Blurry Arc – Fic IX
Avisos:- mais angst, um pouco de linguagem , yaoi, Duo POV neste daqui
Casais:-12
Spoilers:- fatos específicos sobre o passado do Duo, incluindo o Episode Zero.
Disclaimer:- Ontem, Wufei foi no meu quarto exterminar uma barata que vivia embaixo da cama. Ele cortou o inseto em vários pedaços com um único golpe de sua katana. O único problema é que ele também cortou a cama...e os direitos autorais que estavam guardados dentro do travesseiro...TT por isso, por mais que eu queira, eu ainda não sou dona dos Garotos Gundam e nem nada relacionado sobre a série. Isso aqui é um trabalho de ficção sem fins lucrativos (infelizmente TT)
Quanto ao arco como um todo:- O 'Blurry Arc' na verdade é um arco de fics composto de pelo menos 8, sendo que esse numero ainda pode crescer. Cada fic tem começo e fim, mas devem ser lidos um atrás do outro para formar um todo maior. Na verdade é como uma única fic multi-parte, sem um gancho de continuidade muito forte entre uma e outra. Cada fic é baseado em uma parte da letra da musica "Blurry" do grupo "Puddle of Mud" e, é claro que se você ouvir a musica enquanto lê o fic, o clima fica completo
Quanto ao Fic IX :- Nesse daqui os nossos meninos tem de enfrentar mais alguns problemas de ordem psicológica. Eu sei que talvez alguns de vocês estejam com nós no estômago por conta da quantidade de problemas que eu faço aparecer no caminho deles, certo? Mas não se preocupem. Falta muito pouco para a finalização da primeira parte desse arc. A segunda fase promete ser mais feliz, ou talvez, com conflitos de outras ordens...veremos sim?
"Can you take it all away?
Can you take it all away?"
"Você pode levar tudo para longe?
Você pode levar tudo para longe?"
Acordei alertado pelo fino e suave fio de luz clara e praticamente sem cor que entrava pela pequena fresta da janela de meu quarto. A primeira fagulha de luminosidade da manhã, que surge em sua pálida timidez mesmo em dias chuvosos, e atua eficientemente como meu despertador.
Ao contrário da crença popular, sou uma pessoa que acorda cedo. Não tão cedo quanto Heero, mas como nenhum dos outros pilotos parece ter essa capacidade, e eu me atreveria a dizer que - assim como eu - eles também não possuem a disposição para acordar tão cedo, deixamos que Heero faça seu próprio horário e aproveitamos nossas duas horas extras de sono confortavelmente deitados em nossas respectivas camas.
A estranha clareza que toma o cômodo me alerta para o clima do dia. A luz que invade meu cômodo não tem o brilho quente e quase avermelhado comum das manhãs de verão, e também não possui o brilho amarelado do sol fraco dos dias de inverno. Hoje o dia está nublado, céu coberto por nuvens de uma maneira tão uniforme que tornam complicada a tarefa de encontrar os minúsculos pedaços de céu azul que se atrevem a aparecer detrás dessas.
Eu não preciso sequer olhar para o lado de fora de meu quarto para descobrir isso, mas mesmo assim, estico meu braço até a janela, abrindo-a e observando o mundo por detrás dessa, o dia revelando-se a meus olhos como uma reprodução fiel da imagem que já possuía em minha mente antes de alcançar a janela.
Já estamos a cerca de um mês e meio nessa mesma casa, em uma das propriedades Winner, e embora estivéssemos enfrentando o final do verão - com um clima abafado e múltiplas tempestades - quando inicialmente nós instalamos nesse esconderijo, agora o tempo já dá indicações claras de que definitivamente estamos entrando no outono.
As manhãs cinzentas são um deles. A temperatura média que cai drasticamente durante a noite é outro. Mas talvez o maior de todos, seja a aparência da enorme árvore para a qual olho nesse exato momento. Ela está coberta de folhas que um dia foram verdes, mas que hoje, exibem uma cor amarelada e uma superfície enrugada e gasta.
Tenho acompanhado a lenta jornada das folhas até seu estado atual desde que fui colocado nesse quarto. Após cerca de duas semanas de repouso completo que estava me levando lentamente a loucura, o restante dos rapazes ponderou que seria melhor se eu fosse transferido para um quarto, 'com mais luz e ar' nas palavras de meu bom amigo Quatre.
Logicamente, isso traduz-se na forma de um quarto um pouco maior do que o que eu ocupava anteriormente, com a diferença de que meu novo cômodo possuí uma enorme janela posicionada logo acima e a direita da cama. Janela essa que fica aberta durante todo o tempo com exceção das noites, preenchendo o quarto com MUITA luz e MUITO ar. Luz e ar suficientes para me manter marginalmente calmo diante do fato de que ainda tenho de passar a maior parte de meu tempo entre essas mesmas quatro paredes, terminando o meu processo de cura.
Na ocasião da mudança, eu ainda encontrava-me em um estado não tão próximo da recuperação completa – ainda haviam grandes áreas roxas em minhas pernas e braços, e os pontos do ferimento do abdômen ainda não haviam sido retirados – mas, depois de um mês debaixo dos cuidados excessivamente atentos de meus companheiros, eu já me encontrava cruzando a fronteira que separava minha leve fragilidade da recuperação total.
Aparentemente, essa fronteira era a mesma que separava a minha sanidade mental da loucura.
Isso por que, mesmo estando visivelmente melhor, essas melhorias tornam-se parcialmente invisíveis diante do olhar dos outros pilotos. Completamente invisíveis, se forem os olhos de Heero.
Suspiro profundamente deixando que o ar que sai de meus pulmões leve consigo minha frustração diante de minha incapacidade de lidar propriamente com a preocupação alheia. Lembro-me de que é muito cedo para estar nervoso, e me resigno do fato de que falta pouco ou quase nada para que acabe o prazo que os Doutores me deram para que pudesse me recuperar.
Tão logo o fim desse prazo chegar e estarei novamente no campo de batalha. E, não pela primeira vez em muitos dias, encontro-me ansioso para poder voltar a lutar. Sinto que a adrenalina das batalhas me faz falta como se fosse uma droga, e o horrível sentimento de inutilidade vem me consumindo lentamente pelos cantos de minha mente, comendo pedaços maiores quando os outros pilotos recebem suas próprias missões, e aproximando-se perigosamente da parte de meu cérebro que é controlada quase que inteiramente por Shinigami. A parte habitada pelas memórias mais escuras e frias, aquela que nem eu mesmo sou capaz de analisar racionalmente ou tentar compreender.
