Capítulo 04 - O MSV (movimento dos sem varinha)
O barulho monótono de serras e martelos enchia a casa. Cansados, os marotos se jogavam ao trabalho tedioso enquanto Raffles flutuava de um lado para o outro, atravessando paredes e mais paredes para avisar sobre as condições das mesmas.Sirius largou o martelo e a caixa de pregos no chão, caindo sentado quase ao mesmo tempo, enxugando o rosto suado. O moreno tirou a camisa, passando-a sobre o rosto antes de jogá-la para junto dos seus instrumentos de trabalho.
- Cara, isso é um saco. Como os trouxas agüentam fazer isso sem magia?
Pedro também sentou-se no chão, observando as mãos vermelhas e machucadas. Remo logo seguiu os amigos. Apenas Tiago continuava a, teimosamente, tentar consertar o terceiro degrau da escada de quase vinte (ainda faltam 17).
- Será que não podemos usar nem um pouquinho de magia? - Pedro perguntou - Não faz mal se os trouxas não verem, né?
Sirius e Remo se entreolharam por alguns instantes, pensando na idéia do amigo.
- Até que não é uma má lembrança, Rabicho. - Sirius respondeu levantando-se e mexendo no bolso da capa - Tiago, sai do meio!
Tiago voltou-se para o amigo sem entender, visto que não ouvira a conversa e levou um susto quando uma rajada brilhante veio em sua direção. Ele saltou para o chão, enquanto a escada à sua frente tornava-se como nova em questão de segundos.
- Ei! O que você pensa que está fazendo? Está tentando me matar?
- Calma, Pontas. Eu só queria ajudar aí com essa escada. Nem pudemos ainda investigar lá em cima por ela estar praticamente podre.
- Mas não podemos usar magia... - Tiago começou, estreitando os olhos, embora sua face estivesse claramente se abrindo em um sorriso.
- Se os trouxas não virem, não tem mal algum. - Remo observou.
O sorriso de Tiago abriu-se ainda mais.
- E o que estamos esperando?
Lílian caminhava calmamente pela rua. O cheiro de terra invadia seus sentidos, vindo do parque mais adiante. Pelo menos era um lugar tranqüilo; se pudesse, moraria ali com prazer. Tudo parecia ser um convite à paz.
Mas esses pensamentos logo sumiram quando ela terminou a última curva que impedia a visão do número 666. Como se adivinhando que ela caminhava para lá, uma rajada cor-de-rosa escapou pela janela, atingindo o jardim, que quase imediatamente floresceu como se jamais tivesse sido sufocado pelo capim que crescia alto antes da mudança dos marotos.
- Eu não acredito.
Ela parou diante da casa e, por alguns instantes, se quedou a contemplar o jardim. Além da sujeira, que tinha desaparecido, inúmeras roseiras deixavam flores completamente abertas exalarem seu perfume. As três árvores que até alguns dias atrás pareciam podres, estavam novamente verdes e vicejantes. A ruiva caminhou até a porta, e quando ergueu a mão para apertar a campainha em toda a sua fúria, ela se abriu, mostrando o rosto sorridente de Remo, que imediatamente se fechou ao ver o semblante da amiga.
Ele deu espaço para que ela entrasse. Não precisava perguntar o porquê da vermelhidão no rosto de Lílian, a simples visão do jardim também o chocara profundamente. Provavelmente um dos feitiços tinha escapado pela janela.
- Então, é só eu virar as costas que vocês já começam a aprontar?
Tiago virou-se sorridente para a namorada, sem notar o mau humor crescente da ruiva.
- Lily! Eu nem ouvi a campainha tocando... Olha só, já estamos quase acabando aqui embaixo. Só falta o salão de baile e poderemos subir para cuidar dos quartos.
- O que foi dito sobre usar magia no conserto dessa casa, Tiago Potter?
- Ah, Lily, os trouxas não podem ver a casa por dentro e... - Sirius começou.
- Então vá ver seu jardim, Sirius Black! - ela falou quase gritando.
Remo e Pedro apenas observavam a discussão, mudos. Nesse momento, a campainha tocou. Lílian se virou para a porta. Lá fora, uma simpática velhinha sorriu ao ver a garota e Lílian forçou um sorriso também.
- Bom dia, querida.
- Ahn... Bom dia.
