Similia similibus curentur
Pesadas como o chumbo que me ia na alma, minha pernas quase se recusavam a ir em direção ao laboratório do Snape naquela manhã chuvosa. Molhada, nervosa, chateada, sem ânimo nem para fazer um simples feitiço Siccare eu ia andando muito devagar, a cada passo dado pensava mais que seriamente em virar nos pés e sair correndo, entrar na primeira estação bruxa que tivesse uma chave de portal pro Brasil e voltar pra minha amada Minas Gerais, me esconder em uma caverninha cheia de cristais de quartzo rosa e fechar a abertura da caverna com um feitiço Lavigne que nem o Dumbledore conseguiria desfazer... tudo pra não ver a cara do Snape, nesse dia.
Ou - pior ainda - do Lupin.
Como, me diga você, COMO eu ia encarar o Lupin ? Ele devia ter morrido de rir - junto com o Snape - da minha "jogada de charme" pro lado dele, o jeito que eu peguei o café da mão dele toda melosa e sorridente... ai, que vergonha !
Eu tinha passado a noite inteira pensando ( mais calma, concordo, afinal a poçãozinha azul do Snape era "da boa" : se era pra enlouquecer, então eu já estava pra lá do fim do mundo antes de tomar, porque achei que finalmente minha cabeça pegou no tranco e conseguiu juntar sozinha as pontas soltas de tudo e decidir) : eu iria terminar esse estágio - sem ele terminar comigo antes - ou não me chamaria mais Maria das Graças da Silva. E eu não estava com nem um pouquinho de vontade de ficar tirando documentação nova com outro nome, nem fazer outra pós-graduação só por causa de um nome trocado, Snape e seu namoradinho lobisomem que me aguentassem por perto.
Mas nem esse pensamento forte, nem o que eu suspeitava que eram os restinhos do efeito da poção azul do Snape deixou-me menos apreensiva com o clima que eu esperava encontrar naquele laboratório : e entre ressabiada e comedida continuei com passos lentos pelo longo corredor, ressoando minha (incômoda?) presença cada vez mais afinada ao clima dos trovões, que prosseguiam ferindo o céu lá fora. Se meu estado de espírito era tão evidentemente tempestuoso eu não sabia, mas ao entrar naquela sala (abrindo com um pouco mais de força a porta, concordo) e receber um olhar quase assustado do loirinho malaio - aliás, todo debruçado sobre o Snape em sua bancada - me dei conta que eu deveria estar a própria acepção trouxa do que seria uma bruxa muito, muito má.
E me deliciei com isso.
Com essa nova visão de mim mesma (badgirl, oh-ho!) eu dei um bom dia superior e meio soturno à dupla, e me acomodei no banquinho desconfortável. Espalhando livros e a cópia da minha tese pelo que tinha de espaço livre na bancada, discretamente ouvia o Snape retornar a falar sobre a tal tese do Dragãozinho pálido : eu bem que tentei, eu JURO que tentei... mas não teve jeito de não ficar ligadíssima ouvindo o que o Snape falava pro Draco. E não DEU pra não ficar exultante de felicidade ao descobrir que eu não era a única a receber as "duras" do Snape: o cara podia ser uma fera, mas pelo menos era uma fera justa. Do mesmo jeito que me arrasava, ferrava igualmente o loirinho, e isso me deu uma alegria que quase me fez esquecer do dia horroroso que estava lá fora (e dentro de mim, até aquele momento também).
Ok, ok, concordo que com o Draco ele parecia mais afável, mas ainda assim dava para entender que as conclusões dele eram insípidas - palavras dele ! -, e precisava refazer novamente aquele pedaço "inconsistente" (amei essa, amei mesmo!), e sem mais papo, dispensou o loirinho, que saiu pisando duro fazendo de conta que eu não estava ali.
- Sua tese ?
- Aqui está, professor.
Entreguei rapidinho e voltei a sentar quietinha na bancada, abrindo o livro 3 de "Poções muy potentes" e começando a fazer algumas anotações, concentrando-me de tal maneira que nem percebi quando ele se levantou e parou à minha frente, vendo o que eu escrevia.
- Porquê Aconitum ?
- Hein ?
- Porquê você está considerando Albus Aconitum Anthora, e não Albus Aconitum Napellus, que como todo mundo sensato sabe, é o mais indicado ?
Buscando uma resposta, demorei olhando nos olhos dele. Negros. Profundos... sem convite nem pressa, mergulhei sem perceber naqueles poços sem fundo e ali permaneci, e em algum momento respondi com voz rouca sem saber como :
- Wolfsbane... Albus Aconitum Anthora é para o sistema nervoso.
- Napellus também.
- Mas não atinge o coração. Mesmo as doses minuciosas podem ser mortais.
- Não queremos nosso paciente insano, Senhorita, mas precisamos que ele continue vivo. Consegue levar em consideração pelo menos isso em suas conjecturas ?
- "O que não nos mata, nos torna mais fortes" - Não, não me perguntem porquê eu falei aquela bobagem, naquela hora : eu estava vendo um professor Snape que eu não conhecia : olhar hipnótico da fera elegante e precisa prestes a abocanhar sua presa estática e indefesa, aguardando apenas que ela se rendesse rapidamente para que ele nem necessidade de esforço físico tivesse de fazer para matá-la : o olhar, apenas o olhar... e a vítima tinha se rendido, incondicionalmente. E morrido de paixão.
- Consegui uma vida digna para os acometidos de licantropismo, Senhorita Silva. E isso através de estudos consistentes, e não de idéias tiradas de um filósofo trouxa qualquer.