Eles deveriam acreditar em mim quando digo que NENHUM de nós deseja que essa parte de minha mente venha a tona sem uma boa razão.
Um movimento retira-me subitamente de meus pensamentos, e meus olhos viram-se novamente para o lado de fora, aonde uma folha na extremidade do galho mais longo da árvore balança perigosamente em sua própria estrutura, sua ponta movendo-se contra o galho com a força do vento típico das primeiras horas da manhã.
Assisto a luta da folha contra a força da própria natureza por alguns minutos, e observo paralisado enquanto esta finalmente separa-se do galho, este que um dia já foi sua fonte de vida, para jogar-se em uma queda lenta e livre contra o chão do jardim, que logo estará coberto com dezenas de folhas iguais a ela.
Por alguns momentos deixo que meu olhar repouse admirado sobre a folha caída inocentemente no pé do árvore, e minha mente me presenteia com um replay de sua queda, voltando em seguida para a imagem da árvore ainda no auge de sua plenitude, apenas algumas semanas atrás, como se a vida daquela folha fosse um filme e eu tivesse um controle remoto em mãos que me permitisse ver e rever cada evento de acordo com minha própria vontade.
Rio suavemente de minha própria admiração por uma coisa tão trivial quanto uma folha, e penso por um instante que talvez esses sejam os primeiros sintomas de que ,talvez, eu realmente já tenha um pé do outro lado da fronteira da sanidade.
Mas esse pensamento dura muito pouco, por que em seguida me ajeito o mais rapidamente o possível na cama, preparando-me para o que já sei que vai acontecer em poucos segundos.
Pés caminham na direção de minha porta, e pelo ritmo estático e firme dos passos que se arrastam levemente pelo assoalho do corredor, tenho certeza absoluta de que é ele. Tenho certeza ainda de que o arrastar dos pés é feito deliberadamente para que eu possa escutá-lo e antecipar sua chegada. Quando Heero não deseja ser ouvido, ele não produz um ruído sequer até o momento em que decida se fazer finalmente presente. Em alguns casos, a vitima é derrubada antes mesmo de saber o que a atacou.
Mas não sou um dos alvos de Heero, e com isso em mente, ele trata de fazer um pequeno ruído, um que ele sabe que provavelmente vai ser escutado apenas e tão somente por mim, a essa hora da manhã.
Os passos continuam sua marcha até pararem na porta do quarto, e em seguida, a porta do cômodo abre e fecha suavemente, deixando que apenas um leve rastro dos aromas da manhã entrem, acompanhando a presença de Heero.
Mesmo de olhos fechados, posso senti-lo no quarto. É como se sua figura tomasse um espaço muito mais largo do que aquele que realmente ocupa. Como se sua simples presença fosse forte o suficiente para preencher um cômodo grande quanto qualquer quarto da residência Winner, ou talvez maior. Enquanto suspiro lentamente, tentando manter minha respiração controlada diante da aparição da pessoa que faz meu coração bater mais rápido com um simples olhar, imagino durante alguns instantes como é possível que os soldados da Oz não consigam sentir essa presença que Heero possui, tão grande em sua potência que chega a ser quase opressiva.
Mas um segundo depois, lembro-me novamente de que posso sentir Heero dessa forma apenas e unicamente pelo fato de que ele me permite fazê-lo. E antes que eu deixe o calor familiar que acompanha esse pensamento tomar meu corpo, ouço seus passos, agora arrastando-se ainda mais suavemente sobre a superfície do carpete de meu cômodo, aproximando-se de minha cama.
Como em todas as outras manhãs, ele para exatamente ao lado da cama, e, sem quebrar a tradição que realizamos todos os dias, permaneço imóvel em uma imitação perfeita de um corpo em sono profundo que tenho certeza que ele não engole nem por um segundo sequer.
Aguardo até o momento em que ele finalmente senta-se no canto da cama, seu peso sobre o colchão puxando meu próprio corpo para mais perto do seu, e põe sua mão, áspera e com calos nos dedos, sobre meu rosto. O calor do toque faz com que eu abra meus olhos instintivamente, mas arrasto o ato por alguns longos momentos, piscando algumas vezes antes de abri-los por completo, sem em nenhum momento abandonar o pequeno ato de parecer adormecido.
Heero sabe que não estou dormindo antes que ele me toque todos os dias. Eu sei que ele sabe. Mas ambos continuamos nessa pequena encenação, como se essa estúpida rotina fosse um ritual nosso, e apenas nosso, do qual mais ninguém nunca será capaz de compartilhar.
Ele gosta de me acordar mesmo sabendo que já estou acordado. Eu gosto que ele me acorde mesmo que já tenho o feito sozinho muito tempo antes. E assim começam nossas manhãs, comigo praticamente ansiando por esse primeiro toque - que por muitas vezes já me pareceu ser a única coisa capaz de me fazer enfrentar mais um dia - e com Heero me agraciando com esse pequeno presente, jamais questionando o ritual em si, apenas seguindo nosso estranho script.
'Bom dia', ele me diz, voz um pouco rouca pela falta de uso.
'Bom dia', respondo com a voz igualmente rouca. Em seguida ele aproxima-se, dando-me um beijo suave no rosto, que eu agradeço com um sorriso amplo que ilumina toda a minha face e a dele em resposta.
O mesmo script todos os dias.
Em seguida ficamos por algum tempo nessa posição confortável, até o momento em que Heero gentilmente retira meus cobertores de cima de meu corpo, indicando que é hora de levantar. Depois disso, enquanto escovo meus dentes, ele arruma minha cama, e enquanto penteio meu cabelo, decidimos que tipo de rotina de exercícios estaremos fazendo no dia.
O acidente na base e os ferimentos daquele episódio fizeram com que eu ficasse de cama por um período de quase três semanas. Durante esse espaço de tempo, acabei perdendo um pouco de massa muscular por conta da ociosidade e também de uma alimentação mais leve que eu era obrigado a suportar, uma vez que comidas sólidas associadas aos remédios para dor faziam com que eu sofresse de um enjôo constante.
