver no que ia dar isso.

- Obrigada, Senhor Olivaras ! disse Ella em sua voz mais delicada e gentil - voz essa que fez seu avô gelar : ele conhecia sua netinha, e sua língua... mas agora era esperar e rezar para que ela não exagerasse. - Podemos escolher minha varinha ? Estou mais que ansiosa, como pode VER - disse Ella, enfatizando a palavra que sabia que deixaria o "bom" senhor Olivaras sem graça nenhuma... não gostava de gente falsa. Ela não era linda, e sabia disso : nunca fora antes, com aquele cabelo preto como ébano, tão diferente de toda sua família de sílfides louras.. agora era menos ainda.

Muito constrangido e silencioso, o Senhor Olivaras começou a procurar uma varinha para Ella : de sua idéia inicial - cabelo de veela, como de sua mãe - ele estava se perguntando se não era melhor tentar logo uma de corda de coração de dragão.

- Ella pegou sua primeira varinha, e nada sentiu ou ouviu. Ficou atenta e Olivaras apenas disse : é, eu desconfiava disso. Você terá uma varinha muito diferente da de sua mãe, pelo visto - e foi buscar a varinha de dragão - que também não funcionou (menos mal, pensou Olivaras, não é de Drumstrang o pai dela, pelo visto...). E pegou uma de pena de hipogrifo. E outra de pelo de centauro. E de unicórnio. E de seminviso. E de fenix. E de grifo. E de nundu.

- Finalmente !

- Qual foi ela, Olivaras ?

- Freixo e...Esfinge - disse Olivaras meio soturnamente.

Suspiro Cansado.

Desesperança.

Sem surpresas. Nada havia mudado.

- Ah. Quanto é ?

- 7 galeões.

Ella percebeu as mãos tremendo do avô ao contar o dinheiro para pagar Olivaras, mas calou-se. Só precisava estudar um pouco para saber o porquê de seu avô não ter gostado da varinha que a escolheu.

Era SUA varinha, e ninguém tinha nada que ver com isso.

- Obrigada, Senhor Olivaras,por me dar a MINHA varinha !

- Cuide bem dela, querida, se ela te escolheu, teve um excelente motivo. Creia.