Em menos de um mês uma reviravolta aconteceu. Hilde e eu vendemos o ferro velho e eu consegui um emprego que me permitisse trabalhar em casa. Programador de sistemas de segurança para empresas. E se eu precisasse aparecer fisicamente em uma dessas empresas para as quais trabalhava, Hilde ia no meu lugar como minha representante legal.
Quase não saía da casa para a qual havíamos nos mudado, juntos, no subúrbio de L2. Para os vizinhos, eu era apenas um jovem tímido que não gostava de sair muito, casado com uma jovem enfermeira grávida de cinco meses. Isso mesmo, criamos uma história para cobrir o fato de que daqui a alguns meses haveria uma criança na casa.
Hilde simplesmente usava uma barriga falsa por debaixo de seu uniforme e dizia a todo mundo que o seu marido, ou seja, eu, era um homem muito retraído e que não era de sair muito. Claro que sabíamos que se eu não desse as caras na vizinhança isso levantaria ainda mais suspeitas, por isso eu fiquei muito feliz quando L2 entrou no "inverno", que era quando os sistemas de aquecimento eram reduzidos à metade, deixando a colônia em uma temperatura constante em torno de dez graus. Algo suportável no espaço se você usasse bastante casaco, e o excesso de roupas escondia a minha barriga e me permitia dar as caras algumas vezes na rua.
Durante o tempo de adaptação na minha nova vida, eu pesquisei pela internet tudo que pude sobre gravidez, e fucei um pouco no sistema de dados do velho doutor G, que eu tinha surrupiado do laboratório lacrado dele depois que recebi a notícia de que iria ser… pai. Descobri que G tinha tudo planejado, esperando que pudesse concluir a experiência quando a guerra terminasse. Agora, o porquê de ele ter feito isso comigo, os arquivos não diziam. De qualquer modo, ele alterou o meu dna para poder reconhecer e aceitar o útero que ele implantou em mim. Alterou meu corpo para aceitar melhor a progesterona que esse útero produziria, mas de modo que o hormônio não se sobrepusesse à testosterona. De modo que ela sempre ficava a níveis mínimos até o dia em que eu estivesse no meu "dia fértil". Isso explica o fato de que uma vez por mês mais ou menos eu tinha umas certas variações de humor. Ficava melancólico e abatido. Como naquele dia em que Heero e eu… e eu achei que era a bebida… Também descobri que as dores que eu senti no abdômen nos primeiros meses era o útero remanejando os meus órgãos para poder comportar o embrião que cresceria ali. E que daqui para frente eu teria uma gravidez como a de toda mulher normal, ao menos eu esperava isso, exceto pelo parto. Afinal, entrar foi fácil… sair seria outra história.
O parto teria que ser cesariana, e no meu caso, teria que ser em casa. E a pobre Hilde estava enfiando a cara nos livros, tentando remanejar seus horários o máximo possível no hospital para poder ser enfermeira da sala de partos, para poder se preparar para esse dia. Acho que ela está mais nervosa do que eu, e eu não a culpo. Minha vida, a vida do bebê, está nas mãos dela. E ao mesmo tempo em que ela está determinada a dar o seu melhor, ela está assustada em falhar. Mas qualquer que seja o resultado disso, eu sempre serei grato a ela por estar ao meu lado.
Levantei da cadeira onde eu estava sentado à pelo menos duas horas, bolando um difícil programa de proteção aos sistemas internos de uma empresa de software, quando senti o peso da criança sobre a minha bexiga. Junto com a dor nas costelas e nos pés, isso estava se tornando um fator normal à medida que a gravidez ia evoluindo. Fui rapidamente ao banheiro e fiz as minhas necessidades pela enésima vez desde que acordei. Talvez fosse hora de dar um intervalo no trabalho e comer alguma coisa.
Entrei na cozinha e fui em direção à geladeira, pronto para pegar meu estimado amendoim e calda de chocolate, quando vi um recado colado na porta.
"Duo, pare de comer porcarias senão no lugar das cadeiras você vai ter um sofá. Sem contar que o sangue que eu levei para ser examinado apontou que a sua glicose está acima do nível permitido. Portando, bani chocolates e amendoins da geladeira. Afinal, além de hiperglicemia você também quer arrumar uma hipertensão? Não é bom para o bebê. Amor, Hilde."
Pequena tirana nazista. Tirou toda a minha diversão. Abri a porta da geladeira e grunhi diante da dieta saudável que me esperava lá dentro.
