Blurry Arc – Fic II
Avisos:- um pouco de angst, um pouco de linguagem , shonen-ai, Heero POV neste daqui
Casais:-2+1
Spoilers:- Coisa muito pouca relacionada ao "Episode 0" do Heero.
Disclaimer:- Ontem, Duo e Heero vieram me fazer uma visita. Eles estavam fantasiados de Papai Noel e me trouxeram um envelope onde dizia que eu havia adquirido os direitos autorais sobre eles e todos os outros G-Boys. Mas daí eu falei que não era natal. E eles foram embora e me deixaram sem o presente...então...sim, por mais que eu queira, eu não sou dona dos Garotos Gundam e nem nada relacionado sobre a série. Isso aqui é um trabalho de ficção sem fins lucrativos (infelizmente T_T)
Quanto ao arco como um todo:- O 'Blurry Arc' na verdade é um arco de
fics composto de pelo menos 8, sendo que esse numero ainda pode crescer. Cada
fic tem começo e fim, mas devem ser lidos um atrás do outro para formar um todo
maior. Na verdade é como uma única fic muti-parte, sem um gancho de
continuidade muito forte entre uma e outra. Cada fic é baseado em uma parte da
letra da musica "Blurry" do grupo "Puddle of Mud" e, é claro que se você ouvir
a musica enquanto lê o fic, o clima fica completo ^_~
Quanto ao Fic II :- Mais um passo, e eu gostaria de pensar que é
um passo consideravelmente largo, na direção do yaoi de verdade. E, a
propósito, o poema do final do fic é de autoria de Marina Colasanti, e eu também não
tenho os direitos dele, só para ficar bem claro.
Agradecimentos a Dee, por ser uma beta incrível, uma reviewner melhor ainda, e uma amiga com qualidades acima dessas duas coisas.
"And Everybody is
empty
And everything is so messed up..."
Ser um soldado lhe ensina coisas que você pode levar para a sua vida toda, por mais curta que seja a duração dela, como provavelmente será. Uma das coisas que jamais esquecemos, é uma distinta lista de coisas, na qual podemos e não podemos confiar. Pode-se confiar que a chuva artificial de uma colônia caia em tempos e períodos pré-determinados enquanto seu gerador permanecer intacto. Pode-se confiar em um girassol para seguir o curso do sol, enquanto tiver forças para fazê-lo. Pode-se confiar na força da gravidade, para puxar tudo em direção ao centro da Terra, impiedosamente, seja o que for.
Uma coisa na qual eu aprendi a não confiar, são as palavras.
Não importa se elas são escritas ou pronunciadas. Palavras são como coisas com seu próprio senso, ou talvez dispositivos internos semelhantes aos de Móbille Dolls, que lhes dão uma mobilidade única. Com a diferença de que um Móbille Doll é outra dessas coisas na qual você pode confiar que sempre terá controle sobre.
Eu nunca confiei em palavras. Elas escapam de suas prisões quando menos esperadas ou desejadas. E, dessa maneira, acaba tornando-se um pouco mais clara a razão pela qual cerca de oitenta por cento dos soldados rasos de qualquer tipo de fundação, ou facção, são analfabetos. Saber manejar uma única arma é o suficiente.
Por que palavras são armas. Assim como a ausência delas.
Silêncio é como uma faca afiada, também com efeitos diferentes em pessoas diferentes. Digamos que essa faca atinge seu alvo com maior ou menor grau de eficiência, dependendo unicamente de quem é a vítima.
Eu nunca tive qualquer intenção de "ferir" os demais pilotos que, de certa forma, trabalham comigo. Mas eles, também em graus diferentes, são atingidos de formas variadas por essa arma que carrego comigo na maior parte do tempo.
Wufei, não parece ser realmente atingido por minhas ações. E nem por nada. Sejam palavras, seja o silêncio. Eu só posso permanecer em muda admiração ao total senso de controle que ele possui. Já pensei em mais de uma ocasião que, caso o Doutor J soubesse exatamente o tipo de características que o piloto do Gundam Shenlong possui, talvez me descartasse como soldado, e acolhesse Wufei como o próximo Heero Yuy, salvador do povo das Colônias Espaciais.