Nas últimas duas semanas, desde que recuperei parte de minha força e me mostrei capaz de suportar esforço físico moderado, Heero e eu passamos a completar uma rotina de duas horas diárias de exercícios que cumpríamos juntos todas as manhãs. Eu a cumpria em prol de recuperar minha força com mais velocidade, e Heero a fazia para manter um olho em mim e assegurar-se de que eu não fosse exagerar.
'Pensei que hoje podíamos jogar uma partida de basquete', falei, enquanto terminava de arrumar meu cabelo, colocando o elástico preto seguramente no fim da trança. Heero me observava, como sempre, seus olhos grudados em minha imagem no espelho, e simplesmente assentiu com a cabeça.
'"timo! Finalmente vou ter a chance de chutar o seu traseiro em algum esporte, e quem sabe assim a babá-Yuy não tira um dia ou dois de folga?', falei em um tom brincalhão, enquanto separava a calça de moletom e uma camiseta branca.
'Duo...', ele respondeu com um olhar parte preocupado e parte divertido. Como ele consegue conciliar ambos os sentimentos em um olhar e uma palavra de uma única sílaba, acho que nunca saberei.
'Mas é verdade Heero', rebati, enquanto retirava minha camiseta de dormir, substituindo-a pela que havia acabado de retirar do armário, 'você não deixa eu me esforçar em nada. Desse jeito nunca vou me recuperar completamente.' Terminei minha declaração, iniciando a mesma discussão que tínhamos todos os dias, e sabendo antecipadamente como ela acabaria.
'Você ainda não está pronto para se esforçar ao máximo, Duo. Seu corpo sofreu um trauma gigantesco. Você não pode exigir que ele se recupere por completo no espaço de menos de dois meses', ele me responde, enquanto troca sua própria regata, por uma camiseta de manga comprida. As manhãs de outono são realmente um pouco frias.
Eu olho em seus olhos absorvendo mais uma vez o argumento com o qual ele me responde todos os dias, apenas com palavras diferentes. Permito-me um longo suspiro resignado, que ele recebe com um pequeno sorriso igualmente resignado.
Heero entende que preciso insistir, e no fundo, sabe que um dia terá de finalmente ceder. Mas ele espera que essa data seja adiada o quanto for possível, e no que depender dele, pode ser que ela nunca chegue.
'Vamos', indico que estou pronto dirigindo-me para a porta do quarto, bola de basquete em mãos.
Caminhamos juntos até um parque próximo. Ainda é muito cedo, e ninguém anda por esses lados a essa hora da manhã, o que dá a mim e Heero uma escolha ampla sob qual quadra queremos usar para nossa disputa.
Heero sugere que usemos a primeira, já que esta, sendo a mais próxima do nosso caminho de retorno, fará com que andemos menos na volta e nos cansemos menos.
Tradução: eu, vou me cansar menos.
Decido não discutir sobre a localização da quadra, mas ao invés disso, dar uma canseira em Heero, para que ele perceba exatamente com quem está lidando aqui, e note ainda, que minha taxa de recuperação talvez seja mais alta do que ele pensa.
Assim, um jogo que começou amigável e leve, foi transformado – por mim, obviamente – em uma disputa quase feroz. Eu podia claramente ver Heero esforçando-se imensamente para não permitir que seus instintos tomassem seu corpo deixando que ele literalmente avançasse em mim em busca da bola.
Empurrei meus limites durante horas, até onde pude, percebendo em determinado momento que meu corpo não suportaria continuar com aquele ritmo por muito mais tempo. Joguei minha carta final, esperando apenas que Heero comprasse meu blefe.
'Esse é o último ponto Yuy', falei tentando ao máximo esconder minha respiração ofegante. 'Se eu fizer essa cesta, eu ganho, provo que não sou um fracote indefeso, e você, vai para o chuveiro, meu amigo.' E com esse último grito triunfal, lancei-me para a frente na direção de meu adversário, quicando a bola a minha frente, pronto para driblá-lo e fazer o ponto da vitória.
O drible foi quase perfeito, mas Heero conseguiu bloquear parte de meu pulo com uma das mãos. A força de meu braço batendo contra o dele no impulso de lançar a bola contra a cesta me desequilibrou. Pude notar que ele também havia perdido seu equilíbrio no momento em que pulou para fazer o bloqueio, e por um milésimo de segundo me vi indo em direção ao chão com o peso dele caindo diretamente sobre mim.
No momento seguinte, eu já estava no chão, mas Heero não encontrava-se em cima de mim, e sim, embaixo, com suas costas pressionadas contra o cimento da quadra e mantendo-me firmemente preso no círculo de seus braços. Eu nem sequer havia sentido o momento no qual aqueles braços haviam me envolvido.
'Duo? Duo? Você está bem?', ele foi mais rápido até mesmo para recuperar-se do susto.
'Eu...', respondi hesitante, ainda um pouco confuso com o rumo dos acontecimentos e minha repentina nova posição. Levantei-me sobre seu corpo, sentando-me levemente em suas pernas, deixando que seus braços escorregassem automaticamente pela extensão dos meus, suas mãos alcançando as minhas.
'... eu estou bem', continuei finalmente, deixando que minhas mãos fossem para a parte de trás de sua cabeça. 'E você? Não bateu a cabeça? Não se machucou?'
'Eu estou bem', ele respondeu, depois de um longo suspiro que pareceu colocá-lo novamente em sua posição habitual de eterno controlador da situação.
Passada a preocupação, deixei que a frustração tomasse seu lugar. 'Por que diabos você se jogou no chão Heero? Era para termos caído em cima de mim, droga! Eu pulei para fazer o ponto e você me bloqueou, não o contrário. E justo agora que eu estava prestes a...'
Fui interrompido por um beijo, e com os braços de Heero que novamente me envolviam em seu calor tão peculiar enquanto sua boca me silenciava sem dificuldade. Uma vez passado meu choque, respondi o beijo com carinho, deixando que a frustração fosse substituída pelo sentimento por trás do contato gentil.
Quando nos separamos, Heero abriu seus olhos direcionando-os imediatamente a meu rosto, e então afastou-se uns poucos centímetros, apenas o suficiente para ajeitar atrás de minha orelha com a ponta dos dedos alguns fios de cabelo que haviam soltado-se da trança durante nosso jogo.
