Capitulo III

Na cozinha do Quartel-general da Ordem da Fénix, Dudley não parava de questionar Tonks sobre tudo o que o rodeava, ao que ela respondia divertida a ignorância tão inocente. Lupin preparava um chá e olhava preocupado para Harry, que se sentia o mais deprimido possível (e isso era dose), por estar na antiga casa de Sirius. No entanto, Lupin resolveu não fazer perguntas e deixar Harry absorvido nos seus pensamentos e nostalgia, pois ele próprio ainda chorava silenciosamente a morte do seu querido amigo Sirius. Acabou de fazer o chá e sentou-se à mesa com eles, ao mesmo tempo que agitava a varinha, entregando uma caneca fumegante a cada um. Fez sinal para que Dudley fizesse silêncio.

- Bem, querem contar como foi a audiência?

Dudley começou a falar atrapalhadamente, tentando descrever tudo o que vira ao mesmo tempo, tal era o seu entusiasmo. Harry limitava-se a olhar para o seu chá, pensando se haveria ou não de o beber e dar de caras com uma borra em forma de Cruel. Sim, ele sabia que iria morrer brevemente, mesmo que Voldemort não o matasse, ele não aguentaria muito mais. Muitas vezes pensava em desistir de tudo e tomar uma boa dose de comprimidos para dormir, mas a sua ânsia de vingar a morte dos pais e de Sirius era mais forte. Estes pensamentos foram interrompidos pela voz de Tonks.

- Harry! Então? A pensar na namorada? – Tonks piscou-lhe o olho e ele devolveu-lhe um sorriso amarelo.

- Queres continuar a contar como foi a audiência? – Lupin parecia preocupado. Sabia que Harry estava a sofrer muito, mas não sabia como melhorar a situação. Então, Harry suspirou e começou a contar tudo. Descreveu as mudanças que o Ministério tinha sofrido após o seu ataque por gigantes, relatou a maneira como tinha convencido os juízes de que fora tudo em auto-defesa e, por fim, anunciou que Dudley iria para Hogwarts a pedido de Dumbledore.

- Mas isso é uma óptima notícia, Dud! Dá cá mais Cinco! – exclamou Tonks, estendendo-lhe a mão. Mas logo se arrependeu, pois Dudley tinha a força de um troll e, muitas vezes, a esperteza.

- Esse feiticeiro velhinho perguntou se eu queria viver com a minha tia Marge, que era a única família que me restava, mas na verdade eu preferia morrer do que viver com aquela velha bruxa! Err... desculpem a expressão. E, depois de tudo o que vi, não quero ir embora nunca mais.

Harry pensou que Dudley merecia, realmente, a tia Marge, mas depois pensou que, talvez agora ele deixasse de ser o menino mimado, gordo estúpido, brutamontes presunçoso que sempre fora.

- Onde está o Kreacher?

- Morreu. Passava o tempo a deambular pelas ruas, pois foi essa a ordem que Sirius lhe deu. Um dia estava distraído, a praguejar pela estrada fora, quando foi atropelado.

O dia passou-se lentamente, como o arrastar de um caracol ao sol, e Harry sabia porquê. Era simples, durante toda a tarde esteve na casa de Sirius, rodeado por memórias que o torturavam independentemente da divisão em que se encontrasse. A seguir ao jantar, foi para o quarto de Buckbeak e lá se entreteu, falando com o hipogrifo. Soube-lhe bem, o animal podia ouvir e não podia responder, era como o Muro das Lamentações, mas ainda melhor, pois estava vivo.

Passadas algumas horas na companhia do Hipogrifo, Harry foi para o seu quarto e deitou-se na cama a olhar para o tecto. Sentiu-se triste e sozinho, embora ouvisse os roncos de Dudley mesmo ao seu lado. Pensou que falar com Buckbeak o ajudaria, mas o cenário em que se encontrava não ajudava nada. Queria ser abraçado, confortado. Pensou em Cho e começou a ficar confuso. Ele só queria um pouco de carinho e nem isso ela lhe dera. Então, lembrou-se dos pais. Pegou na fotografia deles, que ainda estava cuidadosamente guardada no malão. O pai acenava-lhe e a mãe atirava-lhe um beijo. Sentiu-se muito pior. Sentiu que nunca tivera carinho nem nunca ia ter. Pousou a moldura numa mesinha ao lado da cama e voltou a deitar-se, desta vez de lado, virado para a parede. Sentiu uma revolta descontrolada a despontar no seu peito e as suas bochechas arderam de fúria. Levantou-se num ápice e atirou com a primeira coisa que lhe veio à mão. Era um livro velho, que voou até ao outro lado do quarto e, depois de embater violentamente na parede, caiu ruidosamente no chão. Foi então que ele viu. O livro abriu-se e as páginas revelaram-lhe um Harry sorridente ao lado dum Ron brincalhão. Continuou a folhear o livro e descobriu que era uma espécie de caderno com fotografias. Os seus pais, Lupin e ele próprio entre outros decoravam as páginas do livro. Começou a pensar donde viera aquele álbum improvisado e, então, abriu-o na primeira página e viu:

"Para nunca me esquecer das coisas boas da vida."

Era a letra de Sirius. Voltou a folhear todo o caderno vezes sem conta e sentiu-se quente por dentro, mas logo esse calor desapareceu quando se apercebeu de que todas as pessoas de quem ele gostava iriam sofrer por causa de Voldemort. Ai, quanto ele o odiava! Fechou subitamente o livro, tão de repente que quase trilhou o nariz, e atirou-o para o chão. Saiu do quarto, não aguentava a pressão. Dirigiu-se à casa de banho e entrou. Olhou afogueado para o vidro e contemplou a cicatriz, então a raiva fez-se tanta que o partiu com um murro. Pegou nos estilhaços com a mão sangrenta e cortou o braço. "É agora", pensou ele. Tinha de acabar com tudo ali, naquele momento. Fez um corte superficial. Tentou mais fundo, mas não conseguiu. O sangue pingava no chão e no lavatório. Fez um corte fundo no ombro, só para ter a certeza que a lâmina estava boa, mas, no momento da verdade, não conseguiu. Odiava-se por isso, odiava-se por ser fraco. Deu um murro no lavatório e alguns dos vidros do espelho cravaram-se no seu punho. Limpou o sangue, concertou o espelho com a varinha e voltou para o seu quarto. Deitou-se na cama e chorou. Chorou até adormecer e encontrar a paz do sono.

No dia seguinte, Harry acordou na cama. Estava tão exausto na noite anterior, que não teve nenhuma crise de sonambulismo e a sua cicatriz parecia adormecida. Olhou para a mão cortada e enrolou-a em ligaduras. "Pelo menos o 'Não devo dizer mentiras' já não se percebe", pensou ele sarcasticamente. Levantou-se confortado com estes pensamentos e vestiu-se. Dirigiu-se até à cozinha, onde já lá estava o primo e Lupin.

- Mesmo a tempo para o almoço! – Lupin usava um chapéu engraçado, normalmente usado por cozinheiros muggles. Apressou-se a servir Dudley e, depois, chamou Harry. Dirigiram-se à sala e falou com uma voz doce e paternal:

- Harry, eu sei que estás a sofrer com tudo isto. Primeiro a morte dos teus pais e anos de convivência com muggles horríveis, que te tratavam como um animal. Depois, a morte dum amigo da escola e a de Sirius, que provavelmente é o que dói mais. É claro que ainda nem mencionei as provações por que passaste. A Pedra Filosofal, a Câmara dos Segredos, o Torneio dos Três Feiticeiros e os mais recentes encontros com Voldemort e os seus Devoradores da Morte. E, agora, a morte dos teus tios e a angústia e o medo que deves sentir ao saber que estás em perigo constante. E é normal que estejas revoltado com tudo isto, mas ser Harry Potter não é nada fácil.

Harry deixou cair uma lágrima, que rapidamente limpou com as costas da mão, não querendo dar parte de fraco. Ele nunca pedira para ser Harry Potter, ele só queria ser insignificante e que o deixassem em paz. Mas Lupin não tinha acabado.

- Com isto tudo só te quero dizer que podes contar comigo para o que precisares. Eu sei que não sou grande coisa, também tenho os meus problemas e sofro muito, mas já sabes, Harry, para ti vou ter sempre um minutinho, nem que seja para falar das coisas mais disparatadas. – Dito isto, dirigiu-se para a cozinha, deixando Harry envolto nos seus pensamentos e na sua dor. "Obrigado", exprimia o seu coração. No entanto, era uma expressão muda, pois o rosto de Harry escondia-se por trás dum véu de lágrimas.