Por outro lado, não existe a garantia de que Wufei aceitaria fazer qualquer tipo de associação com J. Mais uma das características que são tão únicas dele.
Quatre, em um modo muito diferente ao de Wufei, não parece ser atingido pelo meu silêncio. Pelo menos não da maneira que se esperaria. Na verdade, Quatre parece ficar apenas...defensivo, e, ao mesmo tempo, manter uma posição de aparente compreensão. Como se observasse o meu silêncio, esperando que algo saia dele. Acredito que não poderia esperar nada em um nível menor do que isso partindo de um piloto que tem a aparência frágil, mas que controla uma máquina com nervos de aço.
Talvez Trowa seja, dentre todos os pilotos Gundam, o que melhor entende realmente a maneira, e eu me atreveria até a dizer que ele entende a verdadeira razão, pela qual eu recorro ao silêncio. Ele se utiliza do mesmo artifício. Trowa e eu temos um tratado mudo de aceitação e respeito. Nossos silêncios são carregados de olhares significativos dos quais ninguém mais consegue compartilhar.
Quanto a Duo...por mais que o fato seja um golpe, forte, na minha própria teoria da estabilidade, eu não consigo lê-lo. Não consigo reconhecer qual é a reação que meu silêncio tem nele. Afinal, são tantas reações, que presumo que qualquer ser que não estivesse na condição de soldado treinado, e desconfiado, já teria desistido a muito tempo de acompanhar todas as variáveis de humor e respostas que podem partir de uma única pessoa.
Por vezes, ele parece irritar-se profundamente com a minha falta de palavras. Ele pode ficar por horas murmurando descontroladamente sobre não ter poderes de adivinhação, os riscos de ser anti-social, e como pessoas podem ficar realmente mudas se não fizerem uso da habilidade da fala. Provavelmente ele pensa que eu não ouço a uma palavra sequer, do contrário, já teria parado com os discursos, por que sei que tenho pelo menos um deles decorado.
Por outras vezes, ele simplesmente...sorri. É um sorriso que eu não posso classificar como nada além de enigmático, por que por mais que eu percorra todas as memórias de treinamentos e convivência dentro de meu cérebro, eu não consigo recordar de uma emoção sequer capaz de fazer alguém exibir aquele tipo de expressão.
E apesar de enigmáticos, esses mesmos sorrisos passam a impressão clara de que ele nunca, jamais, foi atingido por meu silêncio. E apesar de esse tipo de reação já ser esperado de um piloto Gundam, alguém com capacidades acima das normais, é incômodo.
É tão incomodo que eu prefiro ignorar. Mais um mecanismo de defesa, dentre tantos.
A ausência de palavras, de dor, de reações, de emoções, são apenas artifícios necessários. Estão todos lá, muito bem guardados por detrás da máscara de Soldado Perfeito, esperando pela primeira falha para surgirem e trazerem possíveis falhas como conseqüência direta.
Tolos são aqueles que pensam que eu realmente sou uma máquina. Os doutores nunca cometeriam um erro tão cretino quanto esse. Até Treize Kushrenada sabe que máquinas não são, e nem nunca serão, tão fortes quanto humanos. Afinal, a força dos humanos vem de todas essas coisas que eu, atualmente, preciso fingir não possuir.
Suponho ainda que, depois do meu longo raciocínio sobre o quanto as palavras se assemelham a objetos que carregam um grande perigo consigo, que eu não deveria estar escrevendo tudo isso, em algumas folhas de meu fichário, durante uma desinteressante, e não posso deixar de acrescentar, extremamente desatualizada, aula de física.
Eu deveria rasgar as folhas imediatamente. Picá-las em pedaços humanamente impossíveis de serem reconstituídos. Mas eu me encontro, ao toque do sinal que anuncia o termino da sétima aula, a ultima do dia em mais essa escola na qual eu, Duo e Quatre nos infiltramos, guardando as folhas, com algum cuidado, na última divisória de meu fichário de anotações.
Posso me livrar delas mais tarde.
***
Ter escolas como esconderijos
constantes tem alguns efeitos colaterais...estranhos.