- Nietzsche não é um qualquer, Professor Snape. E não sei se considero "uma vida digna" ser encaminhado à demência justamente por usar uma poção que teoricamente deveria dar "uma vida digna".
- E é exclusivamente para isso que está aqui, Senhorita Silva. Só para isso, não para admirar meus olhos enquanto pergunto o porquê de suas escolhas em sua tese, ou porque divaga em suas anotações, buscando caminhos inexequíveis. Apenas como exercício, vamos avançar um pouco nisso, Senhorita Silva - e à medida que a voz dele ficava mais e mais aveludada, era quase palpável que o território daquela conversa tinha virado areia movediça : era melhor eu ficar quieta, não arriscar, ficar imóvel em minhas parcas convicções ou afundaria inexoravelmente e não voltaria mais à superfície. Me perderia para sempre ali, como já estava perdida dentro do seu olhar; infelizmente, eu já tinha aprendido nesse pouco tempo de convívio que com o professor Severus Snape não se joga se não se tem toda certeza de ganhar. E ainda assim sempre é um jogo muito perigoso.
- Vejamos se eu entendi seu pressuposto : ( e ele não evitou nem minimizou todo seu escárnio nesse comentário, enquanto seus olhos brilhavam ferinamente ) Então você supõe que os efeitos nocivos da junção da mata-cão com a morto-vivo pode ser suplantados por um estágio de letargia causado por envenenamento, próximo da morte? Similia similibus curentur, é isso que quer dizer, que veneno suplanta veneno ? Perfeito, Senhorita, mas tem apenas um problema nessa sua teoria : como um humano sobreviveria a isso ?
- Não... não sei, professor.
- É. Evidentemente não sabe.
Silêncio... e o brilho - antes intenso e vívido - foi se apagando aos poucos daquele olhar, me expulsando de dentro dele de volta ao mundo dos mortais, com uma ordem imperiosa de sua boca crispada :
- Herbologia de Plantas Venenosas, terceira estante ! Não é o momento de reter-se no que conhece, é o momento de buscar o novo, o inusitado, o inesperado. Apenas, por favor, não mate seu paciente com suas idéias antes que elas funcionem, mesmo que sejam bonitinhas.
Respirei fundo e abaixei a cabeça : não tinha como argumentar com aquilo, realmente era a minha grande dúvida : como fazer aquela minha idéia funcionar ? Teoricamente era factível, mas eu não ousaria experimentar fazer a tal junção das poções. Não era boa o suficiente para isso, e naquele momento percebi, muito triste, que nem a pessoa considerada o melhor do mundo sabia como fazer isso. Faltava algo, e isso deixava a ambos muito frustrados. E fui buscar o tal livro.
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- Professor ?
- Sim, Senhorita Silva.
- E se a resposta não estiver nas plantas ?
- Explicite.
- E se buscamos a resposta em plantas, quando a resposta estaria em um elemento estático ?
- Explicite de vez, Senhorita Silva, não tenho tempo a perder com suas conjecturas parciais !
- Pedras. Cristais, para ser exata.
- Senhorita Silva - e a voz baixa e sibilante foi o prenúncio do que viria em seguida - acabei de dizer que abandone o que não funcionou. Mas parece que sua capacidade mental não consegue apreender o que se fala, quando se utilizam duas frases. Então vou falar novamente, de um jeito que você entenda : Um : Esqueça o passado, sua tese é impraticável. Dois : Estude do jeito certo, não empiricamente. Tres : Faça uma pesquisa coerente, que talvez tenha um resultado melhor que seus escritos anteriores ao invés de ficar gastando o tempo de seu orientador com idéias disparatadas.
Dessa vez ele percebeu que tinha algo diferente em mim : eu estava quieta, mas estava convicta, e isso o instigava mais e mais.
- Por Merlin, mulher, ouviu ao menos uma palavra do que eu disse ?
- Sim, Professor, ouvi todas. Apenas...
- Apenas...
- Acho que não aprova porque nunca foi tentado. Exatamente como sua poção, quando foi criada.
- Então, Senhorita Espertinha-Genial-que-criou-uma-tese-fantástica-em-um-dia-de-estudos, porquê funcionaria ?
- Porque os cristais estruturam a poção, e a estabilizam ! É só química, Professor !
- Inferno Sangrento ! E como você supõe que vá conseguir cristais com essa estrutura especial ? O que propõe, Senhorita Silva, é que a poção funcione como se fosse algo vivo, alternando estados e estabilizando-se quando necessário... acha realmente isso possível, com a simples adição de cristais ?
- Não sei, Professor.
- Não, não sabe, Senhorita Silva...
Mas pelo menos tenta saber. O que já é mais que todos os malditos estudantes dessa escola inteira, durante todo esse tempo, pensou Snape.
- Obrigado por hoje, nos vemos amanhã.
- Mas... são só onze horas !
- Obrigado Senhorita Silva, eu ainda sei ler horas sem auxílio dos meus orientandos.
- Não posso ficar mais ?
- Pesquisa consistente, Senhorita Silva, é sedimentar conhecimentos antes de concluir. Até amanhã.
Cheque-Mate. Outra vez.
- Até, Professor Snape.
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Siccare - Feitiço de secar, by Lilibeth.
Lavigne - Feitiço de avalanche, by Lilibeth.
Similia similibus curentur - Semelhante cura semelhante, a máxima da Homeopatia,proposta por Samuel Hahnemann, médico, químico e pesquisador germânico.