- Escute, eu sou vizinha de vocês e, bem, eu não pude deixar de perceber o que fizeram com aquele velho jardim. Eu moro nessa rua desde criança e nunca vi esse jardim tão bonito...
- Errr... Bem, meus amigos têm jeito com plantas, sabe. Eles passaram a noite adubando tudo e transplantando roseiras e outras flores de uma granja que eles têm no interior.
- Eu logo percebi. - a velhinha sorriu ainda mais - Por isso vim aqui. Eu estou muito velha para cuidar do meu jardim e pensei que um desses rapazes fortes poderia me ajudar agora que somos vizinhos.
Sirius e Tiago trocaram um olhar cúmplice ao "rapazes fortes". Aquela velhinha não estava ali só para cuidar de seu jardim.
- Será um prazer. - Lílian afirmou, olhando para o namorado - Mais tarde eles vão ajudar a senhora.
- Obrigada, minha querida. A propósito, você também vai morar aqui?
A face da ruiva ficou levemente avermelhada e Tiago observou muito interessado a reação da namorada.
- Acredito que não, eu estou só de passagem para ajudar meus amigos... Eles precisam de alguém que possa cozinhar para eles, hehehe.
- Ah, eu teria grande prazer em recebê-los em minha casa para almoçarem comigo. - nessa parte, a velha senhora já lançava olhares cobiçosos a Sirius, que continuava sem camisa.
- Eu tenho certeza que eles vão adorar. - Lílian parecia ter percebido o olhar da velha senhora - Mas agora precisamos ir, temos um andar inteiro ainda para reformar... Com licença.
E sem maiores explicações, ela fechou a porta na cara da velhinha. Os marotos estavam se segurando para não rir. Raffles escolheu esse exato instante para aparecer.
- Ora... se não é minha bela senhora! E então, pensou melhor e vai se tornar minha companheira?
Lílian apenas olhou-o atravessado enquanto Tiago pigarreava.
- Raffles, acho que já discutimos isso antes.
- Certo, agora que a velha tarada já foi embora, podemos voltar ao trabalho... - Sirius observou, sorrindo.
- Exatamente, vocês vão voltar ao trabalho. - Lílian respondeu com um sorriso, um sorriso que deu calafrios nos rapazes - Mas antes, passem as varinhas para cá.
- Mas porque deveríamos... - Remo começou mas foi interrompido pela ruiva, que ergueu a própria varinha bem alto.
- Accio varinhas!
Quatro varinhas voaram para as mãos da garota e antes que os rapazes pudessem começar a reclamar, ela passou por eles em direção à cozinha, que já estava arrumada. Tiago foi atrás dela.
- Lily, você não pode fazer isso, nós.
- E eu com isso? Eu não mandei vocês acharem que eram melhores que as leis do Ministério.
- Lily, nós dois sabemos perfeitamente bem que você não está fazendo isso por causa do Ministério, mesmo porque, se realmente tivessemos feito alguma coisa errada, teríamos recebido algum aviso de lá.
- Então me diga porque estou fazendo isso. - ela perguntou, observando os armários vazios, de costas para ele.
- Porque você se diverte em nos ver à sua mercê? - ele arriscou, aproximando-se perigosamente da namorada - É assim desde Hogwarts; apesar de gostar de mim, você não aceita o fato. Nunca aceitou na verdade.
Ela se virou para ele, notando afinal a proximidade dos dois. Não conseguiu reprimir um calafrio mas ainda teve sangue frio para responder.
- Talvez seja verdade. E o que você quer afzer agora? Discutir a relação?
- Mais tarde, quem sabe... - ele respondeu antes de segurá-la pela cintura e calá-la com um beijo.
Lílian sentiu as pernas fraquejarem. Odiava o poder que Tiago tinha sobre ela, mas nas atuais condições, ela sequer podia discutir. Mas quando percebeu que ele tentava apalpar o bolso da capa onde estavam as varinhas, ela imediatamente voltou a si e se afastou dele.
- Não mesmo, Tiago Potter. Vocês merecem uma lição. Eu só devolvo as varinhas de noite. A propósito, eu vou no mercado comprar alguma coisa ou vocês vão acabar morrendo de fome. Tem uma loja de material de construção no fim da rua do outro lado do parque. Se eu fosse vocês, providenciaria algumas coisas lá para rebocar as paredes e tinta também. Ah, e se preparem, vocês vão ter que ajudar a velhinha tarada também.