Eu suponho que seja por um certo costume adquirido nos diversos anos de treinamento, que meu cérebro insista em trabalhar vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, na tarefa árdua de assimilar tudo aquilo que se passa nos arredores. Diferenciar mentalmente informação útil e inútil é uma outra tarefa semelhante.
O fator "estranheza" entra a partir do momento em que me encontro selecionando informações que normalmente classificaria como inúteis ou descartáveis, como coisas que são...interessantes.
Tudo começou por causa de Duo. Eu não gosto de admitir, nem para mim mesmo, mas o comportamento dele tem um efeito que ultrapassa os limites do simples incômodo. Com o incômodo, eu posso lidar. Eu posso lidar com a dor de colocar ossos quebrados no lugar com minhas próprias mãos. Incômodo, não é nada.
O comportamento dele, por outro lado, era algo que eu percebi que não podia deixar passar tão facilmente. Afinal, se ele era o tipo de pessoa que possuía algum tipo de imunidade com relação a um de meus mecanismos de defesa, melhor seria que eu aprendesse através de um aliado qual era a minha falha, antes que a notícia caísse nas mãos do inimigo.
Na verdade o fato que deu o empurrão inicial, foi a minha realização de que ele estava tentando esconder algo da minha atenção. Algo como uma chuva de penas dentro do quarto que dividíamos. Uma chuva que deve ter sido forte o suficiente para lançar a evidência que me guiou a essa conclusão, dentro do meu laptop. Três penas.
Inicialmente eu descartei o material coletado por pensar se tratar apenas de uma das brincadeiras dele. Irresponsável, mas irrelevante. Mas, por puro senso de preservação de disfarce, já que, uma vez dentro da escola não podíamos chamar atenção demasiada, eu resolvi checar com Duo. A resposta que recebi dele, foi o que me fez decidir investigar a fundo o que estava acontecendo.
Eu não podia deixar que ele colocasse a missão em risco.
Para minha total surpresa, nada que já tenha sido implantado em mim naturalmente ou através de treinamento me preparou para o que eu descobri seguindo Duo no dia seguinte ao episódio do travesseiro.
Eu descobri que igrejas têm algum tipo de efeito sobre ele, que eu não pude identificar como positivo ou negativo. Descobri que ele lida com crianças com a mesma habilidade que lida com um Móbile Suit, se não melhor. Descobri que ele tem um sorriso, que eu jamais pensei que fosse ver em vida, tão real, que chega a ser doloroso. Talvez por isso ele jamais tenha dividido um desses com um de nós, pilotos. Descobri que ele fala sozinho, mas com uma convicção tão forte de que alguém realmente esteja ouvindo, que eu me encontrei olhando para cima, em busca do estranho com quem ele parecia conversar.
Descobri que ele tem um instinto forte o suficiente para perceber a minha presença. Mesmo que tardiamente.
Algumas dessas descobertas, senão todas, fizeram com que eu tomasse atitudes que, no momento em que ocorreram, por mais que meu cérebro não fosse capaz de me prover uma explicação imediata para o que meus braços faziam, ao mesmo tempo me pareciam completamente lógicas.
Eu sentia como se fosse o correto a ser feito. E sentia com intensidade o suficiente para levar a ação adiante. Com força o suficiente para driblar a máscara.
E foi momentos depois dessa seqüência de acontecimentos, que eu conclui que Duo não falava sozinho na igreja enquanto eu o espionava. Alguém realmente estava ouvindo. E talvez esse mesmo alguém estivesse me guiando, enquanto por instantes de terror puro eu não sabia, com a exatidão e frieza que apenas um plano de missão calculado pode prover, o que estava fazendo.
Eu ouvi. Eu me guiei. Eu decidi o que era correto. Pro inferno com a missão.
Essa realização foi assustadora, mas o suspiro aliviado e o agradecimento de Duo, que ouvi através do canal de comunicação entre os Gundams, que eu suponho que ele tenha deixado aberto por pura distração, me tiraram de um transe de preocupação desnecessária, e me trouxeram à realidade de que, meus sentimentos são, e nunca deixaram de ser, uma arma tão poderosa quanto a aparente ausência deles.
Eu jamais deveria ter deixado de confiar neles.
Jamais deveria ter esquecido as palavras de Odin Lowell.