Observei seu olhar afetuoso diante da ação quase corriqueira, e lhe dei um soco leve no ombro. 'Você acha mesmo que pode simplesmente me beijar e que isso resolve todas as nossas discussões, não?'
Heero lentamente cruzou seus braços colocando-os atrás de sua cabeça e então deitou-se no chão novamente, seu rosto exibindo um sorriso quase malicioso que eu tinha a certeza de ter sido o único ser em todo o universo a já ter presenciado.
'Você pode tentar argumentar um pouco mais comigo então' Ele respondeu, e posso jurar, que o sorriso alargou-se.
Fingindo um grunhido de indignação, abaixei meu corpo imediatamente pressionando-me contra ele, posicionando-me um pouco mais acima sobre suas pernas e pegando seu rosto entre minhas duas mãos, unindo nossos lábios em seguida. Então prossegui com minha 'argumentação'. Eu esperava estar sendo bem convincente.
Sem que nos importássemos com nossos arredores, levamos nossa 'discussão' um nível acima quase inconscientemente. As mãos de Heero abandonaram sua posição em meus braços e viajaram para minhas costas, movendo-se sensualmente para cima e para baixo mantendo-me o mais próximo possível dele.
Ao mesmo tempo, minhas próprias mãos viajavam explorando suavemente o peitoral sob meus dedos, gostando do movimento de contração involuntária dos músculos quando eu acariciava algum ponto mais sensível.
Um suave gemido que reconheci como sendo de minha própria voz e o frio do vento da manhã batendo contra a pele aquecida de meu abdômen em uma parte aonde Heero havia erguido minha camiseta foram o que me trouxe de volta para o presente momento, e a presente situação na qual havíamos acabado de nos colocar.
Afastei-me de Heero apenas o suficiente para poder olhar em seus olhos. E o amor, confiança e desejo que vi estampado nesses olhos fez com que o som de meu próprio coração batendo em meus ouvidos ficasse ainda mais alto.
Nós éramos um casal a um tempo considerável agora, mas ainda não tínhamos dado esse último e gigantesco passo em nosso relacionamento.
Era algo que eu realmente desejava para nós dois. Poder absorver tudo o que Heero tinha a me oferecer, e ao mesmo tempo poder presenteá-lo com a totalidade de meu amor e confiança por ele. Mas alguma coisa no fundo de minha mente, alguma coisa quase subliminar, uma coisa antigae tão primária quanto minha própria existência...me dizia....me dizia que...
...que eu não podia. Que não era capaz de dar esse último passo junto a Heero. Ainda não.
E no momento em que esse pensamento deixou timidamente seu lar nos cantos escuros de meu cérebro apenas para espiar rapidamente do lado de fora de seu confinamento, meus olhos provavelmente gritaram minha insegurança e incerteza aos quatro ventos, por que Heero imediatamente suavizou seus movimentos, transformando as carícias aquecidas em toques quase fraternais ao mesmo tempo em que me lançou um olhar que disse com todas as palavras que ele não daria esse passo sozinho.
Ele deixou que eu visse em suas brilhantes orbes azuis, que ele pretendia esperar o tempo que fosse necessário.
Segurei um grunhido de frustração contra minha própria insegurança enquanto lentamente retirei-me de cima de seu corpo, movendo-me com cuidado para não machucá-lo e lhe dando um pouco de espaço para se recuperar da atividade interrompida.
Mesmo sabendo que Heero compreende que não me sinto preparado, pesa em meu coração o fato de que ele não sabe as razões de minha atitude, as razões pelas quais não sou capaz de confiar cem por cento nele, entregando meu corpo, coração e alma em suas mãos para que ele faça com elas o que bem entender.
Pesa-me ainda mais o fato de que nem eu mesmo sou capaz de compreender minhas atitudes. Parece que todas as vezes em que estou prestes a descobrir o que está escondido por trás de minhas próprias atitudes, aquela mesma parte da mente volta para seu canto escuro, escondendo-se nas sombras e recusando-se a falar sobre o assunto.
Entrelaço meus dedos em meus cabelos pronto para puxá-los de suas raízes com toda a força, na esperança de que o movimento talvez traga algum conforto para minha mente excessivamente abusada.
Por um instante olho para trás e sinto como se o maldito acidente na base não tivesse roubado apenas minha energia, mas também parte de minha coerência, senão meu próprio espírito. Por que infernos de repente me sinto tão...indefeso?
Heero, como sempre, percebe meu stress e tenta me acalmar com toques suaves e uma expressão compreensiva. Eu posso, por experiência própria, imaginar o quanto essa situação deve ser frustrante para ele, mas nenhuma palavra é dita. Ele apenas assegura-me de sua infinita compreensão e paciência através de gestos e olhares. Ele age praticamente como se nada tivesse acontecido.
Rapidamente nos recompomos e voltamos para a propriedade Winner com nossos dedos entrelaçados e em um silêncio confortável. Não faço idéia do que passa pela mente de Heero nesse exato momento, mas sei que a minha grita em confusão, pensamentos voando descontroladamente por todos os lados tentando juntar-se uns aos outros para fazer algum tipo de sentido. Por um momento assustador percebo o peso do olhar de meu companheiro sobre mim e olho para Heero com medo de que talvez ele seja capaz de escutar os sons de meu sofrimento interno.
Mas ele apenas sorri, o pequeno sorriso que ele reserva apenas e unicamente para mim, e eu sorrio de volta, aliviado de saber que ele não consegue ver meu conflito mental.
Chegamos na mansão ainda de mãos dadas e ao entrarmos na sala, instintivamente nos separamos diante da tensão presente no cômodo.
Todos os demais pilotos estão reunidos na sala. O laptop de Trowa está ligado sobre a mesa, e meus três amigos estão sentados em volta dele, sem olhar para a tela da máquina, mas com expressões que apresentam diferentes níveis de preocupação. Isso não é um bom sinal.
Eles não precisam nos dizer para assumirmos nossas posições na reunião, mas antes que possamos nos sentar em cantos separados da sala para que o assunto em pauta possa ser discutido, Wufei levanta-se e olha em nossa direção comum. 'Chegou uma missão', ele diz em um tom grave, e então olhando apenas para mim, 'uma missão para Maxwell.'