-Eu não acredito nisso! – resmunguei enquanto puxava um sanduíche de pão light, com verduras e vegetais e carne branca. –Ela quer é nos matar se comermos essa porcaria, não é? – protestei como uma criança, depositando uma mão sobre a minha barriga e a acariciando inconscientemente. Era um hábito que eu havia criado no último mês, depois de ter me apegado com todas as minhas forças a essa criança.
Afinal, você não pode ter uma vida crescendo dentro de você e não se apaixonar por ela. Sei que existem mulheres que às vezes rejeitam os filhos antes mesmo de eles nascerem, mas para alguém que não teve uma família a vida inteira, ter uma crescendo dentro de si… é difícil não amar esse bebê e… Droga! Estou ficando emotivo de novo. Malditos hormônios!
-Bem… ainda bem que a tia Hilde não sabe do estoque de doce de leite que eu tenho dentro do armário, não é bebê? – sim, eu chamava o meu filho de bebê, porque eu não fazia a mínima idéia de qual era o sexo dele. Não podia simplesmente aparecer no hospital e pedir por um ultra-som, assim como Hilde não podia trazer um para casa.E essa questão de um exame mais visual da criança sempre gerava grandes discussões.
Hilde dizia que apenas por testes sanguíneos e de toque não poderia ficar sabendo de muita coisa, e que a gente precisava de algo mais visual. Porém eu não poderia sair com essa barriga por aí… e encarar um médico estava fora de cogitação.
Uma vez ela sugeriu que eu procurasse Sally, que nos tempos de guerra sempre nos ajudou muito. Mas Sally tinha contato com Wufei, que tinha com Quatre e Trowa, e se ela ficasse sabendo, eles saberiam, e se eles ficassem sabendo, Heero saberia. E Heero pela última vez que eu soube dele, estava feliz com a sua esposa e a recém descoberta da gravidez dela. O mundo estava exultante diante do primeiro herdeiro dos Peacecraft-Yuy.
Como será que o mundo reagiria se soubesse que havia outro Yuy em L2? Melhor nem pensar nisso. Mas voltando a Sally, bem, desde que eu descobri sobre a gravidez eu… cortei o contato com todo mundo. Quero dizer, da última vez em que eu mandei um e-mail pra Quatre, disse a ele que tinha vendido o ferro velho e que com o dinheiro eu comecei uma viagem de exploração pela Terra, querendo conhecer novos lugares e pessoas. E o fato de eles pensarem que eu nunca ficava mais de uma semana em um ponto só, me tornaria uma pessoa de difícil acesso.
Para melhorar a minha cobertura, a casa que compramos está no nome de Hilde, e quando a criança nascesse, passaríamos para o nome dela. Assim, ficava difícil me achar se eles desconfiassem que eu ainda estava em L2. Quanto a Heero, os e-mails escassos que mandava para ele, se tornaram inexistentes desde que fiquei sabendo sobre a gravidez. E creio que ele nem deve estar preocupado em saber que rumo tomou o melhor amigo, se ele ainda me considera assim, ou se eu estou vivo ou morto. Talvez Quatre ainda o mantenha informado sobre os meus poucos contatos.
Caminhei pela cozinha a procura do meu esconderijo secreto de supérfluos. Eu não deixaria Hilde me matar com essas porcarias saudáveis dela. Abri o armário que tinha embaixo da pia e me ajoelhei no chão para poder pegar o doce que escondia atrás dos condimentos. Quando tateei o local, vi que a minha caixa sempre bem guardada não estava lá.
-Pode esquecer. – levei um susto ao ouvir a voz e cai sentado no chão, olhando para Hilde que estava encostada no batente da porta da cozinha, com os braços cruzados sobre a barriga falsa, e um sorriso divertido no rosto.
-Esquecer o quê? – perguntei inocente, piscando os meus olhos para parecer totalmente sem culpa, pois eu sabia que ela sabia o que eu estava procurando.
-Os doces, querido, os doces. Eu bani todos dessa casa. – mais que depressa eu levantei, ou ao menos tentei. Não é fácil ser ágil quando parece que você engoliu um melão inteiro. Como ela teve a coragem de sumir com os meus amados doces?
-Hilde! – gritei, já sentindo o meu temperamento mudar. Malditos hormônios.