Seguir minhas emoções.
Eu tentaria fazer isso mais daquele momento em diante. Para o bem da missão. Para o meu bem.
E foi esse instante que me colocou no caminho da sucessão de fatos, que resultaram no estado no qual me encontro agora: com uma ficha mental cada vez maior de coisas que acredito serem "interessantes", apesar destas em nada se relacionarem com a missão.
E as escolas são ambientes infestados destas informações que eu agora caço com um certo apetite.
Dificilmente aquilo que realmente pode ser classificado como um pedaço de informação digno de arquivamento mental pode ser adquiro dentro das salas de aula. Especialmente durante aulas.
Pensava-se que depois de alcançar tanta tecnologia e poder de destruição, o homem poderia também utilizar-se de um sistema mais eficiente de aprendizado.
De qualquer forma, foi com algum choque que percebi que as palavras, essas que eu me acostumei a tratar como inimigas, acabaram se tornando algo como um objeto de admiração. Literatura, a arte de colocar as palavras juntas de maneira que venham a formar incontáveis histórias tão reais, ou tão irreais, mas igualmente belas em sua forma, é a culpada por esse meu comportamento.
Desde a nossa chegada nessa escola, há três dias, eu me vejo fascinado com a possibilidade da existência de uma biblioteca nesse edifício. Eu nunca a visitei, não faço idéia da quantidade de livros que lá existem, mas não posso deixar de vislumbrar as possibilidades.
Matemática, Física, Química, e as demais matérias exatas, nada disso me interessa. Números não têm liberdade para resultarem no que bem entenderem. E eu já tenho possuo tudo o que poderia ser relevante ou discutido sobre esses assuntos, também em arquivo mental.
E talvez por isso eu esteja novamente, dessa vez durante uma aula de Trigonometria, escrevendo tudo o que me vem à cabeça em folhas soltas.
Essas folhas também vão para um arquivo. O fim do fichário.
Preciso me lembrar de jogá-las fora.
Com isso, e com o som já levemente familiar do sinal que indica o término de mais uma aula, eu tomo a resolução de me dirigir para a biblioteca. Não faço idéia do que vou procurar no local, mas acredito que pode ser uma oportunidade de fazer também um trabalho de reconhecimento.
Chegando ao local, o ambiente escuro e quieto me envolve, e um sentimento de conforto imediato toma conta de mim. Eu me sinto bem como já não me sinto a muito tempo. Chega a ser uma sensação estranha. Como um sapato que apesar de ser do seu numero, já não é colocado no pé a muito tempo.
Eu ando entre as prateleiras analisando os títulos, em busca de algo que chame a minha atenção ou que atice o meu interesse, e acabo pegando um livro fino, de capa amarela. É um livro de crônicas, e, depois de notar que eu jamais havia lido uma crônica na vida, decido que é uma boa idéia pegar o livro.
Retorno para o quarto que venho dividindo com Duo desde o começo da nossa estadia, e ao entrar e notar que o cômodo esta vazio, coloco meu fichário sobre a pequena escrivaninha, e me sento na cadeira que acompanha o móvel, para fazer uma análise mais profunda da minha escolha.
Mas antes que eu possa sequer abrir o livro, Duo entra no quarto fazendo com que, em um reflexo, eu coloque o livro dentro do fichário, e guarde ambos dentro de uma gaveta. Antes que ele possa fazer algum tipo de indagação sobre o meu comportamento, eu tomo refúgio no banheiro, saindo de dentro dele com um olhar que não deixa qualquer espaço para discussão.
Olhar que é
totalmente inutilizado pelo simples fato de que ele já esta deitado. E a tomar
pelo ritmo de sua respiração, provavelmente adormecido.
Eu respiro aliviado sem razão aparente, e recupero o livro.
E preciso admitir que, para um livro com uma capa amarela lisa aparentemente inofensiva, o conteúdo é surpreendente.
Surpreendente o suficiente para me manter acordado a noite praticamente inteira, em leitura.
Praticamente, significa que fui acordado, segundo a conta exata de meu relógio interno, cerca de quarenta e cinco minutos após ter adormecido, por insistentes chacoalhões.
'Heero, você está bem?', indagava a voz.