Ele ficou parado sem ação enquanto a ruiva saía. Não estava em condições psicológicas de responder. Lílian tinha esse estranho poder sobre ele... Fazer o quê? Fora se apaixonar pela garota mais cabeça dura da face da Terra... Seria mais fácil se gostasse de um trasgo. Só que o trasgo não tinha a mesma graça da sua ruivinha.
Finalmente, quando recobrou a sanidade, ele voltou para a sala, por onde a namorada já passara e onde os outros rapazes o olhavam com certa pena. Realmente, ele era digno de pena. Pobre Tiago Potter... Controlado por uma simples garota (tudo bem que a sua Lily não tinha nada de simples, mas...)! Ele era uma vergonha para os marotos... Ou não, quem sabe? Sirius também tinha seus rolos e Remo devia ter problemas ainda maiores de relacionamento. E Pedro, bem, Pedro não tinha nem um relacionamento para que se pudesse dizer que ele tinha problemas nessa área. Talvez Rabicho fosse o único dos marotos que realmente tinha juízo.
- Ela só vai devolver as varinhas de noite. E o resto da reforma vai ter que ser à moda trouxa. Além de que ela nos deixou à mercê da vizinha.
- Tiago, você tem que dar um jeito nessa sua namorada... A Lily parece uma tirana de vez em quando... - Sirius murmurou enquanto vestia sua camisa - Vamos logo antes que eu deixe de ser bonzinho e acampe no apartamento dela, gritando "todos têm direito a sua varinha, me devolva a minha ou eu roubo a sua!".
- Só falta agora dizer que vai fundar o MSV... - Remo observou enquanto caminhava para a porta.
- MSV? - Pedro perguntou estranhando.
- Movimento dos sem varinha.
- Mas é cada uma que a gente escuta... - Sirius resmungou já na rua.
- Quem tem boca fala o que quer... quem tem ouvidos ouve o que não quer... - Remo respondeu simplesmente.
Eles tinham saído do jardim e já caminhavam despreocupadamente pela rua quando a velhinha de mais cedo os interceptou.
- Olá, queridos... Vocês não querem vir comer alguma coisa? Eu vi sua amiga saindo, ela disse que ia ao mercado porque não tinha comida na casa de vocês. E eu fiz uma torta de frango que vai se estragar se não tiver mais gente para comê-la.
Remo ia responder educadamente que não, mas o estômago de Pedro foi mais rápido. Como num coro, os de Sirius e Tiago se juntaram ao do amigo. Não tinham tomado nem café da manhã ainda e já era quase uma hora da tarde. A velha abriu um sorriso enquanto eles a seguiam resignados.
Quando Lílian chegou, a casa estava estranhamente silenciosa. Ela usou a chave que copiara com magia e observou o lugar. Apesar de tudo, tinha que admitir que os marotos tinham feito um bom trabalho. Nesse instante, Raffles saiu de dentro da parede, causando um leve sobressalto na ruiva. Ele sorriu ao vê-la e fez uma leve inclinação com a cabeça.
- Onde estão os garotos, Raffles?
- A senhora Figg os chamou para almoçar.
- Aquela velhinha se chama Figg? Eu conheci um bruxo com esse sobrenome.
- Ela pertence a uma família bruxa. Mas não tem magia.
- Um aborto?
Raffles confirmou com a cabeça.
- Eu já vi Alvo Dumbledore na casa dela. Conhece ele?
- Ele é diretor em Hogwarts, onde eu estudei. E amigo da família do Tiago. Se não me engano, ele é padrinho do pai de Tiago. Quer dizer que a velhinha tarada é amiga de Dumbledore? Interessante... O mundo é realmente pequeno. Ela provavelmente viu os garotos usarem magia e veio aqui conhecer os irresponsáveis.
- O que a senhorita tem aí? - ele perguntou aproximando-se dela.
Lílian subitamente se lembrou das várias sacolas que carregava e voltou-se para a cozinha, sendo seguida pelo flutuante fantasma.
- Não é muita coisa, eles vão precisar fazer uma verdadeira feira depois. Mas eu comprei algumas panelas e uns lanches também.
- Panelas? - ele perguntou procurando as panelas, sem vê-las.
