Filha do Vento, Grávida da Tempestade
- Sente-se, Senhorita Silva. Acho que é necessário esclarecer algumas coisas antes de prosseguirmos.
- Pois não, professor Snape.
(Até nove da noite... vai ser um saco aguentar isso... deixa eu fazer uma cara de interessada e inteligente, quem sabe eu relaxe e a dor de cabeça passe.)
- Talvez por estar chegando agora nesta instituição não tenha informações ou consciência do nível real do projeto em que se engajou : estamos buscando a cura dos lobisomens eventualmente acometidos de mal de alzheimer pela ingestão da poção mata-cão.
(Ai, quanta novidade ! Deve estar gagá, mesmo... Está vendo se acha a falha numa poção, aliás, que ele mesmo fez ... como é brilhante meu orientador !)
- Que eu mesmo fiz... para melhorar a qualidade de vida destes. E atualmente encontro-me pessoalmente motivado a prosseguir nessa pesquisa, apesar de toda a má-vontade do Ministério em que ela prossiga e seja coroada de sucesso.
(Má vontade do Ministério ? Mas é a empáfia personificada, mesmo... como se o Ministério se interessasse pelas adoradas pesquisas dele... ok, ok, eles se interessam, mas não é a única coisa acontecendo na face da Terra, também! ) E sem me dar conta, comecei a pressionar as minhas têmporas, para ver se a dor de cabeça diminuía... e o mau humor também
- A má-vontade a que me refiro no Ministério, Senhorita Silva, é com os não-humanos, como os lobisomens : pouco se lhes dá se eles tem uma qualidade de vida agradável, ou mesmo se tenham qualquer possibilidade de vida : o que eles gostariam mesmo é que eles nem tivessem vida, que o erro de terem sido criados nunca estivesse visível para ninguém. A diferença constrange, nos esfrega no rosto a dura realidade de seres imperfeitos que somos todos, e para muitos do Ministério a simples idéia da existência de seres diferentes é uma abominação a ser punida violentamente. E eu luto para que eles vivam,e vivam bem... luto solitariamente, ou melhor, com um único mentor do projeto B-712 que sofre todas as influências negativas possíveis, desde formulários especialmente desenhados para ele, todos altamente complexos e ineficazes, até ordens de remessa que se perdem, inexplicavelmente, antes de serem cumpridas.
(Acho que o velhote está paranóico... ai, minha cabeça)
- Apesar de parecer uma paranóia, um complexo e sinistro complô contra a minha pessoa, Senhorita Silva, afirmo-lhe que é a mais cristalina verdade. Hoje eu observei que conheceu oficialmente meu outro orientado, Draco Malfoy, através do professor Lupin. E se conseguiu parar para pensar no fato, deve ter se perguntado porquê ele não esta´ aqui conosco, estou certo ?
(Acho que a fome, dor de cabeça, cansaço e falta de sono me fazem transparente...o homem está adivinhando o que eu penso!)
- Sim, Professor, está.
(Como sempre... é um cretino, mas é um cretino inteligente e esperto.)
- O Senhor Malfoy é filho de um político, senhorita Silva... compreende ?
(Posso estar meio dormindo, professor, mas ainda estou sabendo somar dois mais dois. )
- Uma pena que seu orientando preferido não possa assumir o posto, professor Snape.
- E uma pena maior ainda que a única outra pessoa que conseguiu compreender a linha de raciocínio necessária a assumí-lo fique criando situações constrangedoras em bares e cafés da Universidade, Senhorita Silva. O que nos leva à próxima afirmativa : OU você passa a comportar-se como uma mulher decente, ou está fora do projeto.
- Decente ? DECENTE ? O que eu fiz de indecente, por Merlin ???