'Claro', eu respondi em puro reflexo, ao mesmo tempo em que reconhecia o tom de voz como sendo de meu companheiro de quarto e de missão.
'Hey Heero, você passou a noite toda acordado?'
'Não.' Em nenhum momento passou pela minha mente revelar qualquer informação sobre meus novos interesses para qualquer um. Apesar do tom óbvio de curiosidade implícito na pergunta.
'Hm', Duo falou, e a falta de palavras adicionais a essa primeira exclamação, me deixou confuso como não ficava a algum tempo. O que ele quis dizer com isso? Decidindo que era melhor não dar razão para mais questionamentos, me dirigi para o banheiro. Eu pretendia tomar um banho, uma vez que mesmo sem olhar para o relógio de cabeceira do quarto, eu podia afirmar com convicção que não chegaria jamais a tempo para a primeira aula do período.
Enquanto abria a torneira do chuveiro, e aguardava a água ficar na temperatura ideal, eu ouvi a movimentação de Duo pelo quarto, e o som da porta abrindo e fechando.
Entrei embaixo do spray e alguns momentos depois, ouvi novamente o som familiar da porta abrindo, para segundos depois ser fechada novamente. Duo provavelmente esqueceu alguma coisa.
Saí do banheiro para encontrar um copo fechado de café, que eu identifiquei como um dos que são vendidos na cantina dessa escola, ao lado do meu material sobre a escrivaninha.
Sem pensar muito sobre o ocorrido, peguei o café e o material, e me dirigi a minha segunda aula.
***
Alguns dias depois eu concluí a primeira parte da missão junto com Quatre. Nós três tomamos turnos invadindo a rede interna da escola, recolhendo informações sobre os estudantes, o que incluía algumas crianças com pais que tinham ligações muito além das suspeitas junto a oficiais da Oz.
A segunda parte da missão consistia em partirmos, naquela mesma noite, um Gundam após o outro, abandonando a escola.
Depois de decidir e planejar com Quatre que ele seria o primeiro a partir, seguido diretamente por mim, e Duo logo atrás, eu deixei o quarto dele em direção ao meu.
Encontrei o quarto vazio. E resolvi então, aproveitando o pouco tempo que ainda teria dentro dessa escola, ir até a biblioteca e copiar um dos poemas do livro, para as folhas que agora eu tinha planos de levar junto comigo.
Mas não encontrei meu fichário.
Entrei em puro modo de sobrevivência. Se as anotações que eu havia feito naquele fichário caíssem nas mãos...em qualquer mãos, seria altamente prejudicial para a missão. Seria uma verdadeira...arma. E uma extremamente perigosa.
A possibilidade cada vez mais nítida de um re-treinamento baixou a temperatura do meu sangue a zero.
Eu peguei minha arma, e, no exato momento em que eu a colocava em minha calça a porta do quarto se abriu.
Em segundos eu tinha o clipe de proteção desativado e arma em mãos, ao mesmo tempo em que um corpo adornava o chão do quarto, em cima de um monte de papéis que eu reconheci prontamente como sendo as folhas de meu fichário.
'Heero, seu imbecil. Qual é o seu problema?', Duo exclamou, levantando apenas a cabeça do chão.
Eu o levantei do chão pelo colarinho.
'O que você está pensando?', minha voz me pareceu mais fria que meu sangue apenas alguns momentos atrás.
'Eu estou pensando qual é o seu maldito problema! Tire as mãos de mim!', ele respondeu, levantando o tom de voz, e se soltando num movimento reflexivo.
Não me dei ao trabalho de responder. Apenas recolhi as folhas do chão, e juntei todas. Abri uma das gavetas da escrivaninha de onde tirei uma caixa de fósforos e, sem cerimônias, ateei fogo a todas as páginas. Jogando uma a uma nas chamas, não satisfeito até que cada uma delas queimasse por completo.
Duo assistia com um olhar de completa estupefação.
Ele só saiu do estado de surpresa no qual se encontrava, acordado por uma batida seca na porta do quarto. Sem que eu tivesse total consciência do que estava fazendo, eu peguei minha arma, com intenções de atirar, pela segunda vez em questão de minutos.
