Café com orgulho

- Mas, Professor, então eu não errei na minha afirmativa !

- Ao misturar absintum com helleborus niger, Senhorita Silva, iria comprometer irremediavelmente a poção, pois ambos se anulam e não conseguiria o resultado esperado : muito pelo contrário, iria permitir ao seu "paciente" que ele perdesse completamente a razão, e continuasse a se tornar um lobisomem do mesmo jeito. mês após mês. Algo que não está propriamente no escopo do projeto.

Aos poucos minha cabeça começava a compreender o porquê de tudo aquilo : não, Snape não era sádico - bem... pelo menos não tão completamente quanto eu acreditava até aquele momento - e tudo começava a se alinhar em uma precisão que beirava o infinitesimal : o teste em que era preciso muito dedução e um pouco de ousadia, aliado a um conhecimento preciso dos ingredientes, bem como suas propriedades... e aquele início catastrófico da efetiva questão de meu estágio, que me fez ir a um beco sem saída. Com aquela pequena explanação - aliada a uma leitura nada agradável de umas trezentas páginas em espanhol em menos de duas horas - eu começava a compreender o nível do que tinha me metido, e o ponto exato onde estava parada a pesquisa : era preciso melhorar a fórmula, mas todos os estudos esbarravam no mesmo muro sólido de incompatibilidade entre ingredientes. E foi exatamente o que eu disse a ele, logo em seguida.

- Professor... e se a premissa estiver incorreta ? Não será preciso abandonar um dos ingredientes da fórmula original, e colocar outro ? Já sei... isso já foi tentado também.

- Foi, Senhorita Silva, à exaustão, porém parece o caminho certo. Mas o quadro que nos deparamos agora é um pouco mais tenebroso do que aquele que a Senhorita vislumbra : o uso da poção mata-cão está trazendo às pessoas que o tomam a longo prazo um agravante não esperado : debilidade de memória e de domínio do corpo, próximo a que os trouxas chamam de mal de Alzheimer. É necessário e urgente que descobramos o componente que está gerando essa degeneração no quadro do paciente... sem enlouquecê-lo de vez, e consigamos reverter o quadro, em definitivo.

- O que eu errei naquela fórmula do teste, professor ?

Quase um sorriso... quase. Aquela capacidade de pular de um assunto para outro era a centelha precisa, o ingrediente faltante - e agora que estava presente, tão evidente - na formulação necessária da equipe a trabalhar no projeto. Não podia perder de jeito nenhum aquela estudantezinha maluca, ela era o elo faltante em uma cadeia que não podia falhar.

- Você esqueceu de colocar o absintium... pulou a penúltima linha. Estava desatenta, era uma das poucas coisas claras naquela proposição, e você passou por cima. Como Lupin é extremamente preciso em tudo que faz, mas seu conhecimento é de outra natureza, achei que dentre os cabeças-ocas que tinham ali você era a mais aproveitável para ser integrada ao projeto.

Se aquilo era um elogio ou não, era melhor eu me calar : afinal, já era uma e meia da tarde, meu estômago já tinha roncado umas tres vezes e eu tinha aula dali a meia hora... mal daria tempo de engolir qualquer coisa ali na escola mesmo e voltar correndo pra aula.

- Consultei sua grade de horários, senhorita Silva, e vi que hoje somente tem aulas das 14 às 16 horas. Eu a aguardarei então após as 16 horas para prosseguirmos.

- Prosseguir !

- Sim, prosseguir. Verá que é bem mais agradável trabalhar quando não há barulho nos laboratórios próximos.

- E os laboratórios fecham a que horas ?

- As 21 horas.

- Então, vou ficar aqui das 16 às 21 horas.

- No mínimo.

Eu não sabia se voava no pescoço dele, ou se começava a gritar de desespero : seria todo dia assim, aquela marcação cerrada ? E que horas, por Merlin, eu iria estudar as minhas outras matérias ? Decidamente, aquele homem era louco... e eu ia pelo mesmo caminho, em um único dia - ou melhor, MEIO dia - de estágio... quando uma luz se acendeu com a voz alegre de Lupin se fazendo ouvir em alto e bom som naquele ambiente sombrio :

- Olá, Sev, vamos almoçar? Trouxe aquele macarrão que você gosta e ...Oh... bom dia, Senhorita Silva. Pensei que Severus já tivesse dispensado a Senhorita.

- Eu estava fazendo isso nesse momento, Lupin, para que ela possa ir às próprias aulas, e acertando o horário de retorno.

- Bem, então, com licença, professores... volto mais tarde.

Se não cair de exaustão no meio do caminho.

Se não for atropelada por uma coruja em vôo rasante, que me confunda com um poste.

Se conseguir achar o caminho de volta até essa tumba que deve ter pertencido aos astrólogos de Napoleão.

E com pensamentos tão agradáveis eu subi voando, percebi que não ia dar tempo de pegar qualquer coisa na cantina, subi e desci escadas quilométricas voando e entrei para minha aula voando ... para descobrir, querendo voar para longe, que só tinha uma carteira vazia do lado do loiro Malaio.