Praticamente pulo de minha posição para poder ler os parâmetros da missão, mas novamente, antes que possa me mexer, Trowa vira o laptop na minha direção para que eu possa ver a mensagem na tela do aparelho.
A chegada de uma missão é sem dúvida o ponto de partida para que eu finalmente possa voltar a ativa, e por um momento, me encontro quase feliz pela prospecção de poder voltar ao campo de batalha, ignorando momentaneamente as faces preocupadas de meus amigos.
A realidade retorna a minha consciência um minuto depois, com a força de um soco no estômago, levando junto com o ar de meus pulmões toda e qualquer alegria diante da recém-chegada notícia.
A missão é extremamente perigosa. Trata-se de uma infiltração numa das maiores fábricas de móbiles do continente, e exige extrema cautela, uma vez que o piloto terá de movimentar-se pelos tubos de ar-condicionado do edifício, esses tendo sido previamente sabotados para não funcionarem corretamente. Seria um trabalho sem chance para erros e exatamente por essa razão é que eu havia sido designado especificamente, infiltração sendo minha especialidade máxima.
Todos ficam em um silêncio quase cortante até o momento em que Heero pronuncia-se ao meu lado, numa voz que não admite qualquer tipo de contestação, 'Eu vou no lugar dele.'
Por um momento encontro-me completamente paralisado sem saber o que dizer ou fazer, até que, em um único segundo, sou invadido violentamente por um sentimento completamente novo, e ao mesmo tempo, de certa forma, familiar.
'Não, você não vai', me ouço dizer enquanto levanto-me para olhar Heero de cima. Minha voz treme de raiva apesar de meus esforços para conter essa reação.
Heero, me conhecendo melhor do que ninguém, provavelmente esperava uma reação de minha parte, mas posso notar que ele surpreendeu-se com o tom indiscutivelmente resoluto de minha voz.
'Duo, você não está em plenas condições para...', ele apela para a lógica, mas decido que não vou engolir nada disso.
'Eu já disse. Você não vai', falo, deixando que minha voz inconscientemente suba um tom, e observando a movimentação de Wufei ao meu lado, boca semi-aberta preparando-se para dizer alguma coisa, adianto-me apontando um dedo ameaçadoramente em sua direção, 'E nem sequer atreva-se a querer se oferecer para fazer o que é MEU trabalho, Wufei.'
Tenho tempo apenas de registrar a surpresa no rosto de meu companheiro chinês antes que Heero recupere sua compostura e tente argumentar comigo novamente. Ele me olha com cuidado, analisando minha postura repentinamente defensiva e calculando sua provável melhor abordagem. Posso praticamente ouvir o barulho da engrenagem em sua mente trabalhando loucamente para não deixar a situação ainda pior.
Tarde demais.
'Duo, não seja incoerente. Você melhorou muito mas ainda não está pronto para...', ele tenta, mas eu o interrompo antes que ele diga ainda mais coisas capazes de me enfurecer.
'Não me diga para o que eu estou ou não estou pronto, Heero. Você não tem idéia das coisas para as quais eu me sinto ou não pronto. Você não sabe por que eu...', e com essas palavras, vejo-me repentinamente prestes a dizer algo muito sério, revelador até para mim mesmo. Heero percebe imediatamente e fica paralisado, seus olhos praticamente congelados sobre minha expressão.
Mas Trowa, tendo movimentado-se para trás de mim e, sem ter idéia do conflito que pode ser visto claro como o dia em minha face, aproveita a deixa que considera propícia e pronuncia aquilo que acaba sendo a cartada final para mim.
'Duo', ele diz com sua voz eternamente calma e controlada, 'entenda que você não está em plenas condições físicas e não pode correr o risco de...'
'Eu posso morrer, sim!!!', praticamente grito, completando a frase de Trowa, mesmo sabendo com toda certeza que essas não seriam suas palavras. Mas não me sinto satisfeito, e continuo como uma metralhadora atirando para todos os lados.
'Ninguém vai morrer lá fora por minha causa. NINGUÉM, entenderam?', eu falo no plural, dirigindo-me a todos eles, mas meus olhos estão grudados nos de Heero, vendo as orbes azuis quase assustadas que aumentam a cada sílaba pronunciada por mim.
'Essa missão é MINHA, e se alguém vai colocar o pescoço em risco lá fora, esse alguém sou eu. EU, e mais ninguém!' Termino minha declaração de modo ofegante e tudo o que ouço em resposta é o som da respiração contida de todos os outros ocupantes da sala.
Cubro meus olhos com minhas mãos para não ver a cena que tenho certeza que se passa a minha volta. Não acho que sou capaz de suportar olhar para seus rosto sem deixar que minhas resoluções se quebrem em pedaços diante da provável confusão que verei em seus olhos.
Mas a mão de Heero tocando hesitante em meu ombro me retira de meu transe momentâneo, apenas para colocar-me em um novo.
Abro meus olhos em sua direção, mas o que vejo não são seus familiares olhos azuis e cabelos castanhos. O que vejo são olhos cor de mel e cabelos loiros e lisos que caem suavemente sobre seus ombros.
A imagem dispara uma dor insuportável em meu peito, e começo a me afastar, caminhando lentamente para longe do cômodo até finalmente correr na direção de meu quarto, fugindo sem dizer qualquer outra coisa.
Fecho a porta atrás de mim, sabendo que não vai demorar muito para que um deles, ou todos, venham em meu encalço. Traço um plano mental contando com a possibilidade quase certa de que Quatre dirá para os outros me concedam alguns momentos de privacidade. Isso certamente me dará alguns minutos a mais.
E com esse pensamento em mente, tento recuperar meu fôlego rapidamente através de longas tomadas de ar, antes de sair pela janela do quarto, correndo novamente na direção do parque. Estou cansado por conta do exercício matinal, e temo não estar correndo rápido o suficiente, mas depois de finalmente alcançar meu alvo, permito-me uma rápida olhada para trás, e percebo que, até onde meus olhos podem ver, não há ninguém correndo atrás de mim.
Caminho por mais alguns metros, procurando por um lugar o mais recluso o possível e afastado de possíveis olhos curiosos, e, ao encontrar o refúgio do tronco de uma árvore, deixo que me corpo caia pesadamente sobre a grama, sentindo-me como se nas últimas horas tivesse adquirido uma quantidade absurda de peso.