Duo atendeu com cuidado, e abriu a porta amplamente num gesto exagerado para revelar Quatre.
'Duo, eu vim para lhe passar os últimos detalhes da missão e...qual o problema?'
Ao ver minha arma, Quatre imediatamente mudou sua postura.
Duo deu um suspiro, e, antes que ambos pudessem me bombardear com questões sobre o pequeno "incêndio", eu deixei o quarto sem dizer uma palavra sequer.
Dirigi-me inconscientemente para a biblioteca. Entrando no edifício apenas após arrombar a porta sem nenhum tipo de alarde, já que eles já haviam fechado o prédio fazia algumas horas.
Meus pés me levaram a prateleira aonde eu havia encontrado o livro de capa lisa e amarela. Recuperei o livro, e com uma habilidade semelhante a de alguém que fosse o próprio dono do livro, achei a página com a crônica que mais havia me chamado atenção. Uma crônica que eu pensei que poderia muito bem ter sido escrita diretamente para mim.
Li e reli a crônica dezenas de vezes.
E só então voltei para o meu quarto. Pronto para partir em cerca de uma hora com Wing, diretamente para uma das propriedades de Quatre, onde encontraríamos Trowa e Wufei, para discutir as informações que havíamos conseguido nessa escola.
Encontrei também pela segunda vez em um único dia, o quarto vazio. Nem sinal de meu companheiro.
Tendo a certeza de que ele seria responsável o suficiente para levar a missão adiante sem falhas, me preparei para minha própria partida.
Quarenta minutos após a minha chegada no ponto de encontro, eu me encontrava ao lado de Quatre, revisando ponto por ponto da missão em minha mente, e me perguntando o que poderia ter dado errado em uma simples evacuação.
E então Duo pousou com o Deathscythe.
Eu não deixei que ele chegasse ao chão, pegando ele pelo colarinho, nesse dia com ações que pareciam apenas repetir-se uma atrás da outra, antes que ele soltasse do cabo que o levava da cabine de seu Gundam ao chão.
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele pegou um pequeno livro preto que carregava nas mãos e simplesmente bateu o objeto contra meu peito, ao mesmo tempo que os pés dele batiam no chão, liberados devido a minha surpresa momentânea.
'É pra você', ele falou, enquanto simplesmente andava em direção a casa, seguindo Quatre.
'O que é isso?'. O que significava tudo isso seria uma pergunta mais apropriada.
Ele parou por um momento sua caminhada, e virou-se na minha direção, olhar cheio de algo que eu pude reconhecer como uma mistura de sarcasmo e raiva. 'Heero, eu pensei que um cara que pode pilotar um Gundam fosse mais esperto do que isso. É um caderno. Um diário. Chame como quiser.'
'E para que você esta me dando isso?'. Eu realmente não entendia o que tudo isso significava.
'Você obviamente precisa de um lugar para escrever, que você não vá queimar depois'. Com isso, ele virou-se e continuou andando, e antes de entrar na casa, mas sem nunca se virar para minha direção, ele levantou uma de suas mãos e terminou, 'As folhas estão bem presas aí. Nada vai se espalhar caso ele caia no chão.' E fechou a porta atrás de si.
Eu abri o caderno, confuso sobre o que fazer com ele. E encontrei algo escrito, na primeira pagina, em uma letra firme e levemente inclinada, que eu reconheci como sendo pertencente a Duo.
"Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia."
"A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão."
"A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e a dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz."
"A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber. Vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente se senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado."
"A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma."
Era a crônica. A crônica que eu havia lido dezenas de vezes, apenas horas antes na biblioteca da agora abandonada escola.
Como Duo soube da biblioteca? Como ele soube do livro de capa lisa e amarela? Como soube da crônica? Daquela crônica?
Da mesma forma que, naquele momento, eu não tive conhecimento da resposta para nenhuma dessas perguntas , ele não teve conhecimento do pequeno, mas genuíno e raro sorriso que escapou da máscara do soldado perfeito, no momento em que reconheci as palavras escritas naquele caderno.
Palavras que pareciam tão minhas.
Mas que como aquele sorriso, e aquelas respostas, ficariam como mais um segredo mudo entre mim e Duo.
***
Fim do Fic II