Se eu achava que já tinha sido torturada o suficiente, eu ainda não tinha tido uma aula junto com Draco Malfoy : o loirinho era mais que antipático, era insuportável : seu jeito que "eu sou o bom" só perdia pro Snape - com quem eu achava eu já começava a achar uma ligeira semelhança, em meu delírio insone -, sua folga de se espalhar na sua carteira - e de quebra em quase metade de minha também - era enorme, mas uma coisa eu tinha de dar a mão à palmatória : quando eu me acomodei na carteira, escorregando e já estava quase dormindo, ele me cutucou e disse : vai dormir em outro lugar !

Depois teve um intervalo na aula, e eu já ia sair correndo em direção à cantina para ver se conseguia diminuir a sinfonia do meu estômago, quando topei com o Lupin. Não sei se minha cara era de favelada morta de fome ou o quê, só sei que ele me convidou para tomar um café, que eu aceitei sem nem pensar : se eu não tomasse café, eu ia desmontar rapidinho.

Foi então que fui "apresentada" a outra instituição da escola : o café dos professores. Eu não sabia que no andar de cima onde tínhamos nossas aulas tinha um lugarzinho especial onde era servido café para os estudantes - que o pagavam - e para os professores - que era de graça -, mas era destinado somente ao pessoal da pós-graduação : Lupin gentilmente me pegou um café, fez questão de pagar e ficou papeando suavemente comigo, quando por algum motivo se empertigou e ficou olhando fixamente em algum ponto atrás de mim. Pensei que era meu amado mestre Snape que estava ali atrás, dei um jeito e me virei um tiquinho para ver uma cena que valeu o dia : o dragãozinho malaio pálido como uma múmia, olhando fixamente para nós... e já ia virar nos pés, quando Lupin o chamou para junto de nós (para meu ódio eterno), e nos apresentou :

- Senhorita Maria das Graças da Silva, este é Draco Malfoy, o outro orientando do professor Snape. Draco Malfoy, esta é Maria das Graças da Silva, que foi selecionada e estará no projeto B-712 comigo e com o professor Snape. Mas ah, como eu sou disperso : você já sabia, não ? O Sev já tinha te contado sobre isso na sua orientação de ontem pela manhã...mais um café, senhorita Silva ?

A voz tinha um quê de dureza que eu ainda não tinha ouvido em Remus, algo que não admitia réplicas : ele tinha dito implicitamente para o babaquinha "olha, cara, se toca que essa aqui é melhor que você" e na mesma frase "eu sei que foi você que fofocou sobre a gente ontem". Mas, peraí... pro Sev ? Como assim, Sev ??? Que intimidade era aquela ? Será que eles eram amigos ou... mais que amigos ? Mas essa linha de pensamento foi interrompida pela resposta do meu amiguinho malaio :

- Estamos na mesma classe, professor Lupin, já tive o ...prazer de conhecê-la e observar seus métodos de estudo.E sim, o meu orientador já havia comentado comigo sobre a escolha dele e do diretor para a bolsista mais... adequada aos propósitos do projeto. Meus parabéns, Maria...

Não sei se era o sono, a raiva, o tanto de informação que eu tinha na cabeça que doía bastante, apesar de ter melhorado com o café... mas eu ainda pontuei para mim mesma a ênfase que ele colocou em certas palavras: mesmo que estivesse tendo de fazer a cabeça pegar no tranco, eu percebi que ali tinha mais do que parecia... ou do que deveria ter. E Lupin ia falar algo quando cortei abruptamente, nem eu mesma sabia bem porquê naquele momento :

- Obrigadíssima, Malfoy, você realmente é um doce de criatura ! Seus comentários gentis, seu interesse profundo e tão genuíno é ótimo para minha moral, apesar de toda a dificuldade de ser apresentada a tanta coisa nova em tão pouco tempo, é realmente uma revolução e tanto na vida de uma brasileirinha. Agora, me diga, e sua tese, como vão as plantinhas malaias ? Precisa me mostrar algumas delas, qualquer dia desses !

Acho que errei de tom... ou fui enfática demais nas palavras erradas (ou nas certas...) só sei que aconteceram um monte de coisas esquisitas ao mesmo tempo : conforme eu soltava todas aquelas abobrinhas,o Malfoy ficou mais pálido ainda do que antes, depois ficou vermelho quando eu falei "plantinhas malaias"; o ambiente, que até aquele momento ainda era pontuado com algumas conversinhas educadas, foi ficando mortalmente silencioso, até que só se ouvia a minha voz - que estava grave e baixa por causa do ódio que eu sentia daquele boçal - reveberando quase austera pelo corredor; aí eu arrisquei olhar para o Lupin, para encontrar um olhar triunfante em uma face aberta em um sorriso quase sarcástico ...olhando, assim como Draco, para algo atrás de mim. Virei-me e só vi as flutuantes vestes negras do professor Snape afastando-se pelo corredor, seguidas da frase arrastada de Malfoy :

- Quando quiser, Maria ... As plantinhas malaias estarão te esperando...