-Não, Duo. Se você quer continuar com isso, se você quer que eu seja a sua médica… - o tom dela estava extremamente sério e a minha raiva sumiu subitamente. -… você vai ter que me obedecer. – soltei um suspiro e vi que tinha acabado de perder um argumento. Catei aquela porcaria de sanduíche light e voltei para a sala, passando emburrando por Hilde e ouvindo ela soltar uma risadinha. Se eu ainda estivesse na minha velha forma, eu juro que ela pagaria por isso dolorosamente.
Hilde POV
Não pude segurar a risadinha diante do bico que Duo estava fazendo por causa de um doce. Mas eu também sabia que tinha que ser dura com ele. A glicose dele estava subindo muito e isso não era bom. Tivemos que entrar em uma dieta de doces bruscamente. Agora tudo é à base de adoçante e nada mais de guloseimas pela casa.
-Tire esse bico do rosto Duo, você sabe que eu faço isso para o seu próprio bem. – caminhei até ele e sentei ao seu lado no sofá, o observando atentamente. Duo parecia muito mais abatido e cansado do que gostaria de demonstrar, e eu sabia que havia muito mais coisas lá do que apenas o efeito dos hormônios em seu corpo. E essa coisa se chamava Heero.
Sim, ele havia me contado quem era o outro pai do filho dele. E eu confesso que fiquei extremamente surpresa em saber quais foram às condições para a concepção dessa criança. Mas ao mesmo tempo não fiquei surpresa diante dos sentimentos confusos que ele tinha em relação ao japonês. Sabe, eu já cheguei a me sentir atraída por Duo uma vez, mas percebi que não teria chances cada vez que o via com Heero. Mesmo que aos olhos de todos eles eram amigos, eu conseguia ver que ao menos para Duo, havia algo mais além de amizade no relacionamento deles. Porém, ninguém, nem mesmo o Duo, conseguia perceber isso. E parece que essa criança despertou nele pensamentos que antes estavam adormecidos, sentimentos latentes que só precisavam de um motivo para surgir em seu coração. E por isso eu tinha que me preocupar. Um Duo depressivo, no estado em que estava, não era nada bom.
-Hei! – coloquei uma mão sobre o ombro dele para o tirar de qualquer lembrança que ele pudesse estar tendo no momento, pois ele tinha parado de resmungar e ficado muito quieto. –Uma moeda pelos seus pensamentos. – tentei confortá-lo com um sorriso.
-Hilde?
-Sim.
-Você… você gostaria de ser a mãe do meu filho? – fiquei surpresa, pois não esperaria isso vindo dele. Juro que já tinha me acostumado com a idéia de ser a "tia Hilde", mas não tinha pensado em ser a "mamãe" Hilde. Até porque os planos eram simples. Quando a criança nascesse, a gente se mudaria de novo para um lugar onde eu tomaria o papel de irmã de Duo, e não mais de esposa. Parece que ele queria mudar os planos.
-Do que você está falando, Duo?
-Eu estava pensando… ele vai precisar de uma mãe, quero dizer, o bebê.
-Duo… - eu tentei convencê-lo do contrário. Porque se ele estava propondo o que eu achava que estava propondo, tinha certeza de que isso não daria certo. -… você é um grande amigo, Duo, mas para mim não é nada mais do que isso. Um amigo.
-Eu sei Hilde. Não é isso o que eu quero dizer. – agora eu estava confusa. Se ele não estava me pedindo em casamento, o que era então? –Eu não sei… eu quero apenas prevenir… caso algo aconteça comigo…
-Duo… não vai acontecer nada com você… você está indo muito bem até agora… - a possibilidade de perdê-lo era assustadora.
-Não… não falo sobre o parto ou coisa e tal. Mas sei lá, imprevistos acontecem. Se eu não puder estar aqui para cuidar do meu filho… eu queria… eu queria que alguém que eu confio estivesse. Então eu pensei… eu pensei que quando ele nascesse, eu poderia registrá-lo como nosso filho. Assim você também teria direitos legais sobre ele se algo acontecesse a mim. – eu senti algo aquecer dentro de mim. Duo estava não só colocando a sua vida e a vida do seu bebê em minhas mãos, como o futuro dele também.
Eu sei que isso é uma grande responsabilidade, mas ao mesmo tempo eu não posso evitar em ficar honrada.
-Eu… - dei um sorriso para ele. -… ficaria muito honrada em ser a mãe do seu filho, Duo.