Finalmente permito-me respirar novamente, e meus olhos cerram-se instintivamente, tentando fazer com que a overdose de dor e sofrimento fique do lado de fora das pálpebras.
Mas percebo rapidamente que não há escapatória. Ao mesmo tempo em que cada junta e músculo de meu corpo praticamente grita pelo esforço acumulado depois de tanto tempo em desuso, minha cabeça lateja com o início de uma dor de cabeça que parece ter força o suficiente para rachar meu crânio em dois.
Por quê? Por quê? Não posso deixar de questionar a atitude de meus amigos, e nem a minha própria. Eu simplesmente não posso compreender a noção de que , mesmo por um minuto sequer, eles acreditaram que eu realmente permitiria que qualquer um deles tomasse o meu lugar, sofresse conseqüências no meu lugar, morresse no meu lugar.
Especialmente Heero. Dentre todos, ele deveria ser o que melhor compreende o fato de que eu nunca, jamais, deixaria que nada acontecesse a eles por minha culpa.
Abro meus olhos tentando concentrar-me em algo que não seja a parte escura de minha mente e a primeira coisa que avisto a minha frente é uma visão muito próxima da que tive apenas algumas horas atrás, ao acordar. Vejo folhas, sumariamente presas a seus suportes na árvore, lutando para não separar-se de sua fonte de vida, algumas delas perdendo a batalha e caindo a minha volta e sobre meu corpo.
Por um momento, sinto-me como uma das folhas, indefeso contra as forças que agem sobre mim e caindo lentamente, separando-me daquilo que me mantém vivo, até atingir o chão. A noção me preenche com um sentimento frio e doloroso e fecho meus olhos mais uma vez.
Quando os abro novamente, percebo que o céu não mais possui o tom cinzento do momento em que eu os havia fechado, estando agora um pouco azulado. Noto ainda que algumas estrelas já podem ser vistas brilhando timidamente. Levanto-me lentamente de minha cama de folhas e olho em volta.
O parque está completamente deserto e algumas das lâmpadas da pista de corrida já estão acesas. O vento frio está de volta com força total, e todos esses sinais me dizem que desmaiei sobre a grama do parque, provavelmente pela exaustão, tendo dormido durante toda a tarde.
O som de meu estômago roncando alerta-me para o fato de que não comi nada durante o dia todo, não tendo chego sequer a tomar o café-da-manhã.
Levanto-me lentamente, levando uma das mãos imediatamente a cabeça tentando instintivamente conter a dor de cabeça que me assalta com força o suficiente para que eu me desequilibre. Suspiro longamente algumas vezes, tentando recuperar algum semblante de controle, e então, finalmente, começo a minha longa caminhada de volta para a mansão.
Ando devagar, não tendo realmente pressa de chegar, e penso que a única coisa que me faz retornar a esse lugar no atual momento é a fome, e a certeza de que caso não me alimente , provavelmente estarei causando um enorme dano a meu corpo recém recuperado.
Quatre espera por mim na porta, e corre em minha direção ao ver minha figura aproximando-se da residência. Antes de me tocar porém, ele para a alguns metros de meu corpo como se estivesse congelado e leva sua mão ao peito, apertando o punho contra a pele enquanto seu rosto contrai-se dolorosamente.
Paro a sua frente esperando que ele diga alguma coisa, mas ele simplesmente olha para meu rosto, suas mãos dançando indecisas entre a idéia de me abraçar ou abraçar seu próprio corpo que agora praticamente treme.
Olho em seus olhos verdes e noto que o olhar de meu amigo árabe reflete minha própria dor e conflito internos com perfeição. Fecho meus olhos instintivamente tentando fugir daquilo que sei que não sou capaz de enfrentar no momento.
Trowa junta-se a nós alguns segundos depois, correndo ao nosso encontro no jardim, e então para ao nosso lado, parecendo completamente confuso a respeito de qual dos dois deve acudir primeiro. Facilito a escolha para ele dirigindo-me a porta sem dizer uma palavra sequer durante todo o encontro.
Caminho até a cozinha abrindo rapidamente a geladeira e retirando dela uma maçã e uma garrafa de leite. Jantar em mãos, continuo meu caminho até meu quarto, não me dando ao trabalho de fechar a porta atrás de mim, tendo a certeza de que essa será aberta em muito pouco tempo.
E certo como o dia, poucos minutos depois de deitar em minha cama e dar minhas primeiras mordidas na maçã, Wufei entra em meu cômodo como uma tempestade, praticamente chutando a porta em seu desespero de tirar o objeto de sua frente.
'Maxwell!', ele grita, e não preciso olhar para seu rosto para perceber que ele esta positivamente possesso, então continuo a olhar para o teto.
'Qual é o seu problema? Heero está praticamente louco de preocupação. Ele saiu atrás de você e procurou por todas as partes sem ter qualquer sinal seu. Aonde você esteve o dia inteiro?', ele gritou, aproximando-se da cama e praticamente cuspindo fogo em minha face.
Não me dei ao trabalho de responder, sem ter qualquer traço de ânimo ou vontade para me justificar. Simplesmente permaneci congelado em minha posição, olhos grudados no teto.
'Maxwell, você está me ouvindo? Eu estou falando com você!', agora Wufei estava realmente bravo, por que ele tinha acabado de me forçar a olhar para ele, levantando-me violentamente com um dos punhos pelo colarinho de minha camiseta branca.
Forçado a encarar os olhos negros e duros de meu amigo chinês, não tentei esconder ou disfarçar o que havia em minhas próprias orbes, e algo em minha expressão fez com que ele me soltasse quase que imediatamente, deixando que meu corpo caísse novamente sobre a cama como um peso morto.
'Duo...?', ele falou incerto, sua tom agora muito mais suave, mas foi interrompido pela voz de Quatre vindo do batedor da porta.
'Wufei, deixe-o sozinho', o loiro disse, e sua própria expressão era muito parecida com a que Wufei exibia no momento.
Lançando-me um último olhar preocupado, o chinês deixou o quarto fechando a porta atrás de si. Voltei a minha silenciosa contemplação do teto, tentando escutar os sons da casa. Pude ouvir o barulho da porta principal abrindo e fechando várias vezes, e vozes. A voz de Heero num tom que mal fui capaz de reconhecer, completamente alterada pelo desespero. A voz calmante de Quatre. A voz asseguradora de Trowa. Todas pronunciando palavras que eu não conseguia distinguir por completo.