Não saberia dizer se seria só o café que eu tinha tomado, a falta de algo sólido me queimando o estômago, aquela dor de cabeça latejando nas minhas têmporas ou aquela ladainha enfadonha que eu estava escutando, ou a última barbaridade daquele zeloso guardião dos bons costumes para que eu nem ao menos falasse socialmente com o "coleguinha" dele... só sei que eu fiquei tão possessa de raiva naquele momento, que até senti vontade de vomitar... e ia soltar um xingamento quando ele levantou a mão, como que me parando e me perguntou de chofre:
- Qual o seu interesse no professor Lupin, Senhorita Silva ?
(Mas é um babaca, mesmo, esse boçal! Agora não quer que nem eu nem o colega de trabalho namore, pra ter sucesso no projeto dele ? Mas é muito egoísmo mesmo...guardião dos bons costumes, tradição, família e propriedade, nunca deve ter transado na vida ! Mas eu não posso perder a calma... nem agora, nem nunca, não com esse aí ! Mal amado...)
- Não acho que isso lhe diga respeito, professor Snape !
- Engano, Senhorita : tudo que seja relacionado com a pessoa com quem vivo há quatro anos me diz respeito...
Perdi o ar... literalmente, ali, perdi o ar, senti como se todo o sangue de meu corpo tivesse ido para meu rosto, e o resto do corpo tivesse ficado dormente, e inerte...em um único segundo todo o universo havia dado uma volta de 180 graus, virado de pernas para o ar, sacudido e soltado tudo que não estivesse firmemente preso, e envolta em um turbilhão de pensamentos me senti escorregando da cadeira, e só a voz enérgica do professor não me deixou desmaiar... enérgica sim, mas sutil, veludo sibilante em palavras de ouro que deram o golpe final na minha sanidade :
- Tudo, absolutamente TUDO que diz respeito à pessoa para quem é realmente direcionado o projeto B-712 me diz respeito também, Senhorita Silva... e preciso de toda a ajuda possível, até de uma estudante - bastante inconveniente e sem nenhum senso de respeito, concordo - que saiba pensar. Estive conversando com seu professor Astolfo Guimarães, ele me contou sobre si e seu projeto de tese, sua linha de pesquisa juntamente com cristais, e esse formato será muito útil na presente fase do projeto. Deveria ter me dito que sua tese era sobre a poção do morto-vivo e suas implicações quando inseridos elementos cristalinos, Senhorita Silva.
Remus... um lobisomem ? Estranhamente tudo se encaixou e fez sentido( mesmo eu estivesse me sentindo como se o mundo tivesse parado de girar e eu continuado, sendo jogada para fora da órbita terrestre e tentasse voltar ao meu mundinho que nem existia ), e eu mal consegui articular uma frase quase desconexa :
- Eu... eu... desculpe.
- Preciso de uma cópia dela, para amanhã.
- Hã ?
- Sua tese. Uma cópia. Amanhã.
- Sim.
- Agora vá, preciso conversar com Remus sobre a condução do projeto, agora que teremos com mais constância um elemento a mais, sempre presente em nosso meio.
Ele escolhia as palavras mais contundentes, e eu queria que o chão se abrisse, e eu nunca mais achasse o caminho de volta... queria mesmo era sair correndo e gritando dali, e o cara me falando calmamente "você está dando em cima do meu namorado lobisomem " como se fosse apenas uma coisa a mais do famigerado projeto.
- Professor,eu... eu... não sabia, eu...
- Eu sei.
- Eu não...nunca... não é isso que está pensando.
- Tome - disse ele esticando-me uma poção azul.
- Hein ?
- Sua dor de cabeça. Beba logo e saia. Não quero que desmaie no meu laboratório, e me dê mais trabalho ainda. E leve os livros que ainda não leu, precisamos que os conheça muito bem amanhã pela manhã. Está dispensada, Senhorita Silva.
E de um único trago engoli aquilo, junto com minha dor e ignorância, tentando digerir aquele dia indigesto... para depois de vários minutos percorrendo o corredor lembrar-me que a poção da loucura era exatamente no mesmo tom de azul.