- Eu diminuí elas no banheiro do mercado para poder trazê-las. Tudo bem que a atendenete me olhou de maneira meio esquisita depois que eu saí, mas isso não é da conta dela.
- Só um instante... Tem alguma coisa de estranha nessa história. Porque foi mesmo que a senhorita confiscou as varinhas dos rapazes? - Raffles perguntou enquanto Lílian fazia o que comprara voltar ao tamanho normal, enchendo a cozinha de coisas.
- Primeiro, me chame de Lílian, esse senhorita é muito impessoal. Segundo, bem... digamos que eu tenha feito isso mais para irritar do que por discordar do que eles fizeram. - ela repondeu, abaixando-se para guardar algumas coisas num armário - Eles tiveram, por sete longos anos, esse passatempo comigo. Gosto deles, amo o Tiago, mas não é por isso que vou deixar de pagar na mesma moeda o que eles faziam com todo mundo em Hogwarts sempre que tenho oportunidade.
- O que eles faziam em Hogwarts? Eu não entendi muito do que eles falaram... apenas que criaram um clube de cavalheiros.
- Eu não acho que os marotos sejam apenas um "clube de cavalheiros"... Mas fique aí enquanto eu arrumo que eu vou lhe contar algumas das histórias deles e depois você vai dizer se eles merecem ou não o que faço...
Quando os quatro marotos voltaram para casa, já passava das quatro horas. Assim que chegaram, notaram o cheiro gostoso que vinha da cozinha e a presença de Raffles junto a Lílian. Notando que, se não quisessem ser envenenados àquela noite, era melhor deixar a ruiva em paz, eles seguiram para o salão de baile.
Eles cobriram o chão de jornais para não manchar o piso, como recomendara o dono da loja em que eles tinham comprado o que iam precisar. Tiago e Remo começaram a rebocar as paredes. Sirius ia atrás, lixando. E Pedro os seguia, passando a primeira mão de tinta.
A noite já caíra há um bom tempo quando Lílian e Raffles entraram no salão. Eles obseravaram os rapazes por alguns instantes, em silêncio. A ruiva estava com a garganta seca de tanto falar e o fantasma tinha um sorriso malicioso no rosto branco.
- Vocês já querem jantar? - ela perguntou, rouca.
Os quatro levantaram a cabeça quase ao mesmo tempo e, num atropelo, largaram tudo no chão e saíram do salão. Estavam morrendo de fome, de novo. A ruiva abriu passagem com um suspiro. Logo ficou sozinha no salão com o fantasma, que agora olhava com atenção o antigo salão.
- Eu dancei muitas valsas nesse lugar. Havia um piano de cauda ali. - ele apontou para um nicho perto do janelão que dava para o jardim - E um enorme espelho cobria toda aquela parede.
- Devia ser muito bonito... - ela respondeu, olhando o lugar pensativamente enquanto tirava a varinha do bolso.
Raffles viu o jornal sumir do chão. As tábuas rachadas apareceram inteiras, enceradas, tal como tinham sido na época da inauguração da casa. Toda a massa de papel se juntou no nicho que ele apontara e um piano negro de cauda apareceu. Lílian abriu a janela para deixar o cheiro de tinta sair enquanto se olhava na parede espelhada diante de si.
- Era assim? - ela perguntou, sorrindo.
O fantasma apenas assentiu com a cabeça. A ruiva abriu ainda mais o sorriso. Tinha simpatizado com o pobre fantasma solitário no final das contas. Não que quisesse ser companheira dele. Apesar dos pesares, gostava de Tiago.
- Uau... Eu pensei que não era para usarmos magia na reforma... - Sirius disse, adentrando o aposento.
- Não se acostume. - Lílian respondeu, aproximando-se do amigo - O primeiro andar vocês vão ter que fazer todo sem magia.
- Poxa, Lily, porque você tem que ser tão má? - Sirius suspirou - Escuta, você não vai vir jantar também?
- Já estou indo. A propósito, seu graveto. - ela estendeu para Sirius a varinha escura do rapaz.
- Às vezes eu me pergunto o que seria de nós se você nos odiasse, Lily... - o rapaz respondeu, rindo - Vamos, antes que o Tiago decida me matar por passar tempo demais com a ruivinha dele.
Lílian também riu e seguiu o amigo. Raffles ficou sozinho, admirando o velho salão, lembrando-se talvez de uma formosa moça que ali valsara pela primeira vez com ele...