Depois de muito tempo, as vozes calaram-se, e apenas os barulhos da noite do lado de fora podiam ser ouvidos. Reconheci os passos de Heero aproximando-se da porta de meu quarto e esperei pela provável explosão de sua entrada dentro do cômodo.
Mas ela nunca aconteceu.
Tão lentos quanto se aproximaram, os passos caminharam para longe da porta depois de uma longa pausa. Aos meus ouvidos, o som parecia pesado, como se cada movimento dos pés exigisse um esforço enorme por parte de seu dono.
Não sei dizer se fiquei feliz ou triste por esse fato. Ao mesmo tempo em que desejava distância de toda a discussão que eu sabia que se desencadearia uma vez que Heero pusesse os olhos sobre mim, eu ansiava vê-lo, tocá-lo, senti-lo perto de mim.
Passei a noite inteira rolando de um lado para o outro da cama, ansiando pela volta dos passos no corredor.
Nas primeiras horas da manhã, finalmente aconteceu. Assim como em todos os outros dias, os passos aproximaram-se lentamente de minha porta, parecendo ainda mais pesados do que na noite anterior.
Heero parou a frente de minha porta e esperei pelo momento em que a porta abriria-se finalmente revelando a imagem dele a mim. Mas quando a maçaneta girou lentamente, fechei meus olhos com força, ao mesmo tempo forçando meu corpo a relaxar, numa fraca imitação de meu 'eu-adormecido'. Uma sombra do ato que eu repetia todas as manhãs.
Senti a presença de Heero novamente tomar todo o cômodo, como sempre, mas havia algo diferente dessa vez, como se, de alguma forma, houvesse uma tensão praticamente palpável em cada um de seus movimentos.
Ele se aproximou da cama e ficou nessa mesma posição por muito tempo sem que eu abrisse meus olhos ou sequer me movesse, temendo ser descoberto na farsa que já tinha certeza que nunca havia se concretizado em primeiro lugar.
Pude ouvir um suspiro longo e pesaroso, e então, Heero se foi, me deixando no quarto com uma sensação fria e estranha no fundo no estômago.
De repente, me senti sujo. Levantei-me indo diretamente ao banheiro anexo, deixando um rastro de roupas em meu caminho e entrando diretamente embaixo do spray, a água quente o suficiente para me escaldar. Naquele exato momento, eu me sentia frio e sozinho como a muito tempo já não acontecia.
Por um momento aterrorizante, me vi novamente nas ruas escuras de L2, com fome, frio e medo, todos os sentimentos misturados numa única onda apavorante que consumia minha jovem alma aos poucos alimentando-se de minha esperança e vontade de viver.
Aquele canto escuro de minha mente começou a mover-se perigosamente, aumentando e ameaçando me sugar para dentro dele como uma minúscula e insignificante partícula de pó dentro de um gigantesco aspirador.
A água, agora fria, batendo contra minha pele, foi o que me tirou de dentro de meu sonho, alertando-me ao mesmo tempo para a quantidade de tempo que eu já tinha passado dentro do chuveiro. Meus dedos estavam enrugados e excessivamente brancos por conta da temperatura.
Me sequei rapidamente tentando recuperar algum calor de volta em meu corpo, e antes de sair do banheiro, olhei para meu reflexo no espelho sobre a pia. Notei a presença de olheiras praticamente roxas sob os olhos vermelhos, e a postura derrotada de todo o corpo, os ombros caídos e os músculos enfraquecidos.
Suspirei diante da confirmação visual do quão péssimo me sentia, e em seguida, tive de usar todo o restante da ridícula força que ainda restava dentro de meu abatido corpo para não desabar diante do que vi quando sai do banheiro.
No meio do quarto, estava Heero, obviamente esperando por mim.
Percebi imediatamente que seu olhar possuía um brilho inconfundível, e, de repente, senti como se estivesse afundando em um mar infinito de lembranças e memórias.
As faces de todos aqueles que eu já havia amado e que haviam se atrevido a me amar de volta, dançaram no rosto de Heero como numa dolorosa retrospectiva de minha vida. Todas as crianças da gangue. Padre Maxwell, irmã Helen e finalmente, o rosto inconfundível com os olhos cor de mel e os cabelos loiros.
A face de Solo olhou para mim por um longo momento até finalmente transformar-se pouco a pouco na imagem de Heero, olhos ainda brilhando com um sentimento forte o suficiente para disparar um alarme de emergência no lado negro de minha mente.
Avancei em sua direção, enrolado em nada além de uma toalha em minha cintura e calei sua boca com um beijo violento antes mesmo que ele pudesse ser capaz de dizer qualquer coisa.
Abracei-o em seguida, rapidamente buscando pelas bordas de sua camiseta puxando com força suficiente para rasgar o tecido, até finalmente livrar-me da peça, abandonando-a no chão junto das outras.
As mãos de Heero começaram a responder instintivamente, passando suavemente pela extensão de minhas costas, em um contraste absurdo com minha movimentação desesperada e agressiva.
Arrastei nossos corpos pelo quarto, separando nossos lábios apenas por tempo o suficiente para que conseguíssemos um pouco de oxigênio muito necessário. Heero respondia meu beijo com fervor, mas o restante de seu corpo ainda reagia timidamente a minha violenta investida.
Empurrei-o sobre a cama, imediatamente caindo sobre ele, sem cessar meu ataque. Deixei que minha boca finalmente abandonasse a sua, apenas para viajar pela extensão de seu peitoral, beijando e acariciando todo e qualquer pedaço de pele que encontrasse pelo caminho.
'Duo...' disse uma voz em algum lugar.
Rapidamente levei minhas mãos ao jeans de Heero, meus dedos encontrando o botão da peça com velocidade e partindo imediatamente para a tarefa de despi-lo da barreira que nos separava.
'Duo...' a voz repetiu, sem que eu lhe desse atenção.
As mãos de Heero repentinamente pegaram nas minhas, fazendo com que eu parasse meus movimentos. Em seguida, suas mãos começaram a subir pela extensão de meus braços até finalmente pararem e me agarrarem com força.
Meu cérebro latejou com a força dos pensamentos rodando em minha cabeça ao mesmo tempo em que meu peito comprimiu-se dolorosamente.
Era agora ou nunca. Heero trairia minha confiança, tomaria meu corpo, quebraria meu espírito em pedaços, cortaria a ligação entre nossas almas. Isso me daria forças para virar as costas e encarar o que – considerando minha condição – provavelmente seria minha última missão. Eu morreria deixando-o para trás, livre de minha presença e do fardo de me amar, e assim, acabaria-se a maldição.
'Duo...' ouvi a voz repetir num tom desesperado que me parecia extremamente distante.
Finalmente abri o zíper da calça.
'SIM', gritou minha mente.
'NÃO', gritou meu coração.
'DUO PARE!!!', gritou uma terceira voz, e um segundo depois, eu não estava mais sobre Heero.
Encontrei-me repentinamente deitado com as costas sobre o colchão, piscando lágrimas que acumulavam-se descontroladamente em meus olhos e corriam pela extensão de meu rosto. Heero agora estava sobre mim, braços me segurando firmemente sobre a cama, evitando que eu me movesse.
Ficamos parados por muito tempo nessa mesma posição, tempo no qual recuperamos nossos fôlegos e acalmamos o desconcertante ritmo ofegante de nossa respiração.
Quando Heero finalmente moveu-se sobre mim, uma de suas mãos me soltou e repousou sobre minha face, retirando mexas de meu cabelo de meu rosto, delicadamente colocando-as atrás de minha orelha.
'Duo', ele falou quase que em um sussurro, sua voz suave me acariciando como seda, 'o que você está fazendo?'
Fechei meus olhos tentando evitar aquele olhar que eu sabia que seria capaz de arrancar o que quisesse de mim, mas Heero gentilmente acariciou meu rosto, despertando minha atenção novamente.
'Não fuja', ele falou numa voz cheia de dor e necessidade. 'Por favor Duo, não fuja de mim...'
Eu não conseguia mais segurar minhas emoções. Sentimentos, dores e medos que haviam ficado confinados por anos dentro de minha mente, saíram como uma corrente infinita de memórias indesejadas. As palavras deixando minha boca sem qualquer semblante de coerência ou controle.
'Heero, eu não posso deixar você ir no meu lugar, não posso deixar você morrer no meu lugar, você também não... você não...', falei enquanto o abraçava com força o suficiente para partir ossos ao meio.
'Duo', ele respondeu, na voz mais calma e paciente do universo, como se estivesse lidando com um animal selvagem ou com uma criança que havia acabado de cair no meio de um mundo extremamente cruel. 'Por que você acha que vou morrer?'
'Por que você me ama, e por que eu amo voc', respondi num tom desesperado, sem conseguir encontrar palavras mais coerentes e rezando para todas as entidades existentes para que Heero fosse capaz de compreender o que eu queria dizer. 'Foi assim com todos, Heero. Um por um, todos que um dia me amaram...' terminei, sem conseguir dizer as palavras dolorosas.
'Solo?', ele perguntou suavemente, sem nunca deixar de retornar meu abraço. Eu simplesmente assenti com a cabeça contra seu ombro, tentando não deixar que a memória da morte daquele que eu havia mais amado em toda a vida, e que havia morrido para me salvar, me destruísse de uma vez por todas.
Ficamos abraçados pelo que pareceu uma eternidade, mas provavelmente foram alguns poucos minutos. Até que Heero finalmente me soltou e colocou uma das mãos debaixo de meu queixo, obrigando-me a olhar diretamente para seus olhos.
'Duo, me ouça com atenção' , ele começou e seus olhos agora tinham um brilho quase febril, 'Eu não vou morrer. Não antes de acabar com essa guerra. E se seu amor cumpre algum papel na minha sobrevivência, é o papel de me dar um motivo a mais para lutar, para viver.'
'O seu amor não vai me matar,' ele parou para limpar uma lágrima desobediente que escorria por meu rosto, 'mas a sua ausência vai. Se você morrer Duo, eu estarei logo atrás. No momento em que você começou a me amar, e aceitou meu amor de volta, você interligou nossas almas e isso é algo que eu simplesmente não posso destruir...'
Ele beijou meus lábios delicadamente. 'Não me peça para ir em frente sem você, Duo. Eu não acho que conseguiria.'
Palavras me abandonaram completamente diante dessa revelação, e concordei fervorosamente com a cabeça, voltando a abraçá-lo com toda a pouca força que ainda me restava.
Eu me sentia exausto e completamente desgastado, física e emocionalmente. Deixei então que Heero me embalasse suavemente, balançando nossos corpos suavemente, ajeitando-me na cama e deitando ao meu lado.
Novamente protegido no círculo de seus braços e na força de sua presença, meus olhos voaram para a árvore do jardim. Observei que no exato lugar aonde as folhas separavam-se de sua fonte de vida, dando seu pulo final para o vale da morte, nasciam agora, timidamente, novos brotos. Pequenos sinais fracos de que uma nova vida em breve surgiria daquele mesmo lugar, aonde alegria havia existido e deixado de existir num ciclo sem fim.
Mais uma vez me comparei com a folha ao vento, mas não mais me sentia oprimido pelas forças que simplesmente não podia controlar, que me puxavam para o chão de encontro com meu fim.
Nesse exato momento, deitado e seguro no abraço de Heero, eu me sentia como uma folha destinada a planar por quanto tempo fosse possível. Lutando contra a força opressiva da gravidade com a ajuda poderosa do vento.
Por quanto tempo fosse possível, eu seria a folha, e Heero, seria o vento.
Fim do Fic IX
'Blurry' ainda é minha maior cruz. Eu demorei vários dias apenaspara concluir a idéia desse fic, e uma outra enorme quantidade de dias para escrevê-lo... e ainda não estou completamente satisfeita com o desenvolvimento que dei para ele. -.-'
E como não poderia deixar de ser, gostaria de mandar o meu carinho e afeição as pessoas que continuam acompanhando esse arco na difícil jornada que ele tem percorrido nas minhas mãos. Beijos para Daphne Pessanha, Hi-chan, Diana Lua, Kiki, Bulma-chan e Kurou Maxwell. Milhões de agradecimentos a todos!
